INTRODUÇÃO
A vedação a previsão de cláusulas que restrinjam ou frustrem o caráter competitivo da licitação constitui regra expressamente prevista no art. 3º, § 1º, I, da Lei nº 8.666/93, cujo principal fundamento é conferir ampla participação a todos aqueles que preencham os requisitos legais e desejam contratar com a Administração.
Contudo, as inúmeras condenações da Administração Pública na Justiça do Trabalho, decorrentes do inadimplemento das cooperativas nos contratos de terceirização de mão-de-obra, acabaram por acarretar a restrição à participação dessas sociedades em certames licitatórios.
O presente artigo busca avaliar a participação de cooperativas em licitações públicas e os novos contornos dados pela Lei nº 12.690/2012, que dispõe sobre a organização e o funcionamento das cooperativas de trabalho.
A participação de sociedades cooperativas em licitações públicas
A Lei nº 5.764/1971 dispõe que “celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro” (art. 3º).
E, em seguida, no seu art 4º, assim estabelece:
“As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:
I – adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços;
II – variabilidade do capital social representado por quotas-partes;
III – limitação do número de quotas-partes do capital para cada associado, facultado, porém, o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais;
IV – incessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à sociedade;
V – singularidade de voto, podendo as cooperativas centrais, federações e confederações de cooperativas, com exceção das que exerçam atividade de crédito, optar pelo critério da proporcionalidade;
VI – quorum para o funcionamento e deliberação da Assembléia Geral baseado no número de associados e não no capital;
VII – retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral;
VIII – indivisibilidade dos fundos de reserva e de Assistência Técnica Educacional e Social;
IX – neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social;
X – prestação de assistência aos associados e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa;
XI – área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, controle, operações e prestação de serviços.”
Da leitura dos referidos dispositivos, poderia se concluir que as sociedades cooperativas somente poderiam se dedicar para o exercício de atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro. Contudo, a própria Lei nº 5.764/1971, no art. 86, autoriza que as cooperativas forneçam bens e serviços a não associados, desde que tal faculdade atenda aos objetivos sociais e estejam em conformidade com a lei.
Portanto, não existe vedação legal absoluta à participação das cooperativas em licitações. O que ocorre é que, por conta das inúmeras condenações da Administração Pública impostas pela Justiça do Trabalho, passou-se a se questionar a participação desses entes nas licitações para contratação dos serviços com dedicação exclusiva de mão de obra.
Um dos casos mais emblemáticos resultou na conciliação judicial firmada entre o Ministério Público do Trabalho e a União na Ação civil Pública nº 0108200-72.2002.5.10.0020, perante a 20ª Vara do Trabalho do TRT da 10ª Região, nos seguintes termos:
“O autor e a terceira ré celebraram termo de conciliação, comprometendo a União a abster-se de contratar trabalhadores, por meio de cooperativas de mão-de-obra, para prestação de serviços ligados as suas atividades fim e meio, quando o labor demandar subordinação, elencando as atividades vedadas (fl. 616). Compromete-se, ainda, a União a estabelecer regras claras no editais de licitação acerca da participação de cooperativas, bem como a recomendar o mesmo procedimento em relação à administração indireta, tudo sob pena de multa.”
O STJ reconheceu a validade do acordo, conforme decisão assim ementada:
“AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. DEFERIMENTO. COOPERATIVA DE MÃO-DE-OBRA. LICITAÇÃO. TERMO DE ACORDO FIRMADO ENTRE O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO E A ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO. GRAVE LESÃO À ORDEM E À ECONOMIA PÚBLICAS CONFIGURADAS.
1. (...)
2. (...)
3. Permanecendo válido termo de acordo firmado entre o Ministério Público do Trabalho e Advocacia-Geral de União, pelo qual a União se obrigou a não contratar trabalhadores por meio de cooperativas de mão-de-obra para prestação de serviços ligados às suas atividades-fim ou meio, quando o labor, por sua natureza, demandar execução em estado de subordinação, quer em relação ao tomado, quer em relação ao fornecedor de serviços, a inobservância dessa diretriz por quaisquer dos órgãos da administração pública federal, configura ameaça de lesão à ordem pública, aqui compreendida a ordem administrativa.
4. Agravo Regimental não provido.” (AgRg na SS nº 1.352/RS, Corte Especial, rel. Min. Edson Vidigal, j. em 17.11.2004, DJ de 09.02.2005).
Depreende-se, portanto, que o termo de conciliação firmado buscou impedir a intermediação ilegal de mão-de-obra em detrimento dos princípios do cooperativismo e ofensa aos direitos dos trabalhadores.
A dúvida que permanece diz respeito às leis, editadas posteriormente a conciliação firmada no âmbito da Justiça do Trabalho nos autos do processo nº 0108200-72.2002.5.10.0020, gerando questionamentos por parte dos entes e órgãos públicos federais acerca da obediência ao termo de conciliação.
A primeira – Lei nº 12.349/2010, alterou a Lei nº 8.666/93, conferindo nova redação ao art. 3º, § 1º, I:
“Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo dos que lhe são correlatos.
§ 1º ......
I – admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5º a 12 deste artigo e no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991;”
Para Ronny Charles[1], a inclusão pela Lei nº 12.349/2010, do trecho “inclusive nos casos de sociedades cooperativas”, não prejudica a restrição estabelecida na conciliação judicial firmada entre o Ministério Público do Trabalho e a União. Confira-se:
“Restrições indevidas ao caráter competitivo, que prejudicassem cooperativas, já eram criticáveis, mesmo antes da alusão expressa a essas pessoas jurídicas. Ocorre que, no caso do referido acordo judicial, não há uma restrição indevida ao caráter competitivo, mas uma medida adotada com a participação do Poder Judiciário e de relevantes Funções Essenciais à Justiça, representadas por órgãos do Ministério Público (Advocacia da sociedade) e da AGU (Advocacia de Estado), com o intuito de evitar a utilização fraudulenta de cooperativas para locação de mão de obra na prestação de serviços terceirizados à Administração, em detrimento de direitos e garantias dos trabalhadores envolvidos”.
Portanto, entendeu-se que não há óbice a participação das cooperativas nas licitações públicas, mas a contratação deve subordinar-se aos comandos do Termo de Conciliação Judicial e os serviços licitados devem ser prestados em caráter coletivo e com absoluta autonomia dos cooperados.
Questão mais controversa diz respeito à edição da Lei nº 12.690/2012, que dispõe sobre a organização e o funcionamento das cooperativas de trabalho e assim estabelece no seu art. 10:
“Art. 10. A Cooperativa de Trabalho poderá adotar por objeto social qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, desde que previsto no seu Estatuto Social.
......
§ 2º A Cooperativa de Trabalho não poderá ser impedida de participar de procedimentos de licitação pública que tenham por escopo os mesmos serviços, operações e atividades previstas em seu objeto social”.
A nova lei estabeleceu que as cooperativas de trabalho poderão adotar qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, desde que previsto no seu estatuto social, estabelecendo expressamente que não poderão ser impedidas de participar de licitações públicas.
Diante dessas inovações, não caberiam mais as restrições impostas pelo acordo judicial firmado na Justiça do Trabalho. Contudo, não se pode perder de vista que a própria Lei nº 12.690/2012, em seu art. 5º, estabelece que “a Cooperativa de Trabalho não pode ser utilizada para intermediação de mão de obra subordinada”, ou seja, manteve-se a preocupação de impedir a intermediação ilegal de mão-de-obra, burlando o direito dos trabalhadores.
Oportuna a lição de Ronny Charles[2]:
“Cabe perceber que não há impedimento absoluto à participação das cooperativas em procedimentos de licitação absoluta. Contudo, naquelas situações em que sua atuação tem se demonstrado ilegítima, como se na dá na intermediação de mão de obra subordinada (atividade vedada pela própria Lei nº 12.690/2012), parece-nos admissível a restrição à participação de cooperativas ou mesmo a manutenção das pertinentes exigências habilitatórias para sua participação no certame. Neste caso, não haverá um “impedimento” à participação de cooperativas nas licitações, mas a manutenção de exigências imbuídas da função de identificar a ilegítima intermediação de mão de obra subordinada, como as prescritas pela IN 02/2008, cuja desobediência deve gerar a inabilitação das falsas cooperativas nos certames para contratação de serviços contínuos com dedicação exclusiva de mão de obra.”
Por fim, com o objetivo de uniformizar a questão, o Departamento de Consultoria da Procuradoria-Geral Federal elaborou o Parecer nº 01/2014/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU, cujo entendimento foi no sentido de que a intenção do legislador com a edição das Leis nº 12.690/2012 e 12.349/2010 foi de dar concreção ao comando constitucional de estimular o cooperativismo, previsto no § 2º do art. 174 da Constituição Federal, vislumbrando tanto a necessidade de estimular a criação, como de preservar os direitos dos cooperados contra a utilização como intermediadora de mão de obra e fraudadora dos direitos dos trabalhadores.
Cumpre transcrever as conclusões do Parecer nº 01/2014/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU:
“Por todo exposto, conclui-se que:
a) Deve ser considerado superado Termo de Conciliação Judicial homologado pela Justiça do Trabalho nos autos da ação civil pública nº 01082-2002-020-10-00-0, firmado entre o Ministério Público do Trabalho e a União, por força da edição da Lei nº 12.690/2012 e Lei nº 12.349/2010 que alterou a lei 8666/93;
b) Cabe garantir às cooperativas a participação nas licitações promovidas pelo Poder Público, para qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, desde que previsto no seu Estatuto Social, e desde que haja observância dos ditames da Lei 12.690/2012 e da Instrução Normativa nº 02/2008-SLTI/MPOG;”
Conclui-se, portanto, que a Lei nº 12.690/2012 coibiu a restrição imposta à participação das cooperativas em certames licitatórios, mas estabeleceu exceção ao determinar que as cooperativas de trabalho não poderão ser utilizadas para intermediação de atividades que, pela sua natureza, exijam subordinação de mão de obra (art. 10, § 2º c/c art. 5º, da referida Lei).
CONCLUSÃO
Diante do que foi aqui exposto, conclui-se que não existe vedação legal absoluta à participação das cooperativas em licitações, tendo sido superado o termo de conciliação firmado entre a União e o Ministério Público nos autos da ação civil pública nº 0108200-72.2002.5.10.0020 com a edição da Lei nº 12.690/2012 e Lei nº 12.349/2010.
De acordo com a Lei nº 12.690/2012 as cooperativas de trabalho não poderão ser impedidas de participar de procedimentos de licitação pública que tenham por escopo os mesmos serviços, operações e atividades previstas em seu objeto social, mas a própria lei estabeleceu exceção ao determinar que as cooperativas de trabalho não poderão ser utilizadas para intermediação de atividades que, pela sua natureza, exijam subordinação de mão de obra (art. 5º).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO. Parecer nº 01/2014/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU. Disponível em <http://www.agu.gov.br>.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg na SS nº 1.352/RS, Rel. Min. Edson Vidigal, Corte Especial, DJe 09.02.2005. Disponível em <http://www.stj.jus.br>.
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO. Ação civil Pública nº 0108200-72.2002.5.10.0020. Disponível em <http://www.trt10.jus.br>.
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 5ª edição. Salvador: JusPODIVM, 2013.
Notas:
[1] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 5ª edição. Salvador: JusPODIVM, 2013, p. 45.
[2] Op cit, p. 48.
Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, Flavia de Andrade Soares. A participação de cooperativas em licitações públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42543/a-participacao-de-cooperativas-em-licitacoes-publicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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