RESUMO: O presente artigo procura apresentar os principais elementos do contexto histórico e da prática do Direito no paradigma moderno do Estado Liberal de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Estado Liberal de Direito. Contexto histórico. Interpretação e Aplicação do Direito.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O Direito é um constructo social e, enquanto tal, sujeita-se às mudanças do tempo. Logo, sua prática tem caráter histórico, mudando com a dinâmica do tempo e da história.
Habermas[1] identifica historicamente três paradigmas de Estado modernos – o Estado Liberal, o Estado Social e o Estado Democrático de Direito. Cada um desses paradigmas possui um contexto histórico próprio, que segue acompanhado de um modo também específico de pensar e aplicar o Direito. Conquanto tal classificação seja um reducionismo histórico, a identificação de tais marcos é bastante útil, pois possibilita a marcação de diferenças e de aprendizados de um paradigma em relação ao outro.
O objetivo do presente artigo é explorar, assim, os principais elementos do contexto histórico e da prática do Direito no paradigma moderno inicial, qual seja, o Estado Liberal de Direito.
2. O ESTADO LIBERAL DE DIREITO: CONTEXTO HISTÓRICO E PRÁTICA JURÍDICA
Com as inspirações do Iluminismo e as ações que culminaram com a Revolução Francesa, teve fim a visão de mundo pré-moderna, feudal, fundada em bases religiosas.
Nos passos de Carvalho Netto e Scotti (2011, p. 89-91), pode-se dizer que nas sociedades pré-modernas ou tradicionais, a religião servia de base e de feixe aglutinador de um sistema normativo indiferenciado (entre Moral, Política e Direito), que, dado seu caráter divinizado, constituía ou regia sociedades estáticas e rígidas.
Dada a naturalização divina, os privilégios de uns sobre os outros se perpetuavam, por serem inquestionáveis e imutáveis. Não havia alternativas às práticas sociais legitimadas por uma ordem divina.
Com a modernidade e o advento do projeto iluminista, a religião deixa de ser o fundamento absoluto e unitário do mundo (e de uma única visão de mundo ou de projeto de vida) e passa a ser um direito individual.
A diluição do fundamento único de mundo possibilita um pluralismo religioso, político e social que culmina com a “invenção do indivíduo” moderno e iluminado, detentor de autonomia, de sorte que todos passam a ser considerados livres e iguais. Antes da autonomia dos indivíduos, não havia que se falar em projetos de vida próprios, já que a cada um era destinado um papel social divinamente posto e inquestionável. Com isso, os homens coexistiam em sociedade, de acordo com os papéis que lhes estavam destinados. E isso era inquestionável.
Com a substituição do modo de pensar por meio da religião pelo modo de pensar racional do Iluminismo, no qual o sujeito, ele próprio, é considerado proprietário de uma fração ideal das verdades do mundo – o “penso, logo existo”, de Descartes -, tem-se, como consequência, que o Direito, racionalmente pensado, produziria as “verdades matemáticas”, que deveriam a todos serem aplicadas e de todos cobradas. Essa era a base do jusracionalismo, que pôs abaixo o Antigo Regime e que precedeu o positivismo.
Esse jusracionalismo, contudo, entrou em crise, porque, “embora cada jurista considerasse que as regras que ‘descobria’ eram universalmente válidas, cada um deles construía um sistema diferente, fundado em seus próprios preconceitos”, pois, aquilo que lhes parecia evidente, terminava por consubstanciar as regras-base de sua cultura ou ideologia (COSTA, 2008, p. 168-169).
Esse tipo de pensamento terminava por gerar instabilidade jurídica, já que, na busca de suas verdades, cada jurista estaria habilitado a solapar o direito imposto pelo Estado. Para que isso fosse evitado, prossegue Costa (2008, p. 169-170), ganhou terreno o mito da representatividade popular dos parlamentos, de forma que somente aos parlamentos seria dada a prerrogativa de revelar as verdades naturais do Homem (Direito Natural), por meio de regras gerais e abstratas (as leis), cabendo aos juízes – que não tinham a dita representação popular – simplesmente aplicá-las, ditando-as no caso concreto. O acesso do juiz ao Direito Natural passou a ser mediado pelas leis – válidas porque refletoras do Direito Natural e aprovadas pelo Parlamento.
A garantia da liberdade e da igualdade reconhecidas ocorre, assim, através das constituições e do estabelecimento de regras gerais e abstratas, igualmente válidas para todos.
Às constituições cabia a função de organizar o poder (o direito público), ou seja, de formalizar e instrumentalizar a convenção ou o pacto entre governantes e a burguesia vitoriosa, de maneira a garantir o status quo do Estado de Direito (ou da legalidade) e seu livre desenvolvimento, evitando-se tanto o retorno à situação anterior dos regimes absolutistas, quanto a intromissão do Estado no novo regime estabelecido[2]. Aos indivíduos foram garantidos direitos de liberdade, não só de uns em relação aos outros (já que todos iguais, perante a lei), mas, sobretudo, em face do Estado, que deveria abster-se de se imiscuir na vida dos cidadãos. Ao Estado – agora apartado da religião - restou a incumbência de garantir a ordem, a liberdade privada dos cidadãos, bem como a imposição e cogência das regras gerais e abstratas.
Assim, o paradigma do Estado de Direito ao limitar o Estado à legalidade, ou seja, ao requerer que a lei discutida e aprovada pelos representantes da “melhor sociedade” autorize a atuação de um Estado mínimo, restrito ao policiamento para assegurar a manutenção do respeito àquelas fronteiras anteriormente referidas e, assim, garantir o livre jogo da vontade dos atores sociais individualizados, vedada a organização corporativo-coletiva, configura, aos olhos dos homens de então, um ordenamento jurídico de regras gerais e abstratas, essencialmente negativas, que consagram os direitos individuais ou de 1ª geração, uma ordem jurídica liberal clássica (CARVALHO NETTO, 1999, p. 479).
Partindo-se, assim, da diretriz geral da autonomia - juridicamente corporificada na ideia de que o que não é proibido está permitido - quanto menos regras houvesse, mais liberdade haveria, de sorte que às regras gerais e abstratas (impostas pelo Estado na forma de leis), devidamente sistematizadas, posto que encartadas em códigos (o direito privado), caberia a função de concretizar aquelas “verdades matemáticas inerentes a todo e qualquer indivíduo: os direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade privada” (CARVALHO NETTO, 1999, p. 478)[3].
Diante de todo esse contexto de instituição de um sistema de regras fixas, as consequências para a aplicação do direito não poderiam ser outras senão as de que os juízes seriam apenas a boca da lei, ou seja, para solução dos conflitos que lhes fossem submetidos deveriam agir como mecânicos, limitando-se apenas a subsumir os fatos à correlata disposição legal reguladora, a qual deveria ter seu alcance atingido por simples leitura sintática direta de seu texto. Afinal, as regras/leis estariam legitimadas, formalmente, pela produção do parlamento representativo e o sancionamento estatal e, materialmente, por albergarem “verdades do mundo”.
Os juízes adotam, assim, uma postura própria do positivismo, que se caracteriza, segundo nos informa Costa (2008, p. 171-172), pela eleição de um objeto empírico próprio (as leis, o direito positivo), por uma base teórica comum (teoria geral do direito) e por métodos específicos voltados à compreensão objetiva do direito positivo (no positivismo jurídico inicial, sobretudo a interpretação gramatical ou sintática). Os juristas limitavam-se, assim, a descrever o direito vigente.
3. CONCLUSÃO
Autonomia, liberdade e igualdade formal dos indivíduos; possibilidade de apreender em textos legais (códigos) a regulação plena da vida das pessoas, enquanto verdades imutáveis; Direito como conjunto ou sistema de regras; e interpretação sintática ou mesmo desnecessidade de interpretação, dada a clareza e certeza da lei/direito: esses eram os elementos-chave que ditavam o modo de interpretar/aplicar o Direito sob o signo do Estado Liberal de Direito.
REFERÊNCIAS
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 3, p. 473-486, 1999.
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método: diálogos entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica. Brasília: UnB, 2008. 421 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. v. II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
[1] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. v. II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
[2] Prossegue Carvalho Netto (1999, p. 478) destacando que “[...] em face do Direito Privado, reino por excelência daquelas verdades evidentes, o Direito Público, ao variar, em seus detalhes, de país para país, é visto como mera convenção, pois da ‘sociedade política’ deveria participar apenas a ‘melhor sociedade’, convencionalmente estabelecida pelo requisito de renda mínima para o exercício do voto, bem assim pelos critérios mínimos crescentes de renda censitariamente escalonados para que alguém pudesse se candidatar a cargos públicos nacionais, regionais e locais”.
[3] É ainda de Carvalho Netto (1999, p. 477) a observação de que “as intuições da moral individual racionalista, vistas como verdades matemáticas inquestionáveis, colocam em xeque a tradição, agora reduzida a meros usos e costumes sociais, que, para os homens da época, só podem ser explicados como o resultado da corrupção histórica e que, assim, deviam ser alterados pela imposição de normas racionalmente elaboradas pelos homens enquanto sujeitos de sua história, inaugurando ou remodelando um tipo recente de organização política, os Estados nacionais, espaços laicos de definição e imposição dessas regras racionais que deveriam reger impositivamente a organização e a reprodução social, a normatividade propriamente jurídica. O Direito, enquanto essa normatividade específica, diferenciada e decorrente de ideias abstratas consideradas verdadeiras por evidência, como analisa Marcuse, só poderia ser compreendido agora como um ordenamento de leis racionalmente elaboradas e impostas à observação de todos por um aparato de organização política laicizado”.
PROCURADOR FEDERAL. GRADUADO EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Igor Chagas de. Interpretação e Aplicação do Direito no Paradigma do Estado Liberal de Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42521/interpretacao-e-aplicacao-do-direito-no-paradigma-do-estado-liberal-de-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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