1. INTRODUÇÃO
Em geral, observa-se que a maioria dos estudiosos voltam seus olhos para o estudo dos direitos e garantias fundamentais e, especialmente, no Direito Tributário, para a proteção que deve ser conferida ao sujeito passivo, com a finalidade de lhe assegurar direitos frente ao ius imperis estatal.
Há de se destacar, no entanto, que nesse contexto merece destaque também os deveres fundamentais, que não se configuram como condição para o gozo dos respectivos direitos, mas ganham esse especial relevância em razão de sua imprescindibilidade para a viabilização daqueles.
Dentre tais deveres, destaca-se o dever fundamental ao pagamento dos tributos, como forma direta do financiamento das políticas implementadoras dos direitos e garantias fundamentais.
No presente trabalho será analisada, de maneira breve, a origem da tributação, com sua evolução no decorrer das mudanças provocadas pelos paradigmas constitucionais, chegando-se à relação da tributação no Estado Democrático de Direito. Nesse modelo, ganha relevância o dever ao pagamento de tributos, que, como forma de assegurar a observância dos direito fundamentais, assume a posição de dever fundamental.
O fenômeno da tributação como fonte de recursos para a consecução das atividades estatais remonta às épocas mais remotas. Luis Eduardo Schoueri aponta a existência de tributos desde as mais primitivas formas de organização social, mediante a cobrança de dízimos, sobre frutos, carnes óleo e mel, ainda no século XIII a.C. Aponta, também, que, na época os cidadãos, livres, não estavam sujeitos à cobrança dos tributos que se limitava aos povos vizinhos dominado na guerra, aos estrangeiros, imigrantes, forasteiros e escravos (2013, p. 19).
A importância e o crescimento da tributação culminaram em diversas lutas e revoluções dos povos com o objetivo de eliminar a invasão não consentida em seu patrimônio. Assim, afirma HARADA (2007, p. 316):
A exacerbação do fenômeno tributário acabou por provocar a luta dos povos contra a tributação não consentida. São conhecidos os movimentos nesse sentido nas três grandes civilizações. Na Espanha, as Cortes de Leão, de 1188, estabeleceram o princípio de que os impostos deveriam ser votados pelos delegados dos contribuintes. Portugal convocava as Cortes de Lamengo, em 1413, para obter os impostos necessários. Na França, representantes da nobreza, clero e povo reuniam-se em États Généraux e nos “Estados Provinciais” quase sempre para a obtenção de tributos, desde o início do século XVI, até que os monarcas absolutistas (Francisco I, Henrique IV e Luís XIV) prescindiram dessas assembleias (...) O estudo histórico não deixa dúvida de que a tributação foi a causa direta ou indireta de grandes revoluções ou grandes transformações sociais, como a Revolução Francesa, a Independência das Colônias Americanas e, entre nós, a Inconfidência Mineira, o mais genuíno e idealista dos movimentos de afirmação da nacionalidade, que teve como fundamental motivação a sangria econômica provocada pela metrópole por meio do aumento da derrama, como esclarece Paulo Roberto Cabral Nogueira.
A evolução da tributação há de ser analisada de maneira conjunta com os paradigmas constitucionais verificados no decorrer dos períodos. O primeiro deles surge com o Estado de Direito, decorrência do princípio da legalidade, cuja origem é atribuída à Magna Carta inglesa de 1.215 que resultou no chamado Estado Liberal, como decorrência da revolução liberal inglesa concluída em 1689. Nesse modelo estatal a principal característica de relevo a reserva ao Estado papel diminuto, dando-se grande liberdade para os cidadãos. Os conceitos de liberdade e igualdade nesse modelo se restringiram à sua faceta meramente formal, não sendo esses direitos materialmente garantidos aos seus destinatários.
Já sob esse parâmetro constitucional se vislumbrava a presença do Estado Fiscal, cuja “principal característica é seu modo de financiamento ser prioritariamente por tributos. Ou seja: não é o Estado que gera sua riqueza, mas o particular é a fonte (originária) de riqueza, cabendo-lhe transferir uma parcela (por derivação) ao Estado” (SCHOUERI, 2013, p. 25).
Diante da insuficiência do modelo de Estado Liberal, transcendeu-se ao Estado Social, em que restou maximizada a atuação estatal, com a implementação material dos direitos de igualdade e de liberdade. Sobressaiu-se, nesse conceito constitucional, o direito público, ainda como sinônimo de estatal, em detrimento do privado, igualmente refletindo a ideia de egoísmo. O Estado manteve sua fiscalidade, porém por ter crescido significativamente sua participação na vida em sociedade, levou junto o aumento da carga tributária necessária para sustentá-lo.
A ênfase demasiada tanto na esfera pública como na privada não foram suficientes para formar um modelo de estado que atendesse aos anseios de toda a sociedade, levando, assim, à falibilidade dos sistemas liberal e social. A transição ao terceiro paradigma, o Estado Democrático de Direito, só foi possível em virtude do rompimento com os pensamentos anteriores, bem como a atribuição de novas visões de direitos já previstos. O Estado Democrático de Direito se manteve como Estado Fiscal, especialmente em razão da maior participação do particular no desempenho de atividades anteriormente realizadas pelo próprio Estado, mediante privatizações que subtraíram da esfera pública a exploração das já reduzidas receitas originárias.
3. DOS DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS E O DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR TRIBUTOS
Nesta senda evolutiva, brevemente analisada no item anterior, os direitos fundamentais acompanharam no mesmo passo os paradigmas constitucionais, por meio das chamadas gerações ou dimensões dos direitos fundamentais. Inicialmente, cumpre esclarecer certa divergência doutrinária no que se refere à nomenclatura adotada. BONAVIDES (2006) prefere a utilização do termo geração, o que tem sofrido críticas de outros autores, em virtude da ideia de sucessão, em que uma estaria inteiramente superada pela próxima, o que sabidamente não condiz com o contexto do direitos fundamentais. Nesse sentido, SARLET (2007, p. 55) prefere a divisão dos direitos fundamentais, esclarecendo a comunicabilidade entre cada uma delas:
Em que pese o dissídio na esfera terminológica, verifica-se crescente convergência de opiniões no que concerne à idéia que norteia a concepção das três (ou quatro, se assim preferirmos) dimensões dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, tendo tido sua trajetória existencial inaugurada com o reconhecimento formal nas primeiras Constituições escritas dos clássicos direitos de matriz liberal-burguesa, se encontram em constante processo de transformação, culminando com a recepção, nos catálogos constitucionais e na seara do Direito Internacional, de múltiplas e diferenciadas posições jurídicas, cujo conteúdo é tão variável quanto as transformações ocorridas na realidade social, política, cultural e econômica ao longo dos tempos. Assim sendo, a teoria dimensional dos direitos fundamentais não aponta, tão-somente, para o caráter cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial, na esfera do moderno ‘Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Feitas essas observações, será aqui adotada a denominação dimensão dos direitos fundamentais. No contexto do Estado Liberal, surgiram os direitos fundamentais de 1ª dimensão, que dizem respeito às liberdades individuais, que segundo BONAVIDES (2006, p. 563-564) “são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”.
Os direitos fundamentais de 2ª. Dimensão são os direitos sociais, reconhecidos no Estado Social; os de 3ª Dimensão são os direitos de fraternidade ou solidariedade, englobando o direito ao meio ambiente, ao desenvolvimento, à propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade. Por seu turno, os de 4ª Dimensão são tidos como direitos da globalização política, com desta para o direito à democracia, informação e pluralismo (BONAVIDES, 2006).
José Afonso da Silva (2002, p. 181) indica algumas características dos direitos fundamentais:
(1) Historicidade. São históricos como qualquer direito. Nascem, modificam-se e desaparecem. (...); (2) Inalienabilidade. São direitos intransferíveis, inegociáveis, porque não são de conteúdo econômico patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a todos, deles não se pode desfazer, porque são indisponíveis; (3) Imprescritibilidade. (...) Vale dizer, nunca deixam de ser exigíveis. Pois prescrição é um instituto jurídico que somente atinge os direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade dos direitos personalíssimos, ainda que não individualistas, como é o caso; (4) Irrenunciabilidade. Não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos, pode-se deixar de exercê-los, mas não se admite que sejam renunciados.
Nesse sentido, e no contexto do Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais acumulados no decorrer da evolução histórica dos paradigmas constitucionais, não devem se apresentar apenas como uma agregação de novos valores a uma lista estática, mas receberem uma reinterpretação de acordo com o contexto histórico e a nova realidade fática existente. Assim, é relevante que se atribuam novas visões de direitos já previstos. Essa alteração na forma de interpretação dos preceitos já existentes é que conduz à conclusão de que não se trata de uma mera cumulação de direitos, mas de uma releitura, em razão da comutação entre o público e o privado.
Ao Estado Democrático de Direito compete a promoção e a garantia da observância dos direitos fundamentais esculpidos no Texto Constitucional e utilizá-los como diretriz interpretativa e organização a pautar a estruturação e a limitação do poder público na prestação de seu mister. Como Estado Fiscal que é, a realização de seus consectários, em especial a implementação e a promoção dos direitos fundamentais, deverá ser custeada, principalmente, por meio da arrecadação dos tributos.
A Constituição Federal brasileira de 1988 consigna expressamente a adoção do modelo democrático de direito e, em análise ao contorno dado pelo legislador constituinte ao capítulo destinado ao “Sistema Tributário Nacional” (arts. 145 a 162, da CF) é possível concluir por sua característica fiscal, especialmente em razão da relevância atribuída à arrecadação dos impostos, que para sua cobrança independem de contraprestação estatal.
Em seu art. 3º, a CF elenca os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil como sendo a construção de uma sociedade livre justa e solidária (I), a garantia do desenvolvimento nacional (II), a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (III) e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Destaca-se, por sua relação com a tributação, o princípio da solidariedade e a promoção do bem comum. Nesse sentido, torna-se relevante o apontamento, ao lado do extenso rol de direitos fundamentais, dos deveres fundamentais, que com aqueles se relacionam em maior ou menor grau.
Canotilho (2003, p. 535) categoriza os deveres fundamentais como autônomos em relação aos direitos, afirmando que não constituem limitações imanentes ao exercício do direito fundamental que com eles se relacionam. Assim, a título de exemplo, o autor menciona que o dever de defesa do meio ambiente, não se constitui como requisito ou restrição ao exercício do direito ao ambiente. Nabais (2004), apesar de defender a autonomia dos deveres fundamentais, afirma que eles “gravitam forçosamente em torno dos direitos fundamentais”, permitindo concluir pela existência de relacionamento entre direitos e deveres, apesar de esta não se dar necessariamente de maneira direta. Nas palavras do nobre jurista português:
Desse modo, os deveres fundamentais constituem uma categoria constitucional própria, expressão imediata ou directa de valores e interesses comunitários diferentes e contrapostos aos valores e interesses individuais consubstanciados na figura dos direitos fundamentais. O que não impede, e embora pareça paradoxal, que os deveres fundamentais ainda integrem a matéria dos direitos fundamentais, pois que, constituindo eles a activação e mobilização constitucionais das liberdades e patrimónios dos titulares dos direitos fundamentais para a realização do bem comum ou do interesse público (primário), se apresentam, em certa medida, como um conceito relativo, contraste, delimitador do conceito de direitos fundamentais. (2004, p. 37-38)
[…]
Em suma, os direitos e os deveres fundamentais não constituem categorias totalmente separadas nem domínios sobrepostos, encontrando-se antes numa relação de ‘conexão funcional’ que, por um lado, impede o exclusivismo ou a unilateralidade dos direitos fundamentais, (…), e, por outro, não constitui obstáculo à garantia da primazia ou primacidade dos direitos fundamentais ou da liberdade face aos deveres fundamentais, uma vez que estes ainda servem, se bem que indirectamente, o objectivo constitucional da liberdade. (NABAIS, 2004, p. 120).
Sintetizando a posição de Nabais, convém a transcrição do seguinte excerto da primorosa dissertação de mestrado apresentada Leonardo Varella Giannetti (2011, p. 39) sobre o tema:
Afinal, para ele, os deveres fundamentais podem, muitas vezes, conformar ou delimitar o conteúdo normativo do direito de liberdade de uma pessoa (“contrapostos aos valores e interesses individuais”) para prestigiar o direito de liberdade “dos outros” (de terceiros). Como dito no início deste capítulo, os deveres fundamentais constituem situações jurídicas de imposição de comportamentos às pessoas, expressam a responsabilidade comunitária dos indivíduos e possuem como objetivo a existência e manutenção da comunidade e do Estado. Por isso, esses deveres servem também à garantia de direitos fundamentais, mesmo que sejam os direitos fundamentais de titular diverso daquele que possui o dever fundamental.
É no contexto dos deveres fundamentais que se insere o de pagar tributos, em especial os impostos que, por não possuírem vinculação de sua hipótese de incidência, implicam em sacrifício dos detentores de maior capacidade contributiva, em favor da promoção e implementação dos direitos fundamentais de todos.
4. CONCLUSÃO
É certo que os direitos fundamentais não são garantidos de maneira automática ou gratuita, gerando, para tanto, um considerável custo monetário para o Estado que deve saldá-lo da maneira comumente utilizada por um Estado Fiscal, qual seja, por meio da arrecadação tributária.
Assim, apesar de implícito, o dever fundamental ao pagamento de tributos decorre do objetivo perquirido pelo estado brasileiro de uma “sociedade livre, justa e solidária”. O status de fundamental atribuído ao dever de pagamento de tributos decorre do fato de não se constituir como uma simples função administrativa, mas atividade inerente à própria subsistência do Estado, que tem na tributação sua principal fonte de receita e, com isso, o meio crucial para proporcionar a garantia dos direitos fundamentais de toda a coletividade.
Giannetti aponta algumas consequências possíveis, no plano infraconstitucional, decorrentes do pagamento de tributo como dever fundamental:
Entender que o tributo é objeto de um dever fundamental não só traz mais legitimidade e importância à sua cobrança como inova e altera o cenário jurídico, pois poderá servir de fundamento constitucional para diversos temas, tais como: (1) validar a edição de leis que buscam um maior controle da sonegação, como, por exemplo, as leis que tipificam algumas condutas como crime, (2) amparar um maior controle dos planejamentos tributários;(3) justificar a constante necessidade de simplificação do sistema tributário; (4) permitir que a sociedade exija do Estado mais possibilidade e espaço de participação na edição de leis e políticas públicas que envolvam a matéria tributária; (5) legitimar a sociedade e o Ministério Público a questionarem a criação de benefícios fiscais concedidos ilegalmente, inclusive com violação à isonomia; (6) obrigar o Estado a ser mais transparente nas suas condutas, inclusive com os gastos feitos; (7) permitir e exigir que o Tribunal de Contas e que os órgãos de auditoria sejam presentes e eficientes no controle das despesas do Estado. (2011, p. 54)
O pagamento de tributos, no Estado Fiscal, como o brasileiro, constitui condição essencial, situação que, segundo Nabais, se caracteriza em “posições que traduzam a quota parte constitucionalmente exigida a cada um e, consequentemente, ao conjunto dos cidadãos para o bem comum” (2004, p. 73), assumindo, por isso, o papel de dever fundamental. Destaque-se do fragmento acima transcrito a possibilidade decorrente desse status, aqui assentida, que permite ao legislador infraconstitucional amparar um maior controle dos planejamentos tributários, como realizado, por exemplo, quando da inclusão do parágrafo único ao artigo 116 do CTN, pela LC 104/2001.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo : Malheiros, 2006.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
GIANETTI, Leonardo Varella. O dever fundamental de pagar tributos e suas possíveis consequências práticas. Dissertação de mestrado apresentada à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2011. Disponível em <www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_GiannettiLV_1.pdf>. Acesso em 10/01/2014.
HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2007.
NABAIS, José Casalta. O Dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina,
2004.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
Procurador da Fazenda Nacional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Fernando Dias de. Breves apontamentos sobre o dever fundamental de pagar tributos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42497/breves-apontamentos-sobre-o-dever-fundamental-de-pagar-tributos. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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