RESUMO: O Superior Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento, com fundamento no artigo 191 Código Civil, segundo o qual o reconhecimento administrativo de dívida pela Administração Pública interrompe o prazo prescricional em favor do interessado ou, caso já tenha se consumado o lapso prescricional, importa em sua renúncia. Ocorre que nas relações jurídicas travadas pela Administração Pública não devem prevalecer as disposições do Código Civil, uma vez que se tratam de regras essencialmente privatistas. Desse modo, em razão do princípio da legalidade, da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, conclui-se que a renúncia à prescrição consumada em favor da Administração Pública somente pode ocorrer nas hipóteses de expressa previsão legal.
Palavras-chave: Administração Pública. Reconhecimento de dívida. Renúncia. Prescrição. Legalidade.
INTRODUÇÃO
A prescrição pode ser conceituada como a perda do direito de ação em virtude da ausência de seu exercício dentrodo prazo legal. É instituto que visa garantir a segurança jurídica e a estabilização das relações jurídicas.
No âmbito da Administração Pública, o Decreto n° 20.910/32 disciplina ao prazo prescricional para as dívidas passivas da União, ao prever, em seu art. 1°, que, “todo e qualquer direito ou ação contra Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for sua natureza, prescreve em cinco anos, contados do ato ou fato se originam”.
A problemática apresentada no presente trabalho surge com a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que vem consolidado o entendimento segundo o qual o reconhecimento administrativo de dívida pela Administração Pública interrompe o prazo prescricional em favor do interessado, ou, caso já tenha se consumado o lapso prescricional, importa em sua renúncia. Nesse sentido, é o precedente:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. FATOR DE ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA - FAM. PRESCRIÇÃO. INTERRUPÇÃO. RECONHECIMENTO DA DÍVIDA PELA ADMINISTRAÇÃO. RECURSO REPETITIVO RESP 1.112.114/SP.
1. "O ato administrativo que reconhece a existência de dívida interrompe a contagem do prazo prescricional, recomeçando este a fluir apenas a partir do último ato do processo que causou a interrupção. Inteligência do art. 202, VI, e parágrafo único, do Código Civil" (REsp 1112114/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 08/10/2009).
2. Agravo regimental não provido.[1]
E, ainda, em sede de recurso repetitivo:
PRESCRIÇÃO. RENÚNCIA. INTERRUPÇÃO. REINÍCIO PELA METADE. ART. 9º DO DECRETO 20.910⁄32. SUSPENSÃO DO PRAZO NO CURSO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO. ART. 4º DO DECRETO 20.910⁄32. PRESCRIÇÃO NÃO VERIFICADA.
(...)
3. Nos termos do art. 1º do Decreto 20.910⁄32, as "dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem".
4. Pelo princípio da actio nata, o direito de ação surge com a efetiva lesão do direito tutelado, quando nasce a pretensão a ser deduzida em juízo, acaso resistida, nos exatos termos do art. 189 do Novo Código Civil.
5. O ato administrativo de reconhecimento do direito pelo devedor importa (a) interrupção do prazo prescricional, caso ainda esteja em curso (art. 202, VI, do CC de 2002); ou (b) sua renúncia, quando já se tenha consumado (art. 191 do CC de 2002).
6. Interrompido o prazo, a prescrição volta a correr pela metade (dois anos e meio) a contar da data do ato que a interrompeu ou do último ato ou termo do respectivo processo, nos termos do que dispõe o art. 9º do Decreto n.º 20.910⁄32. Assim, tendo sido a prescrição interrompida no curso de um processo administrativo, o prazo prescricional não volta a fluir de imediato, mas apenas "do último ato ou termo do processo", consoante dicção do art. 9º, in fine, do Decreto 20.910⁄32. (...)[2]
Com esse entendimento, a Corte Superior acaba por considerar válido o atono qual o agente da Administração releva a prescrição operada em favor do ente púbico e reconhece a existência de débito perante terceiros.
Desse modo, pretende-se analisar o tema à luz dos princípios administrativos que regem a atuação dos agentes públicos a fim de verificar a constitucionalidade e a legalidade desse entendimento.
1. Da necessária existência de previsão legal para o reconhecimento de dívida no âmbito da Administração Pública
O Superior Tribunal de Justiça para assentar que o reconhecimento de dívida pela Administração Pública implica em renúncia ao prazo prescricional vale-sedas disposições do Código Civil. O artigo 191 do Código Civil, citado em inúmeros precedentes sobre o tema, dispõe:
Art. 191. A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição.
A redação do dispositivo é clara quanto à possibilidade de renúncia ao prazo prescricional consumado. Não obstante, para verificar a possiblidade de aplicação do referido artigo no âmbito das relações administrativas, deve-se ter em mente que a Administração Pública, rege-se por dois pilares básicos que se sobrepõem a todas as demais normas: a supremacia e a indisponibilidade do interesse público.[3]
Da necessária prevalência do interesse público decorre a necessidade de toda a atuação da Administração Pública estar estritamente pautada na legalidade. Assim, tendo em vista a necessidade de observância de requisitos próprios que visam garantir a conservação do interesse público, a prática de um ato administrativo difere da dos atos jurídicos em geral.
Na definição de José dos Santos Carvalho Filho, os elementos estruturais dos atos jurídicos em geral são o sujeito, o objeto, a forma e a própria vontade do agente. Ocorre que, diferentemente dos demais atos jurídicos, no ato administrativo o sujeito e o objeto têm qualificações especiais: o sujeito é sempre um agente investido de prerrogativas públicas legalmente previstas e o objeto há de estar preordenado a determinado fim de interesse público.[4]
Os elementos do ato administrativo competência e finalidade decorrem sempre diretamente da lei. Inclusive nos atos discricionários esses elementos serão sempre vinculados.[5]Desse modo, diferentemente dos atos praticados por particulares, a prática de um ato administrativo requer a previsão legal da competência administrativa do agente público para realizá-lo em busca da finalidadeprevista em lei.
Desse modo, todo ato administrativo, precipuamente quando se tratar de ato que importe em disposição de bens ou de interesses públicos,somente poderá ser praticado quando autorizado por lei. Do contrário, será inválido.
O administrador público não é titular dos interesses públicos, não podendo, portanto, deles dispor. Ao administrador incube apenas o dever de proteção e de administração dos interesses e bens públicos e, portanto, sua atuação deve estar dentro dos limites estabelecidos em lei.Assim, o Poder Público até poderá renunciar a direito próprio, desde que exista lei que autorize tal conduta.
Uma vez constatado que é o regime jurídico de direito público que rege basicamente os atos administrativos, cabendo ao direito privado fazê-lo apenas de forma supletiva, ou seja, em caráter subsidiário e desde que não contrarie o regramento fundamental específico para os atos públicos, pode-se concluir que a regra prevista no artigo 191 do Código Civil não se aplica à Administração Pública enquanto detentora dos interesses coletivos.[6]
Ainda no que tange à possibilidade de renúncia à prescrição no âmbito da Administração, deve-se observar o que dispõe a Lei 8.112/90:“Art. 112. A prescrição é de ordem pública, não podendo ser relevada pela administração”.
Em razão do dispositivo mencionado, no âmbito da Administração Pública Federal, a impossibilidade de reconhecimento de dívida já prescrita não decorre de simples ausência de previsão legal, mas de expressa vedação.
2. Da inexistência de obrigação natural nas relações travadas pela Administração Pública
Numa tentativa de considerar válido os atos de reconhecimento da dívida prescrita e aquitação espontânea do débito prescrito pela Administração Pública,poder-se-ia tentar argumentar que se trata, na verdade, de cumprimento de obrigação natural.
A obrigação natural configura-se em uma obrigação na qual inexiste qualquer pretensão jurídica do credor. O seu cumprimento decorre pura e simplesmente da vontade do devedor.
A constituição de uma obrigação natural, portanto, pressupõe a capacidade e a liberdade insculpida na vontade de seu agente, o que não ocorre com os agentes públicos que devem atuar nos estritos limites de sua competência legalmente definida, sob pena de violar os princípios da legalidade e da impessoalidade.
Ressalte-se ainda que é prescindível a análise do conteúdo do direito do interessado, uma vez que nem a própria certeza do direito seria hábil a ensejar a autorização para que o administradorreleve a prescrição. Cabe apenas à lei determinar as situações nas quais a prescrição poderá ser afastada e satisfeito o direito do terceiro interessado.
3. Da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
A possibilidade de renúncia ao prazo prescricional sem a ressalva de exigência de expressa lei autorizativa, conforme já se afirmou, é o entendimento que tem prevalecido na Corte Superior.
Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, em análise de questões envolvendo matéria tributária,tem firmado jurisprudência em sentido diametralmente oposto:
EMEN: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. PRESCRIÇÃO. ORIENTAÇÃO FIRMADA PELA 1ª SEÇÃO NO ERESP 435.835/SC. LC 118/2005: NATUREZA MODIFICATIVA (E NÃO SIMPLESMENTE INTERPRETATIVA) DO SEU ARTIGO 3º. INCONSTITUCIONALIDADE DO SEU ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA. ENTENDIMENTO CONSIGNADO NO VOTO DO ERESP 327.043/DF.
1. Não viola o artigo 535 do CPC, nem importa negativa de prestação jurisdicional o acórdão que adota fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia posta.
2. A 1ª Seção do STJ, no julgamento do ERESP 435.835/SC, Rel. p/ o acórdão Min. José Delgado, sessão de 24.03.2004, consagrou o entendimento segundo o qual o prazo prescricional para pleitear a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação é de cinco anos, contados da data da homologação do lançamento, que, se for tácita, ocorre após cinco anos da realização do fato gerador — sendo irrelevante, para fins de cômputo do prazo prescricional, a causa do indébito. Adota-se o entendimento firmado pela Seção, com ressalva do ponto de vista pessoal, no sentido da subordinação do termo a quo do prazo ao universal princípio da actio nata (voto-vista proferido nos autos do ERESP 423.994/SC, 1ª Seção, Min. Peçanha Martins, sessão de 08.10.2003).
3. No caso, a ação foi promovida quando já passados mais de dez anos da data do recolhimento do tributo que se busca repetir.
4. A renúncia à prescrição em favor da Fazenda Pública somente se dá quando expressamente autorizada por lei.
5. Recurso especial a que se nega provimento.[7]
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 357.687 - DF (2013/0187457-3)
Julgamento em 27/08/2014
De fato, é firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que, "em se tratando de Fazenda Pública, a renúncia à prescrição pressupõe expressa lei autorizativa. Assim, o instituto da renúncia à prescrição, norma de caráter essencialmente privado, não se compatibiliza com os princípios que regem a Administração Pública, de modo que a irrenunciabilidade da prescrição, no âmbito do regime de direito público, é consequência da própria indisponibilidade dos bens públicos. [8]
Trata-se de um verdadeiro contrassenso o Superior Tribunal de Justiça entender que, em se tratando de matéria tributária, a renúncia à prescrição pressupõe expressa lei autorizativa, por concluir que o instituto da renúncia à prescrição é norma de caráter essencialmente privado e que não se compatibiliza com os princípios que regem a Administração Pública e que, quanto às demais dívidas, deva ser aplicado o regime do Código Civil.
CONCLUSÃO
Conclui-se, portanto,que o princípio da legalidade e da indisponibilidade do interesse público que regem todas as relações travadas com a Administração Pública impossibilitam que um agente administrativo renuncie à prescrição já consumada em favor do ente público sem lei que preveja expressamente a sua competência para tanto, sob pena de desvirtuamento de todo o sistema principiológico que visa garantir a supremacia do interesse público.
REFERÊNCIAS
FILHO. José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 27 ed. São Paulo: Atlas, 2014.
MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28 ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
PIETRO. Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 27 ed. São Paulo: Atlas, 2014.
[1]BRASIL. Superior Tribunal De Justiça. AgRg no REsp 1455435/SP, Ministro Mauro Campbeel, Marques, DJ 02/12/2014. Disponível em: www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia>. Acesso em 08/12/2014.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp1.270.439 –PR, Ministro Castro Meira, DJ 02/08/2013. Disponível em: www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia>. Acesso em 011/12/2014.
[3] MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28 ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 69.
[4] FILHO. José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 27 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 99.
[5] PIETRO. Maria Sylvia Zanella Di.Direito Administrativo.27 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 225
[6]FILHO. José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 27 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 103.
[7]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 200500727776, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki–Primeira Turma, DJe06/02/2006. Disponível em: <www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia>. Acesso em 11/12/2014.
[8]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.REsp 1.196.773/PA, Rel. Ministro Mauro Campebell Marque, Segunda Turma,DJe de 29/10/2013).Disponível em: <www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia>. Acesso em 11/12/2014.
Advogada da União, lotada na Procuradoria Regional da União da 1ª Região, pós-graduada em Direito do Trabalho e Processual Trabalhista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REBECA PEIXOTO LEãO ALMEIDA GONZáLEZ, . Da impossibilidade de reconhecimento administrativo de dívida que importe em renúncia à prescrição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42492/da-impossibilidade-de-reconhecimento-administrativo-de-divida-que-importe-em-renuncia-a-prescricao. Acesso em: 23 dez 2024.
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