O presente artigo tem por objetivo realizar uma breve análise acerca das transferências obrigatórias realizadas dentro do âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)e o limite da abrangência da fiscalização realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em relação às citadas transferências.
Nos termos do art. 70 da Constituição Federal, a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas é exercida, mediante controle externo, pelo Congresso Nacional, cabendo ao Tribunal de Contas da União (TCU) auxiliá-lo nesse desiderato.
As competências específicas do Tribunal de Contas da União (TCU) foram elencadas no art. 71 da Lei Máxima, merecendo especial destaque, para o estudo ora em desenvolvimento, a inserta em seu inciso VI:
Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;
III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;
IV - realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II;
V - fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo;
VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município; (grifou-se)
VII - prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;
VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;
IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;
X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;
XI - representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.
A Lei nº 8.443, de 16 de julho de 1992, que dispõe sobre a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (TCU) e dá outras providências, praticamente reproduz o comando constitucional no inciso VII de seu art. 5º, para estabelecer que a jurisdição do Tribunal abrange “os responsáveis pela aplicação de quaisquer recursos repassados pela União, mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município”.
Percebe-se que tanto o texto constitucional quanto o legal conferem competência ao Tribunal de Contas da União (TCU) para fiscalizar os recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, nada falando dos repasses (ou transferências, haja vista a ausência de uniformidade dos normativos legais e infralegais quando da utilização dos termos) na modalidade fundo a fundo, de forma regular e automática.
Ao dispor sobre as normas relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse, o Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007, por sua vez, conceitua convênio como sendo o “acordo, ajuste ou qualquer outro instrumento que discipline a transferência de recursos financeiros de dotações consignadas nos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União e tenha como partícipe, de um lado, órgão ou entidade da administração pública federal, direta ou indireta, e, de outro lado, órgão ou entidade da administração pública estadual, distrital ou municipal, direta ou indireta, ou ainda, entidades privadas sem fins lucrativos, visando a execução de programa de governo, envolvendo a realização de projeto, atividade, serviço, aquisição de bens ou evento de interesse recíproco, em regime de mútua cooperação”.
Destarte, frente à acepção atribuída ao termo “convênio” pelo Decreto nº 6.170/2007, é evidente que as transferências (ou repasses) de recursos fundo a fundo, de forma regular e automática, não podem ser enquadradas como “outros instrumentos congêneres”, mencionados no inciso VI do art. 71 da Constituição Federal e no inciso VII do art. 5º da Lei nº 8.443/92, a fim de justificar a competência do TCU para fiscalizar a execução dos mesmos.
A questão se torna ainda mais evidente quando analisada de forma sistematizada com a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF), que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, e a Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, que regulamenta o § 3º do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo.
O “caput” do art. 18 da Lei Complementar nº 141/2012 estabelece que os recursos do Fundo Nacional de Saúde, destinados a despesas com as ações e serviços públicos de saúde, de custeio e capital, a serem executados pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios serão transferidos diretamente aos respectivos fundos de saúde, de forma regular e automática, dispensada a celebração de convênio ou outros instrumentos jurídicos. Anteriormente, no § 3º do art. 17 do mesmo diploma legal, já restara consignado que o Poder Executivo manterá os Conselhos de Saúde e os Tribunais de Contas de cada ente da Federação informados sobre o montante de recursos previsto para transferência da União para Estados, Distrito Federal e Municípios, com base no Plano Nacional de Saúde e no termo de compromisso de gestão firmado entre a União, Estados e Municípios.
Ora, a própria intelecção dos dispositivos supracitados deixa claro que a vontade do legislador foi de atribuir a competência pela fiscalização dos recursos da União, repassados de forma regular e automática, na sistemática fundo a fundo, dentro do âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), aos respectivos Tribunais de Contas dos entes da federação beneficiados, uma vez que tais recursos se encontram em seus respectivos fundos de saúde e sob a responsabilidade de execução de seus respectivos gestores.
Essa atribuição de competência nos parece, inclusive, lógica, tendo em vista a literalidade desses dispositivos e os preceitos constitucionais e legais atinentes à espécie. O art. 75 da Constituição Federal estabelece, categoricamente, em consonância com o princípio da simetria, que as disposições referentes ao Tribunal de Contas da União (TCU) aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como aos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.
Não se discute que a origem dos recursos repassados pela União a outros entes da federação no âmbito do SUS, nos termos do art. 18 da Lei Complementar nº 141/2012, seja federal, muito pelo contrário, ratifica-se esse entendimento. É óbvio que tais recursos compõem o mínimo constitucional que a União deve aplicar em ações e serviços públicos de saúde (art. 198, § 2º, I, da CF, c/c art. 5º da LC nº 141/2012) e devem ser considerados para fins de apuração da receita corrente líquida (RCL) (art. 2º, IV, da LRF), em nada se assemelhando com a repartição constitucional de receita tributária.
Apenas defende-se que, considerando as peculiaridades que envolvem os repasses (ou transferências) no âmbito do SUS, uma vez aperfeiçoados estes, na forma autorizada por lei, cumpre ao Tribunal de Contas responsável pelas contas do ente da federação beneficiado fiscalizar a execução dos recursos.
Acredita-se que a fiscalização do TCU deve se processar,no que tange a esses recursos, sob um prisma finalístico e não de execução. O TCU deve fiscalizar se a finalidade pactuada com o correspondente ente da federação beneficiário do recurso federal foi alcançada, e não se o meio por ele empregado para a consecução da finalidade foi adequado. Trata-se, exatamente, de uma competência fiscalizatória concorrente. No âmbito dessa competência concorrente, competiria ao TCU a fiscalização da efetividade da aplicação dos recursos federais transferidos na consecução da ação ou serviço público de saúde que a fundamentou, assim como a apuração da conduta do gestor federal na cobrança do cumprimento dos termos pactuados para transferência dos recursos. Ao Tribunal de Contas do ente beneficiado competiria a fiscalização da execução propriamente dita dos recursos, ou seja, se o modus operandi foi adequado ou não.
Fica ainda mais claro que a Lei Complementar 141/2012 tencionou tratar a sistemática de transferências fundo a fundo de forma dissociada das transferências por convênios e instrumentos correlatos, inclusive para fins de fins de fiscalização, quando nos deparamos com as disposições do parágrafo único de seu art. 18, que autoriza, em situações especiais, que os recursos federais sejam repassados, por meio de transferência voluntária realizada entre a União e os demais entes da Federação, adotados quaisquer dos meios formais previstos no inciso VI do art. 71 da Constituição Federal, observadas as normas de financiamento. É patente a cisão entre as transferências regulares e automáticas realizadas na modalidade fundo a fundo e as realizadas por convênio ou instrumentos congêneres.
Sendo assim, é inquestionável a competência do TCU para fiscalizar plenamente (controle de execução e de finalidade) as transferências da União procedidas segundo os ditames do parágrafo único do art. 18 da Lei Complementar nº 141/2012, conforme inteligência do inciso VI do art. 71 da Constituição Federal e inciso VII do art. 5º da Lei n° 8.443/1992, mas a competência para fiscalizar as transferências da União realizadas com base no “caput” do art. 18 da Lei Complementar nº 141/2012 deve se limitar à consecução da finalidade do repasse.
Merece especial destaque as acomodações do art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que exclui do conceito de transferência voluntária aquelas destinadas ao SUS. De fato, cria-se, de forma expressa, uma transferência obrigatória sui generis, eis que, apesar de obrigatória por determinação legal, sujeita-se ao cumprimento, pelo ente beneficiário, de determinados requisitos ou condições para se aperfeiçoar. Difere da tradicional transferência obrigatória na medida em que esta é incondicionada, mas não deixa de ser uma espécie de transferência obrigatória.
A Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, em seu art. 11, estabelece que as transferências obrigatórias realizadas pela União, para outros entes da federação, devem ser consideradas como receita dos respectivos entes, se realizadas para atender despesas classificadas como correntes ou de capital. Assim, as transferências obrigatórias sui generis implementadas no âmbito do SUS são, para fins de fiscalização, receitas dos respectivos entes beneficiários.
Outro ponto a ser observado, refere-se à divisão de competências para gestão do Sistema Único de Saúde (SUS).
Conforme se depreende das disposições constitucionais e legais, as ações e serviços públicos de saúde constituem um sistema único e integram uma rede regionalizada e hierarquizada, cumprindo aos Estados e Municípios a maior parte da execução dessas ações e serviços. Dentro desse Sistema, ações são pactuadas entre os entes da federação e recursos transferidos da União para Estados, Distrito Federal e Municípios. Esses recursos transferidos pela União a outros entes da federação muitas vezes são acrescidos de recursos próprios dos entes beneficiários para a consecução das ações e serviços públicos de saúde. Uma vez transferidos os recursos federais, ainda que de forma condicionada ao cumprimento de determinada obrigação, a execução desse recurso para o atingimento da finalidade da transferência fica a cargo do ente beneficiário e não da União. A esta só interessa a satisfação da obrigação.
Destarte, é coerente que a fiscalização da execução dos recursos federais transferidos fique sob a responsabilidade do Tribunal de Contas com “jurisdição” sob o ente beneficiário, restando à União e ao Tribunal de Contas da União responsável pela fiscalização de seus recursos tão somente o controle finalístico.
Sendo assim, a partir de uma análise sistemática das normas constitucionais e legais atinentes à discussão em pauta, entende-se que as competências fiscalizatórias do Tribunal de Contas da União, fixadas no art. 71 da Constituição Federal, devem ser interpretadas de forma a não usurpar as competências dos Tribunais de Contas dos demais entes da federação, asseguradas pelo art. 75 da mesma Carta Constitucional.
Logo, considerando que o art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal exclui das transferências voluntárias aquelas destinadas ao SUS, o que as torna, a priori, uma espécie de transferência obrigatória; a clara distinção estabelecida, pelo art. 18 e seu parágrafo único, da Lei Complementar nº 141/2012, entre as sistemáticas de repasse de recursos na modalidade fundo a fundo (entre fundos de saúde) e a decorrente de convênios ou instrumentos congêneres; as disposições do art. 11 da Lei nº 4.320/1964, que entende como receitas dos respectivos entes da federação as transferências realizadas para atender despesas correntes ou de capital; e o fato de que a efetiva execução dos recursos não é realizada pelo gestor federal, mas, sim, pelo estadual, a competência dos Tribunais de Contas responsáveis pela fiscalização do ente beneficiário dos recursos originariamente federais, responsável pela execução dos mesmos, nos parece inquestionável no que tange à execução propriamente dita, sob pena de mácula ao pacto federativo.
Procurador Federal. Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Potiguar.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Clélio de Oliveira Corrêa Lima. As transferências obrigatórias no âmbito do sistema único de saúde e os limites fiscalizatórios do Tribunal de Contas da União Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42520/as-transferencias-obrigatorias-no-ambito-do-sistema-unico-de-saude-e-os-limites-fiscalizatorios-do-tribunal-de-contas-da-uniao. Acesso em: 23 dez 2024.
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