RESUMO: Este trabalho trata da análise da titulação de casal no âmbito do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) quando um ou ambos os contraentes são casados, porém separados de fato. Dessa forma, vai demonstrar a possibilidade de aplicação do conceito de união estável previsto no Código Civil de 2002 na seara agrária e para alcançar tal mister trará à tona o histórico do instituto e a roupagem conferida ao mesmo pela Constituição Federal de 1988.
1) INTRODUÇÃO:
A união estável, tal qual concebida atualmente, traz em seu conteúdo o realce do afeto e o reconhecimento jurídico desse afeto duradouro entre duas pessoas, ainda que desprovido de qualquer formalidade jurídica.
Assim, a elevação desse instituto a nível constitucional traz como corolário lógico a ideia de que a Carta Magna não traz apenas um projeto de vida que deve ser seguido por todos, mas diferentes projetos de vida amparados por uma norma fundamental.
Aqueles casais que optam por seguir um projeto de vida pessoal desprovido da formalidade jurídica inerente ao casamento não podem ser vítimas de preconceito, de tratamento desigual, posto que esse projeto está amparado pela Constituição Federal de 1988.
Desse modo, em razão do reconhecimento da união estável como entidade familiar, instituição, portanto, que tem a finalidade de servir à promoção dos direitos fundamentais, passa-se a exigir uma inequívoca atuação estatal, não apenas no dever de respeitar o direito de liberdade de constituição da entidade familiar, mas também de propiciar às entidades familiares os instrumentos e meios necessários para que elas possam ter um desenvolvimento digno.
Esse raciocínio também se aplica na seara agrária, posto que não se pode esquecer que as devidas mudanças de perspectivas sociais com a evolução da sociedade não atingem apenas o meio urbano, mas também o meio rural, cabendo àqueles que atuam na área agrária não relegar a união estável ao plano da inexistência.
2) UNIÃO ESTÁVEL – DELINEAMENTO JURÍDICO:
2.1) HISTÓRICO:
Realça-se, inicialmente, que o concubinato puro, que deu origem à união estável – até os dias de hoje é comum a diferenciação doutrinária entre concubinato puro e impuro – era aceito pelas legislações desde as civilizações clássicas. O usus e o concubinatus romanos e, na Idade Média, a barregamia e o casamento de pública fama eram exemplos de uniões concubinárias toleradas, mesmo após o advento do Cristianismo.
Ocorre que, principalmente após o Concílio de Trento, a Igreja Católica passou a reprovar o concubinato. O Concílio de Trento proibiu os ditos casamentos presumidos ou clandestinos ao obrigar a celebração pública e formal do matrimônio, e, ao mesmo tempo, impôs uma série de severas penalidades aos concubinos, os quais eram advertidos, por três vezes, e, em caso de continuidade do enlace, eram punidos com a excomunhão e até com a pecha de heresia.
O Brasil submeteu-se às disposições do Concílio de Trento mediante a determinação de vigência no país das Ordenações Filipinas Portuguesas.
No âmbito constitucional, o texto de 1824 nada mencionou sobre a família ou mesmo o casamento, por sua vez, a Constituição Federal de 1891, embora não tenha dedicado capítulo especial à família, reconheceu efeitos ao casamento civil. A Constituição de 1934, dedicando capítulo próprio ao instituto, estabeleceu que a família brasileira constituía-se pelo casamento civil indissolúvel. Denota-se, assim, que o casamento foi, por muito tempo, a única forma legítima de constituição da família. Esse princípio foi mantido nos textos constitucionais de 1937 (art. 124); 1946 (art. 163); 1967 (art. 167); 1969 (art. 175).
O Código Civil Brasileiro de 1916, retratando os valores da época, trazia em seu bojo o entendimento que família seria aquela hierarquizada e matrimonializada, calcada na procriação, na formação de mão-de-obra, na obtenção e transmissão de patrimônio, além de fonte de aprendizado individual.
Com a evolução dos costumes, a uniões extramatrimoniais passaram a ter aceitação na sociedade, levando a Constituição de 1988 a redimensionar a concepção de família e a introduzir um termo generalizante – entidade familiar. Assim, dissociou-se o casamento como única forma de constituição de família legítima, passando-se a considerar também como entidade familiar a relação extramatrimonial estável, entre um homem e uma mulher, que antes era tida como amoral e pecaminosa, além daquela formada por qualquer dos genitores e seus descendentes – a família monoparental.
Dessa forma, torna-se imperioso reconhecer que o novo paradigma, no plano das relações familiares, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, para efeito de estabelecimento de direitos e deveres decorrentes do vínculo familiar, consolidou-se na existência e reconhecimento do afeto.
Nesse diapasão, o reconhecimento do status jurídico-familiar da união estável, por si, alçou o afeto à condição de princípio jurídico implícito, extraído do art. 5º, § 2º, CF/1988, na medida em que é o afeto o motivo que faz com que duas pessoas decidam manter uma união estável.
Discorrendo acerca do tema, assevera, com propriedade, Maria Berenice Dias:
“A Constituição acabou por reconhecer juridicidade ao afeto ao elevar as uniões constituídas pelo vínculo da afetividade à categoria de entidade familiar.”
2.2. REGRAMENTO NORMATIVO:
Consoante exposto acima, não restam dúvidas de que a união estável é uma forma de entidade familiar, dela advindo direitos e deveres para os envolvidos.
Para fins de melhor ilustração, transcreve-se o art. 226 da Constituição Federal de 1988, in verbis:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”
Após a promulgação da Carta Magna de 1988, duas leis ingressaram no ordenamento jurídico com o intuito de regulamentar o novo instituto – a Lei 8.971/94 e a Lei 9.278/96.
A Lei 9.278/96 não quantificou o prazo de convivência e albergou as relações entre pessoas separadas de fato, fixou a competência das varas de família, reconheceu o direito real de habitação e gerou a presunção juris et jure de que os bens adquiridos a título oneroso na constância do convivência são fruto do esforço comum.
O novo Código Civil trouxe regramento acerca da união estável em seus artigos 1.723 a 1.726.
Nessa perspectiva, prescreve o art. 1723, CC/2002, que atualmente regula o tema, in verbis:
“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
§ 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.”
Portanto, da simples leitura do art. 1.723, §2º, CC, dessume-se que a circunstância de um ou ambos os conviventes estarem apenas separados de fato e não de direito não é óbice à constituição de união estável.
Destarte, desde que haja efetiva convivência more uxorio, com características de união familiar, por um prazo que denote estabilidade e objetivo de manter a vida em comum entre o homem e a mulher assim compromissados, ou seja, desde que haja “convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”, nos termos do art. 1.723, caput, CC/02, há que se reconhecer efeitos jurídicos a essa união, ainda que não haja separação judicial, mas mera separação de fato.
Na verdade, o legislador teve a clara intenção de estabelecer uma distinção entre a união estável e família paralela – chamada doutrinariamente de concubinato impuro –, isto é, as relações paralelas não constituem união estável. E é exatamente nessa linha de distinção que foi estabelecida a possibilidade de reconhecimento de entidade familiar como união estável quando um ou ambos os conviventes possuem estado civil de casado, porém, estão separados de fato, porquanto não há que se falar em relação paralela, mas sim em relação familiar com todas as características descritas no art. 1.723, caput, CF/88.
Desse modo, é plenamente possível a expedição de título de domínio ou de concessão de uso a beneficiários que vivem em união estável, mesmo que apenas separados de fato de terceiros e não de direito, haja vista que tal relação afetiva não se qualifica como relação paralela, mas sim como união estável, nos termos do art. 226, §3º, CF/88 c/c art. 1.723, §1º, CC/02.
3. CONCLUSÃO:
As normas jurídicas devem estar em consonância com os valores alçados a status constitucional, motivo pelo qual não cabe ao legislador e ao intérprete restringir ou não reconhecer direitos em descompasso com esses valores previstos constitucionalmente.
Além disso, em face da dimensão objetiva do direitos fundamentais, os direitos atinentes às relações familiares funcionam como um sistema de valores capaz de legitimar todo o ordenamento, exigindo que toda a interpretação jurídica leve em consideração a força axiológica que deles decorre.
Nessa toada, esses direitos irradiam efeitos também na seara agrária, motivo pelo qual a expedição de título de domínio ou de concessão de uso a beneficiários que vivem em união estável, mesmo que apenas separados de fatos de terceiros, é medida que se impõe.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Dias, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7ª Ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pág. 165.
Procuradora Federal atuante no Incra/Sede.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUCENA, Danielle Cabral de. União estável e a separação de fato - aplicação do instituto na titulação dos lotes do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42579/uniao-estavel-e-a-separacao-de-fato-aplicacao-do-instituto-na-titulacao-dos-lotes-do-programa-nacional-de-reforma-agraria-pnra. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.