INTRODUÇÃO
A Constituição Federal, em seu artigo 231, § 2º, reconhece o direito originário dos indígenas à posse permanente das suas terras de ocupação tradicional e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais nelas existentes.
O art. 15. 1 da Convenção 169/OIT, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 5.051/2004, estabelece, por sua vez, que “Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados”.
Em áreas de sobreposição de unidades de conservação e terras indígenas, pode parecer inconciliável a gestão e administração pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio e a garantia do direito originário dos índios ao usufruto exclusivo das riquezas naturais, que inclui o direito à participação em sua administração e conservação.
O conflito, todavia, é meramente aparente.
DA HARMONIZAÇÃO ENTRE O DIREITO ORIGINÁRIO DOS ÍNDIOS ÀS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS E A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE.
O art. 231, caput e parágrafo 1º, da Constituição Federal reconhece aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, ou seja, aquelas habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e, finalmente, aquelas necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Reconhece, também, o direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais existentes em tais áreas, que inclui o direito à participação na sua administração e conservação.
Não se pode, por óbvio, negar a relevância e a necessidade de atuação do ICMBio nas áreas de sobreposição de terras indígenas e unidades de conservação, haja vista a própria missão institucional do Instituto, estabelecida pela Lei 11.516/2007.
Daí a necessidade de se conciliar, na administração e preservação das unidades de conservação existentes em terras indígenas, os diversos interesses envolvidos, mediante a atuação conjunta doICMBio, da FUNAI e das comunidades envolvidas.
De fato, é imprescindível garantir a efetiva participação da FUNAI e dos índios na gestão das áreas afetadas por unidades de conservação, resguardando-se, consequentemente, os direitos originários sobre tais terras, conforme assegurado pela Constituição Federal, sem descuidar da proteção ao meio ambiente, também constitucionalmente assegurada.
No julgamento do caso Terra Indígena Raposa Serra do Sol – PET 3.388, o Supremo Tribunal Federal, por meio do voto do eminente relator, Ministro Carlos Britto,tratou da finalidade do sistema de proteção dos índios brasileiros, em contraponto à temática ambiental, conforme a seguir transcrito:
“Quanto ao recheio topográfico ou efetiva abrangência fundiária do advérbio “tradicionalmente”, grafado no caput do art. 231 da Constituição, ele coincide com a própria finalidade prática da demarcação; quer dizer, áreas indígenas são demarcadas para servir, concretamente, de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas (deles, indígenas de uma certa etnia), mais as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (§ 1º do art. 231). Do que decorre, inicialmente, o sobredireito ao desfrute das terras que se fizerem necessárias à preservação de todos os recursos naturais de que dependam, especificamente, o bem-estar e a reprodução físico-cultural dos índios. Sobredireito que reforça o entendimento de que, em prol da causa indígena, o próprio meio ambiente é normatizado como elemento indutor ou via de concreção (o meio ambiente a serviço do indigenato, e não o contrário, na lógica suposição de que os índios mantêm com o meio ambiente uma relação natural de unha e carne). Depois disso, o juízo de que a Constituição mesma é que orienta a fixação do perímetro de cada terra indígena. Perímetro que deve resultar da consideração “dos usos, costumes e tradições” como elementos definidores dos seguintes dados a preservar em proveito de uma determinada etnia indígena: a) habitação em caráter permanente ou não-eventual; b) as terras utilizadas “para suas atividades produtivas”, mais “as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas. São os quatro círculos concêntricos a que se refere Nelson Jobim na decisão administrativa que proferiu, a propósito da demarcação da reserva indígena “Raposa-Serra do Sol”, quando ainda ministro de Estado da Justiça (decisão de 20 de dezembro de explicitam o propósito constitucional de fazer dessa qualificada ocupação (porque tradicional) de terras indígenas o próprio título de constitutividade do direito a uma posse permanente e ao desfrute exclusivo das riquezas nelas existentes. Com o que, no ponto, o ato de demarcação passa a se revestir de caráter meramente declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Situação que a nossa Lei Fundamental retratou como formadora de um indissociável laço entre cada etnia indígena e suas terras congenitamente possuídas; ou seja, possuídas como parte elementar da personalidade mesma do grupo e de cada um dos seus humanos componentes. O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse fundiária um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Visto que terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, deixa de ser um mero objeto de direito para ganhar a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. É o que Boaventura de Sousa Santos chama de “hermenêutica diatópica”, para dar conta do modo caracterizadamente cultural de interpretação dos direitos fundamentais2. Metodologia interpretativa que, no caso dos indígenas, sedimentada na própria Constituição, nos orienta para fazer dos referidos “usos, costumes e tradições” o engate lógico para a definição da semântica da posse indígena, da semântica da permanência, da semântica da habitação, da semântica da produção, e assim avante.”
É oportuna, sobre o tema, ainda, a pertinente observação de Sérgio Leitão, advogado e diretor executivo do Instituto Socioambiental – ISA (Superposição de leis e vontades: Por que não se resolve o conflito entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação?,in Terras Indígenas e Unidades de Conservação da natureza: o desafio da sobreposição,São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, p. 22 e 23):
“Em que pese o fato de alguns povos indígenas hoje utilizarem recursos naturais de suas terras de forma degradadora e contrária à legislação ambiental, também é fato que muitos povos têm mantido as florestas existentes em suas terras intactas e protegidas da exploração predatória. É certo que as terras indígenas concentram grande parte das áreas consideradas de megadiversidade biológica no país, o que impõe uma abordagem diferenciada por parte da Administração, a começar pela realização de parcerias entre a FUNAI e o IBAMA. Tais parcerias destinar-se-iam não só a compatibilizar terras indígenas com unidades de conservação que se superpõem, mas também à implementação de atos de fiscalização e proteção dessas terras, o que permitiria sanar quaisquer problemas de atuação desses órgãos e acumular ganhos na proteção dos direitos indígenas e do meio ambiente.
(...)
Conciliar esses dois objetivos, por vezes conflitantes, é o desafio a ser enfrentado pelo Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) e pela sociedade como um todo. Claro está que tal conciliação pressupõe, na maioria das vezes, limitações para ambos os lados. O que importa, porém, é que essa discussão seja feita de forma transparente, permitindo a todos os atores expressar e defender seus direitos e interesses, cabendo ao Poder Público viabilizar a solução mais harmônica e justa.”
Importante salientar que há experiências promissoras de gestão ambiental compartilhada de unidades de conservação entre a FUNAI, o ICMBio e comunidades indígenas. O modelo possibilita a prática conservacionista dos recursos naturais existentes em terras indígenas, sem, contudo, obstar seu uso para a reprodução física e cultural dos índios.
Cite-se, por todas, a participação da Comunidade Indígena Guarani na elaboração do Plano de Manejo Ambiental do Parque Estadual Ilha do Cardoso, localizado no Estado de São Paulo.
Grupos indígenas têm intensa relação com a natureza e profundo conhecimento a seu respeito. Em geral, têm contribuído de maneira significativa para a manutenção e aprimoramento de muitos dos mais frágeis ecossistemas da Terra por meio dos seus sistemas tradicionais de práticas sustentáveis no uso dos recursos naturais e, também, do respeito à natureza baseado em suas culturas, o que acarreta formas de exploração pouco depredadoras de seus ecossistemas.
A propósito, trecho do artigo “Terras Indígenas: as primeiras Unidades de Conservação”, de NuritBensusan (in Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza: o desafio da sobreposição,São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, p. 71):
“As Terras Indígenas possuem um enorme potencial para a conservação dos recursos naturais e suas populações têm um importante papel na manutenção da biodiversidade brasileira. Qualquer estratégia eficiente de conservar e usar de forma sustentável a biodiversidade do país deve considerá-las. Enquanto isso não acontece, continuaremos perpetuando nossa própria perversidade, desconsiderando culturas ricas e diversas e sacrificando nossa rica diversidade biológica e social.”
Estudos recentes indicam que Parques Nacionais desabitados e terras indígenas da Amazônia apresentam índices semelhantes de prevenção ao desmatamento – 1,17% e 1,11%, respectivamente[1]. A proteção que oferecem aos biomas quanto à conservação de recursos naturais e biodiversidade está clara no Xingu, no Mato Grosso ou em Rondônia, onde o desmatamento é barrado pelo reconhecimento de terras indígenas, e os casos de degradação da vegetação natural são menos recorrentes.
Fora da Amazônia, as terras indígenas são, muitas vezes, o último resguardo de diversidade biológica além das unidades de conservação. Cite-se, por exemplo, a Terra Indígena Mangueirinha, localizada no Estado do Paraná, a qual abriga o maior maciço de araucária restante no Estado.
Desta forma, não há falar em conflitos inerentes entre os objetivos das áreas protegidas e a presença de indígenas. Ao contrário, os índios devem ser reconhecidos como parceiros iguais e de pleno direito na elaboração e implementação de estratégias de conservação que afetem as suas terras, territórios, águas, mares costeiros e outros recursos ou ambientes naturais, e em particular quanto ao estabelecimento e gestão de áreas protegidas.
A atuação conjunta do ICMBio, da FUNAI e das comunidades indígenas permite conciliar, no caso concreto, dois direitos fundamentais relevantes, quais sejam, direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – artigo 225 da Constituição Federal – e o direito de indígenas a terras tradicionalmente ocupadas – artigo 231 da Constituição Federal.
A gestão compartilhada contribui para assegurar o direito constitucional dos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas, e, ao mesmo tempo, reafirmar a responsabilidade das respectivas comunidades na conservação da diversidade biológica, integridade ecológica e recursos naturais existentes nessas áreas protegidas.
CONCLUSÃO
Não se pode negar a relevância e a necessidade de atuação do ICMBio nas áreas de sobreposição de terras indígenas e unidades de conservação, haja vista a própria missão institucional do Instituto, estabelecida pela Lei 11.516/2007, e a proteção ao meio ambiente equilibrado, constitucionalmente garantida.
Ao mesmo tempo, é imprescindível assegurar a efetiva participação da FUNAI e dos índios na gestão das áreas afetadas por unidades de conservação, resguardando-se, consequentemente, os direitos originários sobre tais terras, conforme assegurado pela Constituição Federal.
Neste sentido, a gestão compartilhada entre ICMBio, FUNAI e comunidades indígenas de áreas indígenas afetadas por unidades de conservação é a medida que melhor coaduna os interesses envolvidos, efetivando o direito originário dos índios ao usufruto das riquezas naturais existentes em terras indígenas tradicionalmente ocupadas, bem comoo direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LEITÃO, Sérgio. “Superposição de leis e vontades: Por que não se resolve o conflito entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação?”, inTerras Indígenas e Unidades de Conservação da natureza: o desafio da sobreposição. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, p. 22 e 23
NURIT, Bensusan. “Terras Indígenas: as primeiras Unidades de Conservação”, in Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza: o desafio da sobreposição,São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, p. 71.
NEPSTAD, D., S. Schwartzman, B. Bamberger, M. Santili, A. Alencar, D. Ray, P. Schlesinger. “InhibitationofAmazondeforestationandfirebyparksandindigenous reserves”. ConservationBiology Vol. 20, 2006, p. 65-73.
[1] Nepstad, D., S. Schwartzman, B. Bamberger, M. Santili, A. Alencar, D. Ray, P. Schlesinger. InhibitationofAmazondeforestationandfirebyparksandindigenous reserves. 2006. ConservationBiology Vol. 20 (1): 65-73.
Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARENSI, Marcela de Andrade Soares. Sobreposição de Terras Indígenas e Unidades de Conservação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42499/sobreposicao-de-terras-indigenas-e-unidades-de-conservacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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