Resumo: O presente artigo cuida da análise sobre a necessidade de conexão ou pertinência entre o objeto da licitação e o objeto social da sociedade empresária (pessoa jurídica) que com ela venha a contratar.
Palavras chave: Licitação, objeto social da empresa, objeto da licitação, pertinência, conexão.
Sumário: I - Introdução. II. A necessidade de conexão ou pertinência entre o objeto social da sociedade empresária e o objeto da licitação. Aplicação da teoria ultra vires no direito brasileiro. III - Conclusão.
I - Introdução
O presente artigo tem por finalidade a investigação sobre se a Administração Pública pode exigir que as sociedades empresárias (pessoas jurídicas, portanto) comprovem, quando vierem a participar de licitações públicas, a conexão ou pertinência entre o objeto da licitação e seu objeto social, que ora está previsto em seu estatuto, como no caso das sociedades de capitais, ora previsto em seu contrato social, como no caso das sociedades de pessoas.
II – A necessidade de pertinência entre o objeto social da sociedade empresária e o objeto da licitação. Aplicação da teoria ultra vires no direito brasileiro
Sinale-se, inicialmente, que as sociedades empresárias são pessoas jurídicas (artigo 44, inciso II, do Código Civil), constituindo-se, pois, na forma do ordenamento jurídico vigente, em sujeitos de direitos e obrigações. Elas podem comprar, vender, admitir e demitir trabalhadores, enfim, podem praticar todos os atos e negócios jurídicos lícitos e necessários para atingir os fins pelos quais foram criadas.
Contudo, apesar de serem sujeitos de direitos e obrigações e poderem, por isso, praticar inúmeros atos e negócios jurídicos próprios do ser humano, sabe-se que sua existência não é real. Trata-se de uma ficção jurídica: um ser ideal que tem trânsito e vida apenas nas paragens do direito.
Essa peculiar natureza das pessoas jurídicas suscita inequivocamente alguma complexidade a mais nas suas relações obrigacionais. Com efeito, sendo ser cuja existência não é real, inarredavelmente precisará de alguém com existência real (uma pessoa humana) para servir de veículo de suas manifestações de vontade nos variados negócios jurídicos que realiza. E a pessoa humana que faz esse papel, sabe-se, é o administrador (ou sócio gerente). É ele que torna a pessoa jurídica presente[i] nos negócios jurídicos então firmados.
Essa atividade do administrador, porém, não pode ser exercida fora dos exatos limites fixados nos atos constitutivos da pessoa jurídica (estatuto ou contrato social)[ii]. Isso porque, se a vontade eventualmente manifestada em um determinado negócio jurídico não estiver autorizada (de forma direta ou indireta) no ato constitutivo da pessoa jurídica, esta não estará obrigada a cumprir o que fora pactuado, em seu nome, pelo administrador. E o terceiro eventualmente contratado, note-se, poderá amargar prejuízo, uma vez que não poderá contar com o patrimônio (jurídico ou material) da pessoa jurídica para forçar o cumprimento da obrigação.
Como se pode ver, então, a regra no direito pátrio é a de que o administrador não pode atuar à margem dos poderes fixados no ato constitutivo da pessoa jurídica. E fixada essa premissa, resta saber e concluir se a Admininistração pública pode exigir das empresas licitantes a comprovação da pertinência, conexão ou compatibilidade entre o seu objeto social e o objeto posto na licitação.
Nesse sentido, tem-se a ponderar que o que foi dito a respeito da atividade do administrador da sociedade empresária, que é uma pessoa jurídica, já permite intuir que deve haver pertinência entre o objeto social da empresa e o objeto licitado. Com efeito, se uma determinada sociedade empresária tem como objeto social, por exemplo, a prestação de serviços de engenharia civil, a conduta do administrador dessa sociedade não ostentará o signo da regularidade se resolver, em nome da sociedade e sem prévia alteração ou adequação do objeto social, enveredar-se pelo ramo de vendas de remédios ou de prestação de serviços veterinários.
Em uma tal situação, o administrador estará agindo fora do âmbito autorizado no ato constitutivo da pessoa jurídica. E o contrato assim firmado com terceiros poderá vir a ser considerado inimputável[iii] à sociedade que ele, em princípio, estava a “presentar”. Afinal, não estando o administrador autorizado pelos atos constitutivos da sociedade a firmar contratos de prestação de serviços veterinários, poderia perfeitamente ser entendido que a pessoa jurídica não chegou a manifestar vontade, o que tornaria o eventual contrato de prestação de serviços inimputável a ela.
Esse entendimento caracteriza, em certa medida, a aplicação da ultra vires doctrine, teoria de origem britânica que consiste em tornar a pessoa jurídica não responsável pelos atos praticados, em seu nome, pelos administradores, quando houver extrapolação do objeto social. Sobre essa teoria, que passou a viver, no direito pátrio, um novo capítulo após a edição do Código Civil de 2002, assim anota o professor Fábio Ulhoa Coelho, verbis[iv]:
“As cortes inglesas começam a formular a teoria, em meados do século XIX, com o objetivo de evitar desvios de finalidade na administraçãode sociedades por ações, e preservar os interesses dos investidores. A racionalidade lógica da teoria ultra vires é sólida. De acordo com sua formulação estrita, qualquer ato praticado em nome da pessoa jurídica que extrapole o objeto social é nulo.
“O surgimento da ultra vires doctrine coincide com a criação, na Inglaterra, do sistema de liberdade de constituição para as sociedades por ações. A partir de 1856, a personalização das companhias e a limitação da responsabilidade dos acionistas passou a depender, no direito inglês, não mais de específico ato de outorga do poder real ou parlamentar, mas apenas do registro perante a repartição pública competente. O documento constitutivo, registrado, delimitava o objeto da sociedade. Para os atos relacionados à atividade econômica abrangida no objeto social, vigoravam os efeitos do registro, isto é, a personalidade jurídica própria da sociedade e a limitação da responsabilidade dos acionistas. As cortes, preocupadas com a extensão indevida desses efeitos para os atos estranhos ao objeto social, para os quais não havia registro, repudiaram-nos inflexivelmente. O caso Ashbury Carriage, de 1875, é referência no estudo da matéria. Uma companhia inglesa, cujo objeto social era, basicamente, a comercialização de equipamentos ferroviários, obteve, na Bélgica, a concessão para construir e operar uma linha de trem. Para dar início à construção, contratou outra companhia inglesa. Quando os serviços já estavam sendo executados, a contratante postulou, e obteve, a declaração judicial de nulidade do contrato, tendo em vista a extrapolação do objeto social (Solomon-Schwartz-Bauman, 1982: 156/159).
“O rigor da teoria ultra vires, em sua formulação inicial, trouxe diversos problemas para as sociedades inglesas. Ninguém mais corria o risco de contratar com elas sem que a inclusão do negócio no objeto social registrado fosse indiscutível. Como o objeto social, até 1948, era inalterável no direito inglês, os atos constitutivos das sociedades passaram a ostentar, na cláusula respectiva, uma lista imensa e variada de atividades econômicas, às quais poderiam dedicar-se (Davies, 1954:203). Essa praxe de ampliar ao máximo o objeto social das sociedades generalizou-se em outros países, em que a ultra vires foi adotada, como nos Estados Unidos, por exemplo, e ainda se encontra hoje, em lugares de colonização britânica.
“Ao longo do século XX, dilui-se o rigor da teoria. De nulo, o ato exorbitante do objeto social passou a ser inimputável à pessoa jurídica. O terceiro podia demandar o cumprimento das obrigações pelo diretor da sociedade. Outra flexibilização deu importância à boa-fé do contratante, reconhecendo-lhe o direito de exigir da própria sociedade o cumprimento do contrato extravagante, se justificável o desconhecimento da cláusula delimitadora do objeto social (Farrar-Hanning, 1985:107). Com a adesão do Reino Unido à Comunidade Econômica Européia, as necessidades de harmonização do direito-custo fizeram com que, em 1989, a teoria ultra vires fosse definitivamente descartada. Nos Estados Unidos, ela, hoje, é lembrada, basicamente, na responsabilização de administrador por ato de liberalidade praticado à custa da companhia (Solomon-Schwartz-Bauman, 1982:161), senão como assunto de mera curiosidade histórica (Clark, 1986:675).
“Na Argentina, a lei trata especificamente do assunto, ao imputar às sociedades todos os atos celebrados em seu nome pelos administradores, salvo os notoriamente estranhos ao objeto social. Adota, desse modo, uma solução intermediária entre a adoção e a rejeição da ultra vires doctrine (cf. Mascheroni-Muguillo, 1996:96).
“Até a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o direito brasileiro não havia adotado a ultra vires doctrine (nem mesmo quando ela gozava de prestígio nos países em que se criou e difundiu). Embora a nossa doutrina do início do século XX lecionasse que os administradores de sociedade anônima, contratando atos estranhos às finalidades da companhia, obrigavam-se pessoalmente e não vinculavam a pessoa jurídica (Mendonça, 1914, 4:78), de modo geral, os problemas relacionados à extrapolação dos limites do objeto social sempre foram, e ainda têm sido, examinados à luz da teoria da aparência, com vistas à proteção dos intesses dos terceiros de boa-fé que contratam com sociedades. Da teoria inglesa, apenas a responsabilização, em regresso, dos administradores pela prática da extravagância entusiasma, por vezes, a tecnologia jurídica brasileira (Bulgarelli, 1983: 1/16; Carvalhosa, 1977, 3:315/316).
“Com a vigência do Código Civil de 2002, porém, o direito nacional passa a contemplar, no capítulo atinente às sociedades simples, norma claramente inspirada na ultra vires doctrine, de acordo com a qual a prática de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade pode ser oposta ao credor como excesso de poderes do administrador (art. 1.015, parágrafo único, III) (Campinho, 2003: 239/242). Desse modo, a exemplo do direito argentino, o brasileiro prestigia uma solução intermediária entre a adoção e a rejeição da doutrina. Em consequencia, quando a sociedade limitada tem por diploma de regência supletiva o capítulo do Código Civil referente às sociedades simples, a vinculação da pessoa jurídica a atos praticados em seu nome não se verifica em operações evidentemente estranhas ao objeto social”.
Percebe-se, pois, a partir dos ensinamentos do professor Fábio Ulhôa Coelho, que o direito brasileiro passou a adotar[v], com temperamentos, a teoria ultra vires, de tal sorte que havendo extrapolação por parte do administrador em operações evidentemente estranhas ao objeto social da empresa, o negócio jurídico assim formatado não obriga a pessoa jurídica.
As exceções ficariam por conta da teoria da aparência, que protegeria, mesmo na hipótese de extrapolação por parte do administrador da empresa, o terceiro de boa-fé, isto é, aquele que por sua condição jurídica não possuir condições para saber que o administrador atua à margem da autorização social. E mais: Também estariam excepcionados da ultra vires doctrine as sociedades limitadas que adotarem em seus contratos sociais a prerrogativa contida no artigo 1.053, parágrafo único, do Código Civil[vi].
De toda forma, considerando que a Administração atua balizada por regras de natureza formal e solene, e tendo em vista a adoção dessa teoria pelo direito brasileiro, conclui-se não haver dúvida tanto quanto à legalidade tanto quanto à necessidade da exigência, em processo licitatório, de que a empresa licitante tenha objeto social pertinente e compatível com o objeto posto na licitação. Com efeito, caso não tome essa cautela a Administração poderá não estar contratando de fato a sociedade empresária, uma vez que os atos praticados pelo Administrador não lhe serão imputados.
Nessa mesma linha, após expressar o seu pensamento pessoal sobre a matéria, o professor Marçal Justen Filho[vii] adverte que tem sido entendido de modo generalizado que a pessoa jurídica somente poderá ser habilitada quando o objeto da licitação for compatível e pertinente com o seu objeto social. E isso, pondera o mestre, independentemente de qualquer outra exigência legal específica.
De outra banda, no âmbito do Tribunal de Contas da União a questão encontra-se aquilatada nos seguintes termos, verbis:
“REPRESENTAÇÃO. CONHECIMENTO. PREGÃO. LOCAÇÃO DE MÃO-DE-OBRA. PARTICIPAÇÃO DE ENTIDADE SEM FINS LUCRATIVOS. INCOMPATIBILIDADE ENTRE O OBJETO DA LICITAÇÃO E OS OBJETIVOS SOCIAIS DA ENTIDADE. PROCEDÊNCIA. MEDIDA CAUTELAR. DETERMINAÇÃO. FIXAÇÃO DE PRAZO PARA ANULAÇÃO DA HABILITAÇÃO E ADJUDICAÇÃO. ARQUIVAMENTO. 1. Inviável a habilitação de licitante cujo objeto social é incompatível com o da licitação. 2. A contratação de empresa especializada em locação de mão-de-obra deve se restringir às situações em que as características intrínsecas dos serviços impossibilitem a contratação da prestação dos mesmos”. (Acórdão 1.021/2007 – Plenário, relator ministro Marcos Vinicios Vilaça).
Em suma, embora a lei geral de licitações (Lei 8.666/93) não trate de maneira específica a referida questão, apenas tangenciando de modo indireto a matéria em seus artigos 28, inciso III, e 29, inciso II, é certo que o ordenamento jurídico vigente exige da Administração que tome o cuidado de verificar se o objeto social da sociedade empresária tem pertinência e conexão com o objeto da licitação.
III – Conclusão
Conforme explanação acima, fica evidenciado que a Administração Pública deve exigir, em seus processos licitatórios, que as sociedades empresárias comprovem que seu objeto social apresenta pertinência para com o objeto da licitação, notadamente em razão da adoção pelo direito brasileiro da teoria ultra vires.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Legislação Federal. Código Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 18 de dezembro de 2014.
____. Lei 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8666cons.htm>. Acesso em 18 de dezembro de 2014.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1021/2007 – Plenário. Disponível em < https://contas.tcu.gov.br/juris/Web/Juris/ConsultarTextual2/Jurisprudencia.faces?anoAcordao=2007&colegiado=PLENARIO&numeroAcordao=1021&>. Acesso em 18 de dezembro de 2014.
COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª edição, volume II, 2006.
FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Dialética, 12ª edição, 2008.
NOTAS
[i] Por isso mesmo diz-se que o administrador (ou sócio gerente) não representa a pessoa jurídica, atividade essa que é própria daquele que é mandatário ou procurador. Na verdade, o administrador (ou sócio gerente) presenta a pessoa jurídica, ou seja, torna-a “presente” nos negócios jurídicos que venha a praticar. Ele é o presentante da pessoa jurídica, não o seu representante.
[ii] Código Civil de 2002. “Artigo 47. Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo”.
[iii] Inimputável é o contrário de imputável. Significa, no sentido do texto, que não pode ser atribuído à sociedade empresária os efeitos de uma operação contratual firmada por seu administrador com extrapolação dos poderes conferidos no ato constitutivo da pessoa jurídica.
[iv] Curso de Direito Comercial: São Paulo, 2006. Editora Saraiva, 9ª edição, volume 2, págs. 445/447.
[v] Código Civil de 2002, Art. 1.015, parágrafo único, inciso III.
[vi] “Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples. Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima”.
[vii] Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: São Paulo, 2008. Editora Dialética, 12ª Edição, pág. 388/389.
Procuradora Federal da Advocacia Geral da União. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Pós Graduada em Direito Penal e Processo Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Fabiana Martinelli Santana de. A necessidade de conexão ou pertinência entre o objeto social da sociedade empresária e o objeto da licitação: aplicação da teoria "ultra vires" no direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42597/a-necessidade-de-conexao-ou-pertinencia-entre-o-objeto-social-da-sociedade-empresaria-e-o-objeto-da-licitacao-aplicacao-da-teoria-quot-ultra-vires-quot-no-direito-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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