Resumo: O presente artigo destina-se ao levantamento bibliográfico e, na medida do possível, jurisprudencial, das teorias interpretativas dos signos constitucional-tributários mediante a análise dos institutos, conceitos e formas de Direito Privado. Doutrinariamente, visualizam-se 3 (três) teorias: da interpretação econômica, do primado do Direito Privado e da incorporação prima facie de conceitos jurídicos preexistentes, as quais são reproduzidas pela jurisprudência do STF, porém não na sequência em que são apresentadas neste trabalho.
Palavras-chave: Interpretação – Signos –Constitucional-Tributário.
INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta, por meio do método de revisão bibliográfica e do fenomenológico-hermenêutico, propostas interpretativas dos institutos, conceitos e formas advindos do Direito infraconstitucional e presentes nas normas constitucionais atributivas de competência tributária aos entes políticos. Por meio das teorias exegéticas, ressalta-se a importância dos nomes, bem como dos seus correlatos conceitos para se desvendar a norma jurídica e bem aplicá-la.
Para isso, analisa-se, primeiramente, a teoria da interpretação econômica do Direito Tributário em suas vertentes mais significativas: a desconsideração das formas jurídicas, com a consequente busca da substância econômica dos negócios jurídicos; e a mutação infalível dos conceitos advindos do Direito Privado pelo Direito Tributário.
A antítese a essa proposta é apresentada num segundo momento por meio da corrente que recepciona os conceitos do Direito Privado e propõe que ingressem no ramo do Direito Tributário inalterados.
Por fim, expõe-se a reunião dessas duas teorias sob a denominada incorporação prévia dos conceitos jurídicos, que presume incorporados os conceitos originários do ordenamento jurídico infraconstitucional, exceto se forem transformados expressamente pelo legislador constituinte.
1 Teorias da interpretação econômica
A teoria da interpretação do Direito Tributário, conforme a realidade econômica, surgiu na Alemanha no início do século XX. Sua emergência está relacionada às crises econômicas, especialmente após a Primeira Grande Guerra, que sobrecarregaram financeiramente os Estados nacionais. Diante desse panorama socioeconômico, tiveram espaço interpretações menos formalistas da lei tributária.
O método hermenêutico da consideração da realidade econômica atingiu seu apogeu com a edição da Codificação Tributária Alemã em 1919, período que reinou de modo absoluto para, após, entrar em declínio.
Em 1977, com a entrada em vigor do Código Tributário Alemão, o método da interpretação econômica foi afastado definitivamente. Restou a interpretação teleológica, que prega a consideração do conteúdo normativo e nega todos os efeitos voltados a assegurar qualquer espécie de finalidade fiscal.
Todavia, a teoria da interpretação econômica refloresceu sob novas vestes “depurada e renovada” (BALEEIRO, 1999, p. 689) sob a denominação de interpretação teleológica ou funcional, interpretação extensiva ou interpretação analógica dos conceitos constitucional-tributários (TORRES, 2003, p. 200).
Um dos precursores do método de interpretação conforme a realidade econômica foi o juiz alemão Enno Becker, que a defendeu como meio de afastar os critérios do Direito privado do trabalho exegético das normas tributárias a fim de evitar a elusão fiscal e de concretizar a justiça social entre os contribuintes.
Em síntese, Becker ignorava a irrelevância geral das formas jurídicas civis não importando o signo do Direito Civil ou Comercial que traduzia os atos jurídicos. Ao jurista alemão interessava que os atos produzissem os mesmos efeitos econômicos para que fossem tributados de modo idêntico.
Dentre as diversas facetas que a teoria da interpretação econômica do Direito Tributário pode assumir, destacam-se a desconsideração a priori das formas jurídicas para alcançar a substância econômica dos atos e mutação conceitual a priori.
A desconsideração a priori das formas jurídicas, defendida por Dino Jarach, foi disseminada na Itália e na Argentina sob o argumento de que o negócio ou ato jurídico não têm importância enquanto tais, mas apenas pela relação econômica que criam, pois é a relação econômica quem integra a hipótese de incidência da norma tributária (AMARO, 2004, p. 219).
Desse modo, a interpretação econômica que se dá pelo desprezo às formas jurídicas deve ser uma interpretação jurídica, teleológica e imposta pelo princípio constitucional da capacidade contributiva.
Baleeiro (1999, p. 689) ressalta que, para essa corrente da desconsideração a priori das formas jurídicas, uma justiça na repartição da carga tributária exige o atendimento ao princípio da capacidade econômica, devendo as obrigações tributárias ter como fato jurídico tributário unicamente fatos de caráter econômico, ou seja, reveladores da capacidade contributiva objetiva, sendo irrelevantes as formas jurídicas que adotarem, para os fins da interpretação.
A defesa da teoria da desconsideração a priori das formas jurídicas tem seu fundamento tanto na irrelevância da intenção jurídica quanto na consideração exclusiva da realidade econômica que está debaixo dos atos, negócios e atos jurídicos. Constatado o fato imponível, pouco interessa a forma jurídica adotada, mas, tão somente, a natureza econômica (MACHADO, 2005, p. 101).
Ao explicá-la, Amaro (2004, p. 219-220) refere que importa verificar a capacidade contributiva evidenciada na operação, e não sua correspondência formal com o modelo de instituto jurídico privado que é mencionado pela lei tributária como suporte de incidência.
Ao se aludir, por exemplo, à venda, a referência é apenas léxica para a teoria da desconsideração a priori das formas jurídicas, pois o que importa é a relação econômica que tem lugar com a forma de venda, ou seja, verificada esta última, pouco importância tem a forma exterior com o que o contribuinte a revista (BECKER, 1998, p. 128-129).
Eros Roberto Grau (2004, p. 216) incluindo-se dentre os defensores da desconsideração a priori das formas jurídicas ressalta que sua pretensão não é a substituição do critério jurídico de interpretação por outro (econômico), mas a interpretação da norma jurídico-tributária teleologicamente conforme as finalidades econômicas às quais se reportam.
O STF chegou a manifestar-se favoravelmente à desconsideração a priori das formas jurídicas no julgamento do RE 112.947. Na ocasião, a discussão girou em torno da cobrança de Imposto Sobre Serviços na locação de bens móveis, que havia sido permitida devido à consideração da realidade econômica, ou seja, considerou-se a atividade que se presta com o bem móvel em detrimento da conceituação civilística do contrato de locação, caracterizada pela mera obrigação de dar.
Por sua vez, a variante da mutação conceitual a priori (VELLOSO, 2005, p. 66)difere-se da anterior em razão de que preconiza a autonomia do Direito Tributário, ou seja, destina-se a justificar a prevalência do Direito Tributário sobre os demais ramos do Direito, bem como tenta evitar que a morosidade dos procedimentos, as dificuldades burocráticas e as complexidades legislativas sirvam aos contribuintes como instrumento de escape à incidência fiscal (TORRES, 2003, p. 13).
Partindo da premissa de que o Direito Tributário tem autonomia, pode ele modificar conceitos de outros ramos do Direito (MACHADO, 2005, p. 99), ainda que conotados por idênticos signos lingüísticos (VELLOSO, 2005, p. 66).
A vertente da mutação conceitual a priori tenta responder à problemática da modificação, pela lei tributária, de conceitos pertencentes a outros ramos do ordenamento jurídico e ao se questionar se os institutos, conceitos e formas de Direito Privado, quando transpostos para o Direito Tributário, devem manter sua significação original, responde negativamente.
A mutação conceitual a priori defende que o Direito Tributário se vale apenas dos signos do Direito Privado, mas não das suas significações, que podem ser construídas de maneira autônoma, não guardando, necessariamente, correspondência com os conceitos de Direito Privado.
Diante dessa teoria, o legislador tributário tem a liberdade de alterar, além dos efeitos jurídicos tributários permitidos pela parte final do art. 109 do CTN, também a definição, o conteúdo eo alcance dos institutos, conceitos e formas de Direito Privado, utilizados expressa ou implicitamente pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
Desse modo, a mutação conceitual a priori das formas jurídicas possibilita que uma lei infraconstitucional amplie, modifique ou restrinja os conceitos constitucionais para definir as zonas de competências destinadas às pessoas políticas.
Entretanto, ambas as formas de expressão da teoria econômica do Direito Tributário tem suas limitações e não tem sido albergadas pelos tributaristas atuais nem pelo CTN que, na visão de Baleeiro (1999, p. 689), se apresenta tímido quanto à interpretação econômica: insinua-a, mas não a erige em princípio, proclamando, ao contrário, o primado do Direito Privado.
Heleno Torres (2003, p. 140 e 210) sugere o abandono da interpretação econômica, pois ela se destina a justificar arbitrariedades e desmandos, pois aplica normas em favor da Administração sob o manto da liberdade de qualificação dos atos e negócios jurídicos fazendo com que a Administração se situe fora do Estado de Direito, uma vez que seu interesse é que determina o direito da situação concreta.
Contrariamente ao que pensam os defensores nacionais das teorias da interpretação econômica do Direito Tributário, o art. 109 do CTN refere que os institutos do Direito Privado, quando referidos pela lei tributária, não se modificam (AMARO, 2004, 221-222), ou seja, sua definição, conteúdo e alcance são pesquisados de acordo com os princípios gerais de Direito Privado. Por exemplo, uma compra e venda, embora mencionada na lei tributária, é identificada como tal de acordo com os princípios de Direito Privado, isto é, continua sendo compra e venda também ao Direito Tributário, e o que não é compra e venda não passa a sê-lo no campo fiscal.
Para Amaro (2004, p. 224), a consideração do negócio jurídico subjacente é incapaz de transfigurar o negócio jurídico privado. Caso fosse permitida essa alteração, a parte inicial do art. 109 do CTN seria absolutamente ineficaz, pois o intérprete, em que pese obrigado a pesquisar a definição, o conteúdo e o alcance ditados pelo Direito Privado, não estaria obrigado a respeitar o resultado de sua pesquisa.
Portanto, o art. 109 do CTN autoriza o legislador tributário a atribuir a um instituto de Direito Privado – dentro dos limites constitucionais existentes – efeitos tributários peculiares. Caso o legislador não faça expressamente, não poderá o intérprete adaptar princípio ou instituto de Direito Privado para aplicar-lhes efeitos tributários especiais (BALEEIRO, 1999, p. 685).
Do mesmo modo deve ser feita a interpretação do art. 110 do CTN, ou seja, não como consagrador da interpretação econômica do Direito Tributário, mas como limitador da intervenção legislativa no exercício das competências tributárias (TORRES, 2003, p. 81).
Assim, somente a lei tributária, e não a autoridade administrativa, poderá alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de Direito privado quando não forem tipos constitucionalmente considerados como critérios para repartição de competências em matéria tributária.
Nogueira (1995, p. 82) destaca que no momento em que o fato gerador adota em sua concepção, como concretização ou base, a realização de uma situação jurídica, é no respectivo ramo do Direito e nos princípios gerais que se deve verificar se essa situação jurídica – ato ou negócio jurídico – já se constituiu e se já está produzindo efeitos. Assim, enquanto ainda não constituída essa situação jurídica, também não se completa o fato gerador que a tomou por causa material eficiente.
Para Becker (1998, p. 131), a utilização do primado da substância econômica destrói a certeza e a praticabilidade do Direito Tributário, pois inverte a própria fenomenologia jurídica e nega utilidade precisamente àquilo que é jurídico. Ao discorrer sobre o tema, Becker (1998, p. 133) refere que a teoria da busca da substância econômica do ato, quando da desconsideração das formas jurídicas, nada mais faz do que aplicar a analogia por extensão, que é a criação de regra jurídica nova, pois o intérprete, ao constatar que o fato por ele focalizado não realiza a hipótese de incidência da regra jurídica, por meio da analogia, estende ou alarga a hipótese de incidência da regra jurídica de modo a abranger o fato por ele focalizado contrariando, também, o disposto no § 1° do art. 108 do CTN.
A problemática inerente ao critério econômico resulta da antinomia entre a igualdade da tributação, à qual este método serve, e o imperativo da segurança jurídica. Todavia, deve-se preferir esta àquela sob pena de restarem afrontados os princípios da legalidade, da tipicidade e da anterioridade da lei, que se justificam pela segurança e certeza do Direito aplicável.
Percebe-se, dessa maneira, que a teoria da busca da substância econômica privilegia os princípios em detrimento das normas jurídicas constitucionais em matéria tributária, relegando estas a um segundo plano quando devem desempenhar papel primordial na construção dos significados constitucional-tributários.
Em relação à mutação conceitual, Velloso (2005, p. 70)destaca que o caráter a priori revela-se problemático em virtude de não dispor de critérios específicos à sua determinação e ser fator de insegurança por não preservar o postulado da unidade do ordenamento jurídico, bem como o Direito Tributário seria uma ilha isolada no mundo do Direito, pois haveria a necessidade de se atribuir definições ex novo para todos os signos empregados pela Constituição e pela legislação tributária.
Desse modo, ao dispor de conceitos quando da fixação da competência em matéria tributária, a Constituição Federal faz uso de signos próprios de outros ramos do ordenamento jurídico, não podendo, portanto, o intérprete ou o legislador infraconstitucional alterarem a seu bel prazer os conceitos constitucional-tributários.
Para isso, ao art. 110 do CTN funciona como limitador da discricionariedade do legislador ordinário, pois tendo este já recebido a competência, definida conforme aquele conceito, forma ou instituto privado, fica proibido de expandi-la por meio da atribuição de novo sentido ou predicação ao objeto delimitado pela Constituição (BALEEIRO, 1999, p. 691).
A contrario sensu, conceitos jurídicos ou lexicográficos que não tenham sido utilizados para definir a competência tributária podem ser alterados – para fins fiscais, é claro – pela lei tributária (AMARO, 2004, p. 216).
Por fim, ressalta Carvalho (1993, p. 80) que ainda que o CTN fosse omisso, ou seja, ainda que não houvesse a disposição do seu art. 110, a interpretação dos conceitos constitucional-tributários não seria diferente, pois o que se está a prestigiar com a desconsideração da mutação conceitual a priori é a hierarquia do ordenamento jurídico nacional.
2 Teoria do império do Direito Privado
A vertente do império do Direito Privado surge como oposição à interpretação econômica do Direito Tributário pretendendo submetê-lo aos princípios gerais do Direito que, à época, confundiam-se com os princípios do Direito Civil.
A proposta do império do Direito Privado é marcada pela postura individualista, típica do liberalismo, que tenta, a toda sorte, implantar a supremacia do Direito Civil, inicialmente sob a égide da jurisprudência dos conceitos (TORRES, 2003, p. 48).
No cenário jurídico nacional, destacam-se como seus defensores Alfredo Augusto Becker, Luciano Amaro, Geraldo Ataliba e Ruy Barbosa Nogueira, que difundem a ideia de incorporação prévia pela Constituição dos conceitos pertencentes a outros ramos do ordenamento jurídico quando da repartição das competências em matéria tributária.
Ainda que a doutrina defensora da ideia do primado do Direito privado reconheça o mal posicionamento do art. 110 no CTN, pois trata de regra de competência, e não de interpretação, apoia-se nesse dispositivo para justificar sua posição de apoio à prevalência do Direito Privado, bem como na sua conjugação com o previsto no art. 109 do CTN.
A justificativa centra-se no fato de que se a Constituição, quando da outorga de competências impositivas, menciona um vocábulo ou uma expressão já empregados pelo Direito Privado, o legislador não pode extrapolar os limites dos conceitos privados (VELLOSO, 2005, p. 89).
Amaro (2004, p. 216) ressalta que não seriam apenas conceitos do Direito Privado que deveriam prevalecer no âmbito tributário quando da fixação de competências, mas conceitos também oriundos de outros ramos do Direito, bem como os próprios conceitos léxicos que, quando utilizados para definição da competência tributária, não podem ser ampliados pela lei do tributo.
Dessa maneira, a lei tributária não pode, por exemplo, ampliar o conceito de veículo automotor, utilizado para definição da competência tributária estadual nos moldes da alínea c do inciso I do art. 155 da CF para fazê-lo abranger bicicletas ou animais.
Do mesmo modo deve ser a interpretação quando a Constituição estabelece imunidades tributárias. No caso da vedação da tributação de periódicos, a lei tributária não pode modificar o conceito de periódicos a fim de incluir ou excluir nele outras espécies de canais de comunicação. No campo das imunidades, como relata Amaro (2004, p. 100), a redução do conteúdo ou do alcance do conceito importa em ampliação infraconstitucional da esfera de competência.
No âmbito do STF, tem lugar a prevalência dos conceitos de Direito Privado na interpretação dos signos constitucional-tributários sob o fundamento de que as regras constitucionais impositivas de competência preveem ou incorporam conceitos que fixam balizas intransponíveis ao legislador infraconstitucional (ÁVILA, 2005, p. 77).
Nesse sentido, pode ser citado o RE 166.772, no julgamento do qual restou superada a pretensa tese da autonomia do Direito Tributário. Foi decidido que o vocábulo salário, contido no inciso I do art. 195 da CF, agasalha apenas a contribuição relativa à folha de salários, e não abrange as remunerações pagas a autônomos e administradores diante da inexistência do vínculo empregatício.
No julgamento do RE 203.075, o Tribunal do STF firmou entendimento, consolidado na sua Súmula 660, acerca da impossibilidade de incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) quando da importação de mercadorias por pessoa física destinada a uso próprio. O fundamento da decisão pode ser acompanhado no trecho do voto do Min. Maurício Correa (1998, p. 402):
[...] são hipóteses de incidência do ICMS a operação relativa à circulação e à importação de mercadorias, ainda quando se trate de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento. No ponto, o termo operação exsurge na acepção de ato mercantil; o vocábulo circulação é empregado no sentido jurídico de mudança de titularidade e não de simples movimentação física do bem, e à expressão mercadoria é atribuída a designação genérica de coisa móvel que possa ser objeto de comércio por quem exerce mercancia com frequência e habitualidade.
Todavia, essa orientação foi modificada quando do julgamento do RE 474.267 em virtude da alteração da alínea a do inciso IX do § 2° do art. 155 da CF/88 pela Emenda Constitucional 33/2001.
O Min. Joaquim Barbosa (2013, p. 4), ao proferir seu voto, referiu que o problema relativo ao critério para repartição da competência tributária (sujeição ativa) estaria superado, pois a nova redação da alínea a do inciso IX do § 2° do art. 155 da CF/88 não mais se ampara exclusivamente no estabelecimento, pois a expressão domicílio também se aplica às pessoas naturais e às entidades empresariais que não se dedicam ao comércio ou à indústria.
Na esteira do voto do Ministro Joaquim Barbosa, O Ministro Dias Toffoli referiu que não mais tem lugar a distinção entre bem e mercadoria para fins de incidência do ICMS, pois a alteração da alínea a do inciso IX do § 2° do art. 155 da CF/88 inseriu as expressões “bem”, “por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja sua finalidade” e “domicílio” fazendo com que as pessoas físicas e as sociedades civis fossem incluídas no âmbito de incidência do ICMS mesmo que o negócio jurídico da importação não se destine à atividade comercial ou industrial.
A análise do julgamento do RE 474.267 não permite concluir, por si só, que o STF tenha adotado outra teoria diversa da vertente do primado do Direito Privado quando de suas decisões, pois a mudança de entendimento veio na esteira da mudança da legislação pela EC 33/2001, que ampliou a hipótese de incidência do ICMS para incluir fatos que originalmente não eram albergados no seu suporte fático.
Humberto Ávila (2005, p. 74-77) ressalta que a norma relativa à competência para a criação de determinado imposto não é uma norma aberta, mas um tipo fechado, impedindo, portanto, o legislador de escolher a seu bel prazer um dos seus múltiplos sentidos sem lhe fixar balizar prévias ou núcleos mínimos de significação.
Em que pese adotada pela doutrina e pela jurisprudência do STF, a teoria do império do Direito Privado não está imune a críticas. Heleno Torres (2003, p. 80) discorda da ideia do reinado do Direito Privado perante o Direito Tributário fundada na ideia de que o Direito Tributário é um direito de segundo grau ou de superposição, pois o reenvio a outras matérias é inerente às normas de vários ramos como, por exemplo, o Direito Internacional Privado, o Direito Penal, o Direito Administrativo e o Direito Processual Civil.
A impossibilidade da acolhida integral da tese do primado do Direito Privado na seara tributária é defendida por Velloso (2005, p. 85) ao referir que a mera incorporação de conceitos previstos na legislação infraconstitucional revela-se inadequada, pois ou não proporciona um conceito acabado ou oferece um conceito incompatível com a Constituição Federal.
Velloso (2005, p. 329) refere também que não obstante a Constituição adote conceitos jurídicos formados no âmbito infraconstitucional, não há uma incorporação de tais conceitos em todos os casos, pois, se assim fosse, haveria uma autêntica subversão normativa mediante a adoção de forma incondicionada da interpretação da Constituição conforme as leis e ter-se-ia negada a possibilidade de os signos empregados na Constituição terem significados específicos, o que afetaria a supremacia material que lhe é inerente.
3 Teoria da incorporação prima facie de conceitos jurídicos preexistentes
Sob a denominação de incorporação prima facie dos conceitos jurídicos prévios à promulgação da Constituição Federal, foram reunidas a proposta da construção de conceitos autônomos, defendida pela teoria autonômica do Direito Tributário, e a máxima da incorporação de conceitos preexistentes, exteriorizada pela teoria do império do Direito Privado.
Conforme dispôs Heleno Torres (2003, p. 82), vige no Brasil o primado do Direito Constitucional especialmente quanto à tipificação das materialidades determinantes ao exercício das competências tributárias, o que, para a doutrina, é um óbice à importação de opiniões estrangeiras vinculadas à chamada autonomia qualificadora do Direito Tributário ou mesmo àquela do primado do Direito Privado, sem que antes se faça criterioso teste de compatibilidade com a Constituição.
A incorporação prima facie é capaz de fornecer respostas à questão relativa à recepção de conceitos preexistentes, bem como de viabilizar possíveis construções de conceitos autônomos pelo Direito Tributário.
A adoção dessa vertente interpretativa não subverte a hermenêutica constitucional de modo a interpretá-la conforme a legislação infraconstitucional. A Constituição Federal, quando recepciona signos e significações de outros ramos jurídicos, não está perdendo sua força normativa, mas exercendo-a, uma vez que pode se valer do instituto da incorporação quando da elaboração de suas normas pelo Poder Constituinte.
No dizer de Torres (2003, p. 78), o legislador tributário somente vai se limitar por uma espécie de princípio conservativo dos tipos e formas dos atos e negócios jurídicos de Direito Privado quando estes se encontrem relacionados com aqueles adotados pela Constituição Federal para a distribuição de competências tributárias, sem que isto implique reconhecer qualquer prevalência do Direito Privado sobre o Tributário, pois a prevalência é exclusivamente do Direito Constitucional.
Desse modo, a primeira regra que exsurge da teoria da incorporação prima facie é a de que a Constituição, ao delimitar a competência tributária das pessoas jurídicas de Direito Público interno, recepciona signos já existentes no uso linguístico comum, técnico ou jurídico, bem como seus correlatos significados. Tem-se uma presunção relativa, e não absoluta de incorporação de conceitos préviosde outros ramos do Direito pela Constituiçãosem deturpá-los.
Embora a incorporação seja a regra, excepcionalmente, reconhece-se que o sistema tributário acolhe conceitos diversos dos preexistentes, a partir da rejeição tácita ou expressa das significações advindas de outros ramos jurídicos e da consequente construção de conceitos autônomos.
[...] A regra da incorporação prima facie de conceitos preexistentes não é uma regra de prevalência de conceitos, mas uma regra dirigida contra a formação de conceitos sem uma fundamentação adequada. Ou seja, adotando-se essa regra, presume-se que a Constituição empregue os signos linguísticos em consonância com os usos linguísticos pré-constitucionais, sem lhes atribuir uma conotação particular (VELLOSO, 2005 p. 305).
Velloso (2005, p. 272) destaca que a Constituição não recepciona infinitos conceitos, mas apenas um significado correspondente ao termo ou expressão incorporado, não havendo, por exemplo, múltiplos conceitos de renda, de faturamento, de lucro, na seara constitucional-tributária.
“O reconhecimento da correspondência biunívoca entre signo e conceito num determinado contexto não importa, todavia, no acolhimento da tese da “única resposta correta” em matéria de interpretação constitucional” (VELLOSO, 2005, p. 26). Significa que, ao final da atividade interpretativa no plano dogmático, é possível que, em determinados casos, haja mais de um conceito que possa ser reconduzido ao signo constitucional. Todavia, ressalta Velloso (2005, p. 26) que a interpretação operativa pressupõe a adoção de uma única resposta, que deverá ser fundamentada adequadamente.
Na decisão proferida em sede do julgamento do RE 357.950 envolvendo os termos e expressões inseridos no subsistema constitucional tributário, o STF prestigiou a recepção prima facie dos conceitos jurídicos preexistentes, bem como sua interpretação em consonância com a Constituição Federal.
A decisão final no julgamento do RE 357.950, proferida pelo Pleno do STF, por maioria, foi no sentido de declarar a inconstitucionalidade do § 1° do art. 3° da Lei 9.718/98, que instituiu nova base de cálculo para a incidência do PIS (Programa de Integração Social) e da Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social).
Restou entendido pelo STF que o § 1° do art. 3° da Lei 9.718/98 dava novo conceito para faturamento (receita bruta) sobre o qual deveriam incidir as contribuições, pois a nova base de incidência passou a ser a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas.
Desse modo, o STF consolidou o entendimento de que o conceito de receita bruta ou faturamento é aquele definido na Lei Complementar n° 70/91, ou seja, é decorrente da venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços, não albergando receita de natureza diversa.
Portanto, depreende-se do teor da decisão proferida no RE 357.950, a recepção de um único conceito pelo Direito Constitucional Tributário, seja pelo signo não possuir outro conceito, jurídico ou extrajurídico, correlato, seja por não ser possível a alteração da base de incidência do fato jurídico tributário, a fim de enquadrar hipóteses ali não disciplinadas.
Desse modo, deve ser invocada a unidade do ordenamento jurídico para dirimir a controvérsia, pois, no dizer de Velloso (2005, p. 278), se a ordem jurídica é um todo que se pretende coerente e harmônico, não se deve presumir que a propriedade que se sujeita à imposição tributária seja diversa da propriedade do Direito Civil e se identifique com a propriedade da linguagem comum, por exemplo, e tampouco que os salários não sejam aqueles de que trata a legislação trabalhista, mas aqueles do uso corrente, que abrange qualquer remuneração por serviços prestados.
Todavia, há casos em que o ordenamento jurídico alberga conceitos que, embora diversos, são designados por um mesmo termo. Isto é, sob um mesmo signo repousam distintos conceitos jurídicos.
Essa coexistência de dois ou mais conceitos dá azo a dúvidas quanto ao modo de escolha do conceito que deve prevalecer. A solução ultrapassa a questão da mera incorporação de conceito prévio ou da formação de conceito autônomo, para se precisar qual conceito deve prevalecer em caso de polissemia: se o autônomo ou o extrajurídico.
A vertente da incorporação prima facie aponta a resposta de que a incorporação é de tão-só um único conceito, repelindo as possibilidades de recepção dúplice ou múltipla de significados pelos signos constitucionais. Deve-se atentar, portanto ao fato de que, se um termo disposto na Constituição para fins de delimitação das competências tributárias possuir dois ou mais conceitos, ambos jurídicos e pré-constitucionais, a teoria da incorporação prima facie carecerá de critérios suficientes para determinar qual o conceito que deve ser efetivamente recepcionado pela Constituição.
A alternativa é a investigação do contexto no qual estão inseridos esses significados jurídicos a fim de se precisar qual o sentido que vem impregnado ao signo. Como exemplo, pode-se citar novamente o julgamento do RE 166.772-9, o qual evidencia a relevância do contexto de significado para a solução de ambiguidades, inclusive aquelas que são decorrência da coexistência de conceitos jurídico-infraconstitucionais (VELLOSO, 2005, p. 285).
Todavia, há casos em que a polissemia ou ambiguidade decorre da coexistência de um significado jurídico e de outro extrajurídico. A importância dos conceitos extrajurídicos é revelada pela incapacidade de o Direito abarcar todos os conceitos relativos ao critério material da hipótese de incidência dos tributos, pois eles estão ligados a categorias ou a conceitos econômicos, contábeis, tecnológicos, e não apenas a significados jurídicos, ou seja, “tanto as formulações linguísticas constitucionais quanto as infraconstitucionais podem conotar conceitos de origem extrajurídica, e não apenas conceitos originários da linguagem-jurídica” (VELLOSO, 2005, p. 297).
Assim, quando coexistentes conceitos jurídicos e extrajurídicos, resta saber qual será preterido e qual será o prevalecente, alertando-se, todavia, que não há consenso entre as manifestações doutrinárias e jurisprudenciais.
Velloso (2005, p. 299-300) destaca que não há como ser sustentada a prevalência a priori do significado comum e, nem mesmo, uma regra de prevalência prima facie nesse sentido, pois não há predominância significativa dos conceitos extrajurídicos comuns e tampouco princípios que fundamentam essa prevalência, bem como, pelos mesmos motivos, não há razões bastantes para sustentar-se uma prevalência prima facie do significado técnico.
Destaca-se, ainda, que pelo fato de ser dotada da característica da relatividade, a teoria da incorporação prima facie dos conceitos preexistentes pode ser preterida em determinadas situações como, por exemplo, diante de conceitos constitucionais autônomos, identificados como aqueles que não possuem correlação no Direito infraconstitucional, nem no uso linguístico comum nem no técnico.
Deve-se anotar que o subsistema constitucional de competências tributárias não cede espaço à construção de conceitos autônomos em sentido estrito, que são aqueles que podem ser definidos como não relacionados a nenhum conceito anterior ao qual possa ser reconduzido o signo linguístico.
A Constituição Federal atual faz uso de conceitos constitucionais autônomos modificados, ou seja, se vale de determinado conceito preexistente como base e o utiliza como fundamento para a construção de um novo significado.
Em regra, o conceito base identifica-se com o conceito prévio e é reconhecido por todas as teorias interpretativas dos enunciados constitucional-tributários, ora negando sua existência – teoria da autonomia extremada do Direito Tributário – ora impondo, inflexivelmente, sua adoção – teoria do primado do Direito Privado.
Por fim, Velloso (2005, p. 308) destaca que são os conceitos constitucionais autônomos modificados os mais problemáticos porque, além de suporem uma resposta negativa em relação à incorporação de conceitos pré-constitucionais, demandam a identificação de um conceito-base, que, mediante a adição ou exclusão de certas propriedades, foi convolado pela Constituição num conceito autônomo, trazendo consigo, ao menos potencialmente, toda a problemática da coexistência de conceitos preexistentes e, também, da mutação conceitual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depreende-se, das normas constitucionais impositivas de competências tributárias, a presença do aspecto material da hipótese de incidência dos tributos. Tal critério traz em seu bojo nomes e conceitos que influenciam na delimitação do campo de incidência do tributo.
Conforme os interesses dominantes, construíram-se teorias interpretativas que tentam explicar qual o conceito relativo ao termo ou expressão constitucional-tributária que deve prevalecer.
A primeira teoria abordada neste trabalho refere-se à interpretação econômica do Direito Tributário, que se divide em duas vertentes: a desconsideração a priori das formas jurídicas, que prega a desconsideração geral, para a qual apenas interessa o substrato econômico do ato e a mutação conceitual a priori, defensora da autonomia do Direito Tributário, defensora da necessária transformação dos conceitos infraconstitucionais extra tributários.
Todavia, essas abordagens da teoria da interpretação econômica do Direito Tributário apenas favorecem à Administração Pública e conflitam com os princípios da legalidade estrita em matéria tributária, da capacidade contributiva subjetiva, da anterioridade, da propriedade privada, entre outros. Também não é possível aderir a essas vertentes em virtude de que o Direito Tributário não é autônomo em relação ao Direito Privado, mas coexistente, pois ambos estão sob o império da Constituição Federal, demonstrando a unidade do ordenamento jurídico e a inter-relação das normas dos diferentes ramos do Direito.
Contrariamente às teorias econômicas, que alargam a hipótese de incidência dos impostos, a teoria do império do Direito Privado restringe – e muito – as possibilidades de interpretação dos signos constitucionais. A incorporação conceitual a priori prega que os institutos, conceitos e formas emanados do Direito Privado e recepcionados pela Constituição Federal ao delimitar as competências tributárias devem ser incorporados tal qual estão dispostos no ramo privado de origem, impedindo qualquer alteração ou importação de outro ramo do Direito infraconstitucional.
Entretanto, essa corrente é difícil de adoção em virtude de que nem sempre os signos e seus correlatos conceitos emanam do Direito Privado. Ainda, outro ponto contrário à sua defesa é a possibilidade de afronta direta à supremacia normativa da Constituição, que pode se valer apenas do signo, e não de seu correspondente significado quando da elaboração das normas constitucionais atributivas de competências tributárias.
Especula-se que a terceira teoria, denominada de incorporação prima facie, seja a mais condizente com a Constituição Federal, pois não confere tão amplos poderes nem ao legislador nem ao administrador, bem como não restringe as possibilidades de recepção de conceitos dos demais ramos do Direito infraconstitucional.
Desse modo, a interpretação parte da busca do significado literal do texto, ou seja, determina-se o uso linguístico, que não pode ser desconsiderado sob pena de desvinculação do interprete do próprio texto e de criação arbitrária de conceitos.
Caso não seja possível determinar o significado literal do texto, busca-se o contexto de significado, que se evidencia quando há coexistência de dois ou mais conceitos jurídicos preexistentes e conotados por um mesmo nome incorporado pela Constituição Federal, prestigiando-se a unidade do ordenamento jurídico.
O terceiro momento hermenêutico utiliza-se dos princípios constitucionais, ou seja, afasta-se a análise principiológica para um momento posterior sob pena de descaracterizar alguns impostos e permitir exações tributárias sem respaldo constitucional, o que acabaria por subverter o processo interpretativo e possibilitar dissonâncias dentro do sistema jurídico.
Desse modo, o retorno à interpretação que se inicia com a Constituição deve ser privilegiado sob pena de os usos linguísticos, jurídicos, técnicos ou ordinários, incorporados à Carta Magna, continuarem a ser desconsiderados em nome da interpretação (pan)principiológica.
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Mestranda em Direito, Democracia e Sustentabilidade pelo Complexo de Ensino Superior Meridional (IMED); especialista em Direito Processual Civil pela LFG - Anhanguera; especialista em Direito Público pela PUC/RS; graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS); membro do grupo de pesquisa intitulado "Jurisdição e Democracia", vinculado à IMED; Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOSS, Marianna Martini Motta. A interpretação dos signos constitucional-tributários: os institutos, conceitos e formas de direito privado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42519/a-interpretacao-dos-signos-constitucional-tributarios-os-institutos-conceitos-e-formas-de-direito-privado. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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