RESUMO: O artigo destina-se a elucidar o tema da responsabilidade civil do indígena.
Palavras-chave: Índios. Tutela. FUNAI.Constituição Federal de 1988. Responsabilidade Civil.
Tema que ainda vacila na jurisprudência pátria é o da responsabilidade civil do índio, calcada, sobretudo, na ideia de que a Fundação Nacional do índio – FUNAI ainda tutela a pessoa do índio e, portanto, estariaa responsabilidadefundamentada nos termos dos arts. 7º do Estatuto do Índio combinado com os arts. 932 e 933 do Código Civil[1], in verbis:
Lei 6.001/73
Art. 7º Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido nesta Lei.
§ 1º Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber, os princípios e normas da tutela de direito comum, independendo, todavia, o exercício da tutela da especialização de bens imóveis em hipoteca legal, bem como da prestação de caução real ou fidejussória.
§ 2º Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas.
Código Civil
Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;
Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.
É o que nos demonstra parte da jurisprudência:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ENFERMEIRO MORTO POR ÍNDIO NA RESERVA INDÍGENA YANOMAMI. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA FUNAI. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DA UNIÃO. DANOS MATERIAL E MORAL CONFIGURADOS. VALOR DA INDENIZAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. A FUNAI, como fundação pública, é entidade da administração indireta que detém personalidade jurídica própria e, se condenada, arcará com a indenização respectiva sem que haja interferência da União. 2. A Funai responde civilmente pelos danos causados por índios a terceiro, vítima de homicídio, vez que compete a ela a tutela e a proteção das comunidades indígenas (art. 231, CF/88 e Lei 5.371/67), sendo responsável pelos danos decorrentes de sua omissão na tutela respectiva. Ilegitimidade passiva da União Federal. (...)7. Apelação da União provida para reconhecer sua ilegitimidade passiva. 8. Apelação da parte autora parcialmente provida para majorar a indenização. 9. Remessa oficial parcialmente provida.(AC 0000982-20.2004.4.01.4200 / RR, Rel. JUIZ FEDERAL MARCIO BARBOSA MAIA, 4ª TURMA SUPLEMENTAR, e-DJF1 p.513 de 11/09/2013)
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO CAUSADO POR INDÍGENA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DA UNIÃO. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DA FUNAI. PERDA DE MOVIMENTO DOS MEMBROS INFERIOS (PARAPLEGIA). REDUÇÃO DA CAPACIDADE LABORATIVA. DANO MORAL E MATERIAL. CONFIGURAÇÃO. RESPONSABILIZAÇÃO DA FUNAI. INDENIZAÇÃO. RAZOABILIDADE. 1. Pretende o autor, ora apelado, indenização por danos morais e materiais em decorrência de ferimento a bala causado por indígena da Reserva São José, dos Índios Krikati, próxima ao Município de Montes Altos/MA. 2. Sendo a FUNAI entidade da administração pública indireta, com personalidade jurídica própria, possuindo recursos financeiros para arcar com eventual condenação indenizatória, não há razão para manter a União na causa. 3. O ato é admitido pelo indígena - o qual está respondendo criminalmente pelo evento -, que diz ter ido ao encontro da vítima e, a encontrando, efetuou contra ela, de imediato, um disparo de rifle calibre 38, atingindo-a no tórax. O exame de corpo de delito atesta que o projétil transfixou o tórax do apelado, entrando pela região axilar esquerda e alojando-se próximo à bacia. O projétil atingiu a coluna vertebral do apelado, "tornando-o paraplégico da cintura para baixo em caráter irreversível", o que evidencia nexo entre o dano e a conduta do índio tutelado da FUNAI. (...)7. Parcial provimento à remessa oficial e à apelação da União para excluí-la da causa. 8. Deverá a autora pagar honorários advocatícios à União, fixados em R$ 1.000,00 (mil reais). 9. Desprovimento da apelação da FUNAI.(AC 0000238-67.2004.4.01.3701 / MA, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA, QUINTA TURMA, e-DJF1 p.676 de 24/05/2013)
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. LESÃO CORPORAL CAUSADA POR ÍNDIOS SURUÍ SORORÓS SEM SEQUELA PERMANENTE. LEGITIMIDADE PASSIVA DA FUNAI. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DANOS MATERIAIS NÃO COMPROVADOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. JUROS DE MORA. APLICAÇAO DO ARTIGO 1º-F DA LEI 9.494/97. 1. Não se reconhece a ilegitimidade passiva da FUNAI, uma vez que segundo estudos acadêmicos os índios SuruíSororós não integram a comunhão nacional, cabendo à FUNAI responder por alegados danos causados por eles a terceiros. Precedente: AC 2006.36.00.017284-6/MT, Relator Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida, Quinta Turma, e-DJF1 p.314 de 31/07/2008. 2. Está estabelecido o nexo de causalidade entre a ação dos silvícolas e os danos extrapatrimoniais causados aos autores - de modo que caracterizada a responsabilidade civil da FUNAI por omissão na tutela da comunidade indígena.(...)7. Dá-se parcial provimento aos recursos de apelação.(AC 0001081-48.2003.4.01.3901 / PA, Rel. JUIZ FEDERAL RODRIGO NAVARRO DE OLIVEIRA, 5ª TURMA SUPLEMENTAR, e-DJF1 p.247 de 01/12/2011)
Interessante verificar que mesmo duas décadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988,a tutela ainda provoca controvérsias, inclusive no âmbito do Poder Judiciário, quando o tema já deveria estar pacificado.
Todas as Constituições anteriores a de 1988 continham uma visão integracionista ou assimilacionista em relação aos índios, ou seja, os encarava como pessoas desprovidas das qualidades do homem civilizado e que deveriam ser paulatinamente “aculturadas” e integradas à sociedade nacional. Uma vez integrados, deixariam de ser índios.
De um modo geral, a fórmula utilizada pelas Constituições de 1934 a 1967 previa a competência da União para legislar sobre a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional, o que de fato aconteceu com a criação da FUNAI pela Lei nº 5.371, de 05 de dezembro de 1967, a quem compete exercer “os poderes de representação ou assistência jurídica inerentes ao regime tutelar do índio, na forma estabelecida na legislação civil comum ou em leis especiais”, bem como na edição daLei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, o Estatuto do Índio, que objetivava regulamentar a situação jurídica dos índios e das comunidades indígenas, para a preservação de sua cultura e progressiva integração à comunhão nacional.
Contudo, tais comandos que determinavam a integração do índio à comunhão nacional propositalmente não foram replicados na Carta Magna de 1988, a qual dedicou um capítulo inteiro à temática indígena, com nítido reflexo sobre as políticas até então adotadas:
CAPÍTULO VIII
DOS ÍNDIOS
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
A Constituição Federal de 1988 deixou clara a opção pelo respeito à alteridade ao apontar textualmente, em seu artigo 231 que aos índios se reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.É nítida a mudança de paradigma advinda da Constituição Federal de 1988, fruto da evolução da antropologia e das normas de direitos humanos no plano internacional. Para Anjos Filho[2]:
O impacto dessa guinada constitucional nas relações jurídicas envolvendo os índios no Brasil é enorme. A Constituição, adotando uma postura de respeito à diversidade cultural brasileira, assegura o direito de os índios serem e permanecerem diferentes, afastando a possibilidade de qualquer forma de discriminação, como decorrência direta da liberdade e da igualdade. É o princípio da proteção da identidade, já mencionado retro. Está constitucionalmente vedado qualquer entendimento jurídico que implique afirmar direita ou indiretamente a superioridade cultural da sociedade envolvente em relação aos grupos indígenas. Isso significa que o modo de ser e de viver dos índios deve ser respeitado e protegido, e não destruído, sendo-lhes garantido o pleno exercício dos seus direitos culturais.
A moderna visão da questão indígena está calcadano respeito à diferença (alteridade), ou seja, os índiosdevem ser tratados como cidadãos componentes de uma sociedade plural, com todos os direitos inerentes aos demais nacionais, inclusive a capacidade civil plena, para que possam exercer direitos e contrair obrigações, exercendo, de per si, os atos da vida civil cotidiana.
A corroborar esse entendimento, o artigo 232 da Constituição Federal dispõe que os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses. Ora, nos termos do art. 7º do Código de Processo Civil, “toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo”, ou seja, a capacidade processual, em regra, pressupõe a capacidade civil.Ainda, a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), em face das alterações introduzidas pela Lei nº 12.010/2009, dispõe, nos termos dos arts. 28, §6º e 161, §2º que a FUNAI intervirá no processo judicial relacionado à perda do poder familiar, guarda ou adoção de crianças ou adolescentes indígenas, ou seja, atuará como terceiro, e não como parte, atuará como fiscal da lei e do melhor interesse do menor, e não como tutora dos índios.
Reforço que essa mudança de paradigma não se deu somente no plano nacional, mas também no internacional, como se observa da evolução da Convenção nº 107 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, sobre a proteção e a integração das populações indígenas e outras populações tribais e semitribais de países independentes, de 26 de junho de 1957, para a Convenção nº 169/OIT, sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989.
Para fins comparativos, da Convenção nº 107/OIT, transcreve-se:
Considerando que a Declaração de Filadélfia afirma que todos os seres humanos têm o direito de buscar oprogresso material e o desenvolvimento espiritual dentro da liberdade e dignidade e com segurançaeconômica e oportunidades iguais;
Considerando que há nos diversos países independentes populaçõesindígenas e outras populações tribais e semitribais que não se acham ainda integradas na comunidade nacional e que sua situação social, econômica e cultural lhes impede de se beneficiar plenamente dos direitos e vantagens de que gozam os outros elementos da população;
Considerando que é conveniente, tanto do pondo de vista humano como do interesse dos países interessados,procurar a melhoria das condições de vida e trabalho dessas populações mediante uma ação simultânea sobreo conjunto de fatores que a mantiveram até aqui à margem do progresso da comunidade nacional de que fazem parte;
Considerando que a aprovação de normas internacionais de caráter geral sobre o assunto será de molde a facilitar as providências indispensáveis para assegurar a proteção das comunidades em jogo, sua interação progressiva nas respectivas comunidades nacionais e a melhoria de suas condições de vida ou de trabalho;
(...)
Artigo 1º
1. A presente Convenção se aplica:
a) aos membros das populações tribais ou semitribais em países independentes, cujas condições sociais eeconômicas correspondem a um estágio menos adiantado que o atingido pelos outros setores da comunidadenacional e que sejam regidas, total ou parcialmente, por costumes e tradições que lhes sejam peculiares poruma legislação especial;
b) aos membros das populações tribais ou semitribais de países independentes que sejam consideradas comoindígenas pelo fato de descenderem das populações que habitavam o país, ou uma região geográfica a quepertença tal país, na época da conquista ou da colonização e que, qualquer que seja seu estatuto jurídico,levem uma vida mais conforme às instituições sociais, econômicas e culturais daquela época do que àsinstituições peculiares à nação a que pertencem.
2. Para os fins da presente convenção, o termo “semitribal” abrange os grupos e as pessoas que, emboraprestes a perderem suas características tribais, não se achem ainda integrados na comunidade nacional.
3. As populações tribais ou semitribais mencionadas nos parágrafos 1º e 2º do presente artigo são designadas,nos artigos que se seguem, pela expressão “populações interessadas”.
Artigo 2º
1. Competirá principalmente aos governos pôr em prática programas coordenados e sistemáticos com vistas àproteção das populações interessadas e sua integração progressiva na vida dos respectivos países.
2. Tais programas compreenderão medidas para:
a) permitir que as referidas populações se beneficiem, em condições de igualdade, dos direitos epossibilidades que a legislação nacional assegura aos demais elementos da população;
b) promover o desenvolvimento social, econômico e cultural das referidas populações, assim como a melhoriade seu padrão de vida;
c) criar possibilidades de integração nacional, com exclusão de toda medida destinada à assimilação artificial dessas populações.
3. Esses programas terão essencialmente por objetivos o desenvolvimento da dignidade, da utilidade social eda iniciativa do indivíduo.
4. Será excluída a força ou a coerção com o objetivo de integrar as populações interessadas na comunidade nacional.
Ao compará-la com o teor da Convenção nº 169/OIT, fica clara a alteração paradigmática:
Considerando que a evolução do direito internacional desde 1957 e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais em todas as regiões do mundo fazem com que seja aconselhável adotar novas normas internacionais nesse assunto, a fim de se eliminar a orientação para a assimilação das normas anteriores;
Reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram;
Observando que em diversas partes do mundo esses povos não podem gozar dos direitos humanos fundamentais no mesmo grau que o restante da população dos Estados onde moram e que suas leis, valores, costumes e perspectivas têm sofrido erosão freqüentemente;
Lembrando a particular contribuição dos povos indígenas e tribais à diversidade cultural, à harmonia social e ecológica da humanidade e à cooperação e compreensão internacionais;
(...)
Artigo 1º
1. A presente convenção aplica-se:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.
3. A utilização do termo "povos" na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional.
Artigo 2º
1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade.
2. Essa ação deverá incluir medidas:
a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população;
b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições;
c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio-econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida.
Não se pode negar que no âmbito internacional a relação para com as comunidades indígenas também mudou, sendo-lhes assegurados, em condições de igualdade, todos os direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população. Abandonou-se expressamente a política de assimilação.
E para ficar extreme de dúvidas, a Convenção nº 169 da OIT, incorporada ao ordenamento pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004,deixa expressamente registrada a capacidade civil dos indígenas:
Artigo 8º
1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.
2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação deste principio.
3. A aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo não deverá impedir que os membros desses povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os cidadãos do país e assumam as obrigações correspondentes.
Ora, é consabido que a capacidade civil plena engloba a capacidade de direito (aptidão comum a toda pessoa, nos termos do art. 1º do Código Civil) e a capacidade de fato ou de exercício, que é a aptidão para exercer os direitos pessoalmente, sem intermediação. É justamente isso que a legislação específica confere aos índios: a aptidão para exercer direitos e contrair obrigações, sem interposta pessoa.
Nesse sentido, cumpre-nos registrar que vários dispositivos do Estatuto do Índio que restringem a capacidade dos índios (tutela)não foram recepcionados pela Constituição Federal.
Dessa forma, uma vez constatada a inexistência da tutela, não há qualquer sentido emresponsabilizar a FUNAI pelos atos de indígenas, ou seja, por ato de terceiros, já que entre eles – FUNAI e índios – não existe qualquer relação de tutela de pessoas, não se aplicando o disposto nos arts. 932 e 933 do Código Civil.
Desse modo, os índios são partes legítimas para figurarem no pólo passivo de demandas de responsabilidade civil, em razão dos danos por eles provocados. Em caso de condenação, a fase de execução deve desenvolver-se do mesmo modo que ocorreria em face de qualquer outro cidadão, não lhe conferindo a legislação nenhuma benesse diferenciada. Nesse sentido, já existem decisões judiciais:
ADMINISTRATIVO. DANO MATERIAL. RESSARCIMENTO DE DANOS CAUSADOS POR GRUPO INDÍGENA. RESPONSABILIDADE DA UNIÃO NÃO RECONHECIDA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Resta evidente que não há responsabilidade objetiva ou subjetiva da União em face dos danos materiais causados pelos índios que ocuparam as terras da parte autora. Na hipótese dos autos, cabe exclusivamente aos silvícolas eventual reparação dos danos alegados na inicial, uma vez que eles são absolutamente capazes de responderem pelos atos que praticarem, não havendo que se falar em responsabilidade da União. Honorários advocatícios mantidos, nos termos do artigo 20, parágrafos 3º e 4º, do CPC, considerando a natureza, complexidade, importância e valor da causa, o tempo de tramitação do feito e os precedentes da Turma. (TRF4, AC 5000816-85.2010.404.7213, Quarta Turma, Relatora p/ Acórdão Vivian Josete Pantaleão Caminha, juntado aos autos em 28/05/2014)
ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. FUNAI. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS INDÍGENAS. MARCO TEMPORAL. NÃO DEMONSTRAÇÃO. DANO MATERIAL. ASTREINTES. RESPONSABILIZAÇÃO AFASTADA. (...)6. A União e a FUNAI não podem ser responsabilizadas por atos de terceiros, ainda que silvícolas, posto que não detém poderes para atuar coercitivamente na vontade alheia, inclusive mediante o uso de poder de polícia. Suas atribuições limitam-se a instruir os índios sobre o conteúdo da ordem judicial, orientando-os a não realizarem atos de destruição ao patrimônio alheio, o que foi efetivamente atendido no caso em tela. 7. Inviável, portanto, a imposição de ressarcimento pelos prejuízos causados e multa coercitiva por descumprimento de ordem judicial destinada à comunidade indígena. (TRF4, APELREEX 5003091-47.2013.404.7004, Terceira Turma, Relator p/ Acórdão Fernando Quadros da Silva, juntado aos autos em 16/10/2014)
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS DECORRENTES DE OCUPAÇÃO PERPETRADA POR ÍNDIOS EM IMÓVEIS SITUADOS EM ÁREA SUPOSTAMENTE INDÍGENA. INEXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DA FUNAI SOBRE OS FATOS OCORRIDOS. CAPACIDADE CIVIL E POSTULATÓRIA DOS SILVÍCOLAS RECONHECIDAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.Ação indenizatória ajuizada contra a FUNAI pela proprietária de área de terras no município de Itaiópolis-SC, por ela utilizada para implantação de projetos de reflorestamento de vegetação exótica, com vistas ao recebimento de indenização pelos danos decorrentes da invasão dos imóveis de sua propriedade por indígenas, nos anos de 1998 e 2001. Não prospera a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, porque o ordenamento jurídico brasileiro possibilita o manejo de ação indenizatória para se obter a reparação de danos morais e materiais causados por terceiros ou pela Administração Pública Direta ou Indireta. Com o advento da Constituição de 1988, migrou-se de um regime de tutela dos povos indígenas para um regime de proteção. Não mais compete ao Estado, através da FUNAI, responder pelos atos das populações autóctones e administrar-lhes os bens, tal como ocorria enquanto vigente o regime tutelar previsto no Código Civil de 1916 e no Estatuto do Índio (Lei 6001/73). A partir do reconhecimento da capacidade civil e postulatória dos silvícolas, em 1988, remanesce ao Estado o dever de proteção das comunidades indígenas e de seus bens (à semelhança do que ocorre com os idosos que, a despeito de serem dotados de capacidade civil, gozam de proteção especial do Poder Público). Desde o reconhecimento constitucional da diversidade cultural (arts. 215, § 10 e 216) e da capacidade civil e postulatória dos índios e de suas comunidades (art. 232 c/c art. 7° do CPC) - o que lhes confere o direito ao acesso a todas garantias constitucionais de forma autônoma -, não mais subsiste o regime tutelar a que os silvícolas estavam submetidos perante à FUNAI por força do disposto no artigo 6°, III e Parágrafo Único do Código Civil de 1916 e no artigo 7° do Estatuto do Índio, tampouco a classificação dos indígenas em "isolados", "em vias de integração" e "integrados", prevista no artigo 4° do Estatuto do Índio, porque tais dispositivos não foram recepcionados pela atual Constituição. Sendo os silvícolas pessoas dotadas de capacidade para todos os atos da vida civil, segundo a ordem constitucional vigente, não há que se falar em culpa administrativa da FUNAI e da União sobre os fatos que ensejaram a presente ação reparatória. Provimento do apelo da FUNAI, para o fim de reconhecer a ausência de responsabilidade do referido entes sobre os fatos que ensejaram a reparação material pretendida. (TRF/4ªR, 4ª Turma, AC 200172010043080, Rel. Des. Edgard Antônio Lipmann Júnior, j. 29.10.2008, v.u, DE 24.11.2008.)
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS DECORRENTES DEOCUPAÇÃO PERPETRADA POR ÍNDIOS EM IMÓVEIS SITUADOS EM ÁREA SUPOSTAMENTE INDÍGENA. INEXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DA UNIÃO E DA FUNAI SOBRE OS FATOS OCORRIDOS. CAPACIDADE CIVIL E POSTULATÓRIA DOS SILVÍCOLAS RECONHECIDAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Ação indenizatória ajuizada por proprietários de imóveis na localidade de "Colônia Bom Sucesso", no Município de Itaiópolis-SC, contra a União, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Cacique Alfredo Patté e demais silvícolas, com vistas ao recebimento de indenização por danos morais e materiais decorrentes da invasão dos imóveis de sua propriedade por indígenas, em meados de junho de 1998.
Não prospera a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, porque o ordenamento jurídico brasileiro possibilita o manejo de ação indenizatória para se obter a reparação de danos morais e materiais causados por terceiros ou pela Administração Pública Direta ou Indireta.Com o advento da Constituição de 1988, migrou-se de um regime de tutela dos povos indígenas para um regime de proteção. Não mais compete ao Estado, através da FUNAI, responder pelos atos das populações autóctones e administrar-lhes os bens, tal como ocorria enquanto vigente o regime tutelar previsto no Código Civil de 1916 e no Estatuto do Índio (Lei 6001/73). A partir do reconhecimento da capacidade civil e postulatória dos silvícolas, em 1988, remanesce ao Estado o dever de proteção das comunidades indígenas e de seus bens (à semelhança do que ocorre com os idosos que, a despeito de serem dotados de capacidade civil, gozam de proteção especial do Poder Público).
Desde o reconhecimento constitucional da diversidade cultural (arts. 215, § 10 e 216) e da capacidade civil e postulatória dos índios e de suas comunidades (art. 232 c/c art. 7° do CPC) - o que lhes confere o direito ao acesso a todas garantias constitucionais de forma autônoma -, não mais subsiste o regime tutelar a que os silvícolas estavam submetidos perante à FUNAI por força do disposto no artigo 6°, III e Parágrafo Único do Código Civil de 1916 e no artigo 7° do Estatuto do Índio, tampouco a classificação dos indígenas em "isolados", "em vias de integração" e "integrados", prevista no artigo 4° do Estatuto do Índio, porque tais dispositivos não foram recepcionados pela atual Constituição. Sendo os silvícolas pessoas dotadas de capacidade para todos os atos da vida civil, segundo a ordem constitucional vigente, não há que se falar em culpa administrativa da FUNAI e da União sobre os fatos que ensejaram a presente ação reparatória.
Parcial provimento dos apelos da FUNAI e da União Federal, para o fim de reconhecer a ausência de responsabilidade dos referidos entes sobre os fatos que ensejaram a reparação material e moral pretendida. (TRF/4ªR, 4ª Turma, AC 1999.72.01.005824-4/SC, Rel. Des. Edgar Antônio Lipmann Júnior, j. 15.08.2007, v.u, DE 03.09.2007.)
Para reforçar a argumentação, Villares conclui:
Efeito perverso que traz o entendimento da tutela indígena com poder/dever de substituição da representação dos índios nos atos da vida civil são as inúmeras condenações da Funai pelos atos ilícitos realizados pelos índios. Parte do Poder Judiciário entende que o regime de tutela implica em responsabilidade civil do órgão tutor, a Funai, e se chega ao despropósito de considerar essa responsabilidade como objetiva, gerando a obrigação de reparação do dano por parte do Estado brasileiro. Responsabilizar a Funai por atos de índios sob sua “tutela” seria acreditar que este órgão governamental tem o poder de controlar as atitudes dos cidadãos, evitando ilícitos, violências, crimes etc. Se a Funai sequer tem regulamentado seu poder de polícia administrativo, sendo impedida muitas vezes de agir efetivamente contra terceiros que cometem crimes e irregularidades administrativas, é demasiado crer que ela tenha a força de invadir a esfera de liberdade dos índios, o que afrontaria o direito de autodeterminação dos povos indígenas. Na prática, qualquer um que conviva com a realidade da relação dos índios com a sociedade sabe que, quando muito, a Funai se utiliza do convencimento para evitar atos violentos, inclusive perpetuados contra seus servidores, patrimônio ou direção maior[3].
Portanto, do que até aqui fora exposto, podemos concluir que o regime de tutela estampado na legislação anterior à Constituição Federal de 1988, enquanto limitador da capacidade civil dos índios, não foi recepcionado pelo atual ordenamento. Daí advém a conclusão, aliada à evolução do direito internacional, de que índios tem a mesma aptidão para exercer diretamente seus direitos e contrair obrigações que quaisquer outros cidadãos da sociedade nacional a que pertencem. Enfim, podem livremente praticar os atos da vida civil.
Do mesmo modo que podem livremente exercer direitos, devem arcar com as obrigações decorrentes da vida em comunhão nacional, motivo pelo qual podem ser demandados em sede de ação de responsabilidade civil, não devendo a lide ser dirigida contra a FUNAI que, para o caso, será parte ilegítima, já que o Estado não pode ser responsabilizado por atos de pessoas estranhas aos seus quadros, ainda que indígenas.
[1]Entendo que não se deve falar na responsabilidade objetiva prevista no art. 37, §6º da Constituição Federal, pois essa pressupõe, necessariamente, ação de agente público (e não de índio), que, nessa qualidade, cause danos a terceiros. A responsabilidade por omissão (subjetiva) só ocorre quando o Estado não cumpre um dever legal. Em alguns casos, o Poder Judiciário responsabilizou a FUNAI por suposta omissão na tutela. Tal entendimento será objeto de análise ao longo deste texto.
[2]ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Arts. 231 e 232, in BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura. Comentários à Constituição Federal de 1988. São Paulo: Forense, 2009, p. 2403-2404.
[3] VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. 1.ed. Curitiba: Juruá, 2009, p. 76/77.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Índios, FUNAI e responsabilidade civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42531/indios-funai-e-responsabilidade-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
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