1. INTRODUÇÃO - DA TEORIA DO FATO CONSUMADO
As decisões proferidas de modo precário no processo, liminarmente ou em antecipação de tutela, se posteriormente reformadas, demandam a restituição das partes ao estado anterior, conforme inteligência dosartigos 461 e 811 do CPC. Na prática, no entanto, verificou-se que a aplicação desses dispositivos de maneira a privilegiar a legalidade estrita poderá trazer mais prejuízos que benefícios. O decurso do tempo pode interferir de forma irremediável nas situações jurídicas desencadeadas através de decisões judiciais proferidas através de um juízo de cognição sumária, mas que se tornam sólidas, consolidadas, no curso do processo.
A teoria do fato consumado não se confunde com o Princípio da Proteção da Confiança Legítima do administrado. Tal princípio é aplicado quando, por iniciativa própria, decorrente de equivocada interpretação da lei ou dos fatos, a Administração concede determinada condição jurídica ao administrado, seja servidor ou não. É oque ocorre, por exemplo, quando o órgão público incorporaao patrimônio do servidor determinada vantagem, fazendo com que este acredite que se trata de uma verba recebida de forma legítima. O mesmo ocorre quando a própria Administração calcula e concede um benefício previdenciário num determinado valor (a maior) e ao revisar o seu ato percebe que o fez de maneira equivocada.Tal poderá gerar manutenção da vantagem, ou, pelo menos, a dispensa derestituição de valores.
Na aplicação da teoria do fato consumado, a vantagem obtida não se dá por iniciativa da Administração, mas por provocação do próprio administrado e por força de decisão judicial não transitada em julgado. O beneficiário da medida judicial de natureza liminar ou antecipatória não desconhece a natureza provisória do provimento, que pode ser revogado a qualquer tempo, com possível indenização dos prejuízos eventualmente causados.
Surge então a divergência entre a norma jurídica do caso concreto, que reconhece como legítima a situação em razão do decurso do tempo, e o princípio da legalidade, que determina o retorno ao estado anterior e a indenização dos prejuízos causados a terceiros.
Em razão da consolidação de situações desencadeadas por força de decisões precárias, surgiu a necessidade da aplicação da teoria do fato consumado. A aplicação da teoria deve ocorrer com cautela, pois, como veremos a seguir, através dela deixa-se de lado a regra processual que resguarda o direito da parte adversa de ter a sua situação recomposta ou até mesmo de ser indenizada pelos prejuízos que lhe foram causados (CPC, arts. 273, § 3º;art. 475-O, Ie II e art. 811).
2. DA PONDERAÇÃO DE INTERESSES NO CASO CONCRETO E A APLICAÇÃO DA TEORIA DO FATO CONSUMADO
A solução para o impasse aqui discutido pode estar na aplicação da ponderação de interesses, em cada caso concreto. Ou melhor, deve-se fazer um juízo de ponderação e fazer prevalecer o princípio que mais se adequa à situação naquele momento, como por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana sobre o princípio da prevalência do interesse público.
A permanência de um aluno na Universidade ou de um concursando num determinado certame, por exemplo, por força de decisão liminar, em cognição não exauriente, pode corroborar uma situação ilegal, em detrimento daqueles que participaram regularmente do exame vestibular ou do concurso, bem como violar o interesse público em selecionar os mais preparados, de acordo com as exigências previstas no edital do certame.
Por outro lado, não se pode ignorar a realidade, pois asituação pode estar concretizada pelo decurso do tempo. Se existem provas nos autos de queo aluno graduou-se na instituição de ensino superior, a determinação para desfazer a situação traria maior dano, pois o graduado provavelmente já estará exercendo uma profissão e obtendo meios de subsistência através dela.
Ademais, ainda que decorrido determinado período de tempo, a situação ilegítima pode estar perpetuando um prejuízo causado a terceiros ou ao interesse público. Neste caso, entendemos que Judiciário pode desfazer a injustiça. A jurisprudência apresenta decisões que possibilitam ao Poder Judiciário a qualquer momento reverter uma situação fundamentada em decisão precária, desfavorável ao interesse público. Em casos tais, após a instrução da causa e num juízo de cognição exauriente, chegou-se à conclusão que a situação era ilegítima e deveria ser desfeita, ainda que decorrido muito tempo.
Neste sentido, o Egrégio STJ decidiu:
ADMINISTRATIVO - ACESSO À UNIVERSIDADE - AFASTAMENTO DO SISTEMA DE COTAS - AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC - IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL - FALTA DE PREQUESTIONAMENTO -SÚMULA 211 DO STJ - FATO CONSUMADO - INAPLICABILIDADE. 1. Inexistente a alegada violação do art. 535 do CPC, pois a prestação jurisdicional foi dada na medida da pretensão deduzida, conforme se depreende da análise do acórdão recorrido. 2. Quanto ao art. 475, I, do CPC, tido por violado, verifica-se que a Corte a quo não o analisou. Desse modo, impõe-se o não conhecimento do recurso especial por ausência de prequestionamento, entendido como o necessário e indispensável exame da questão pela decisão atacada, apto a viabilizar a pretensão recursal. Incidência da Súmula 211 do STJ. 3. Não cabe ao STJ examinar na via especial, sequer a título de prequestionamento, eventual violação de dispositivo constitucional -tarefa reservada, pela Constituição da República, ao Supremo Tribunal Federal. 4. O Tribunal a quo divergiu do entendimento da primeira instância, ao reconhecer a legalidade do sistema de cotas e a inconstitucionalidade da criação de vagas por decisão judicial. Porém deixou de modificar a situação da aluna matriculada por força de decisão liminar, ao entender, in casu, tratar-se de fato consumado. 5. Não há falar em fato consumado se a estudante cursou somente dois semestres. Nos termos da jurisprudência desta Corte, "se o estudante ainda não concluiu o curso, não há fato consumado" (EREsp 806027/PE, Rel. Min. José Delgado, Rel. p/ Acórdão Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, julgado em 13.6.2007, DJ 18.2.2008 p. 22). Recurso especial conhecido em parte e provido.(RESP 200902040535, HUMBERTO MARTINS, STJ - SEGUNDA TURMA, 07/05/2010).
No STJ também existe entendimento no sentido de que a teoria do fato consumado poderá ser aplicada se a morosidade do Judiciário der ensejo a que situações precárias que se consolidem pelo decurso do tempo. Vale ressaltar que não se discute a legalidade da situação, mas apenas a sua concretização pelo decurso do tempo.
No julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial Nº 1.291.328 - RS (2011/0265253-0), o STJ entendeu por manter os termos da liminar que possibilitou ao o estudante a obtenção do diploma de conclusão do ensino superior, mesmo sem ter feito o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), decisão esta proferida dois anos antes do julgamento no STJ. Conforme o julgado, houve a “cristalização da situação fática em razão do decurso de tempo entre a colação de grau e os dias atuais, de maneira que a reversão desse quadro implicaria danos irreparáveis ao agravado (graduado)”. Percebe-se que neste caso prevaleceu a proteção da dignidade do aluno, pois desfazer a situação lhe traria danos gravíssimos, de ordem moral e material.
O STJ neste caso entendeu que não seria ilegal o condicionamento da obtenção do diploma ao comparecimento ao ENADE. A realização do exame é de interesse público, pois tem por finalidade constatar o nível de aprendizado dos alunos para realização de políticas públicas que tragam melhoras para o ensino médio. A liminar concedida em primeira instância, porém, possibilitou que a estudante obtivesse o diploma quase dois anos antes do julgamento, inclusivea Impetrante já estaria valendo-se de sua formação para exercer sua profissão e prover o seu sustento.
Assim, em alguns casos os danos morais e materiais que seriam causados acaso desfeita a situação, seriam maiores que a sua manutenção. A teoria do fato consumado seria, portanto, mais razoável do que a restauração da legalidade, pois a situação encontrava-se claramente consolidada pelo decurso do tempo, ademais no caso em exame não houve privilégio da requerente em relação a terceiros.
No âmbito do STF já se discutiu a possibilidade de aplicação da “teoria do fato consumado” a situações em que a posse ou o exercício em cargo público se tenha dado por força de decisão judicial provisória.
No recurso extraordinário nº 608.482, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado recentemente, em 07/08/2014, discutiu-se a possibilidade de manutenção em cargo público de uma candidata inscrita em concurso para agente de polícia do Rio Grande do Norte que obteve, em 2002, uma liminar para ser empossada no cargo, sem a aprovação em exame físico e sem ter se submetido a exame psicotécnico. Sete anos depois, o Tribunal de Justiça estadual, embora reconhecendo a ilegalidade da situação, mantevea candidata no cargo, com base na teoria do fato consumado.
Ao ser discutido no STF, o caso teve desfecho diverso. O julgado, com base na ponderação entreo interesse individual da candidata, que já estava exercendo o cargo há doze anos e, de outro lado, o interesse público na realização de concurso, afastou a aplicação da teoria do fato consumado. O julgado ressaltou ainda que a manutenção da situação fática representaria “severo comprometimento do princípio da igualdade em matéria de acesso aos cargos públicos”.
Na ponderação de interesses, prevaleceu o interesse público de dar cumprimento ao art. 37, II da Constituição Federal, considerando que a exigência do concurso público dá concretude a outros princípios da administração pública, a exemplo dos princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência.
Ademais, verificou-sea violação do princípioda isonomia, mais precisamente do princípio da igualdade de acesso aos cargos públicos, visto que a recorrida não se submeteu aos exames físicos e ao psicotécnico,como os demais candidatos. A suanomeação e posse foram asseguradas por força de liminar, apesar de nãocumpridas fases anteriores exigidas dos demais candidatos.
Em razão do decurso do tempo, pode-se pensar de imediato nos danos sofridos pela candidata que foi exonerada após doze anos no cargo. Por outro lado, não se pode deixar de considerar que a sua posse também trouxe graves prejuízos ao interesse daquele candidato que, tendo se submetido a todas as fases e obtido aprovação no concurso, perdeu a chance de exercer legitimamente o cargo, que acabou ocupado por outro concorrente sem observância das exigências do certame.
3. CONCLUSÃO
A aplicação da teoria do fato consumado não pode servir para burlar as previsões legais, a teoria somente deve ser utilizada se o fato estiver concretizado ou na iminência de se aperfeiçoar. Um exemplo seria quando existir prova nos autos de que o aluno que ingressou na faculdade por força de decisão liminar, já está formado ou prestes a se graduar.
A teoria deve ser observada em hipóteses excepcionais, não podendo ser utilizada apenas para legitimar situação que ocorre há determinado período de tempo, aproveitando-se a parte da demora do feito. Deve-se ressaltar que terceiros também podem ser prejudicados em razão da sua aplicação, tanto particulares como o Poder Público, sendo penalizados pela demora do processo, que também não deram causa.
Ressalte-se, por fim, que não se pode deixar de considerar que o decurso do tempo também pode trazer graves prejuízos ao interesse daquele que, tendo se submetido a todas as regras legais pertinentes ao caso, perdeu a chance de desfrutar legitimamente de determinada situação, que acabou por ser aproveitada por aquele que recorreu ao Judiciário.
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PROCURADORA FEDERAL DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO, ATUANTE NO NÚCLEO DE MATÉRIA FINALÍSTICA DA PROCURADORIA-FEDERAL DA 1ª REGIÃO, EM BRASÍLIA-DF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTO, Geruza Ribeiro do Espirito. A aplicação da teoria do fato consumado e a ponderação de interesses Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42584/a-aplicacao-da-teoria-do-fato-consumado-e-a-ponderacao-de-interesses. Acesso em: 23 dez 2024.
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