1. CONSIDERAÇÕES GERAIS
O Estado, como qualquer outro sujeito de direitos, pode vir a causar danos a terceiros, em decorrência do exercício de sua atividade administrativa, donde exsurge, como corolário da noção de Estado de Direito (MELLO, 2007, p. 963), a correlata obrigação do Poder Público de reparar os prejuízos por ele acarretados.
Caso esse dever do Estado de indenizar decorra do inadimplemento de obrigações preexistentes oriundas de um contrato celebrado pela Administração, restará configurada a sua responsabilidade contratual (CAVALIERI FILHO, 2005, p. 38).
De outro lado, entende-se por responsabilidade civil extracontratual do Estado a obrigação de indenizar os danos lesivos à esfera juridicamente protegida de terceiros, decorrentes de comportamentos unilaterais, comissivos ou omissivos, lícitos ou ilícitos, materiais ou jurídicos, imputáveis ao Poder Público (MELLO, 2007, p. 957).
Muito embora, atualmente, se possa concluir pela existência de um princípio da responsabilidade civil do Estado, ou responsabilidade civil da Administração Pública - como prefere Hely Lopes Meirelles (2007, p. 649) -, nem sempre, todavia, foi assim.
Deveras, a consagração da responsabilidade civil objetiva do Estado, como hoje se concebe, é fruto de um lento e extenso processo evolutivo, cujo desenvolvimento se deve, em grande parte, à construção da doutrina e da jurisprudência francesas (CAVALIERI FILHO, 2005, p. 248), tal como a seguir demonstrado.
2. TEORIA DA IRRESPONSABILIDADE DO ESTADO
Num primeiro estágio dessa evolução, sob o domínio dos Governos despóticos ou absolutistas, vigia o princípio da irresponsabilidade do Estado, revelando-se inadmissível, pois, a reparação dos danos causados pelo Poder Público aos particulares.
Observa Yussef Said Cahali (2007, p. 21) que, de acordo com aludida concepção teórica, a responsabilização pecuniária da Administração era considerada um perigoso entrave à liberdade da execução dos serviços públicos, além de constituir evidente afronta ao axioma de que o Estado, como órgão gerador e guardião do Direito, jamais poderia atentar contra essa mesma ordem jurídica.
Nesse sentido, apresenta Amaro Cavalcanti (1956, p. 271-272), em síntese, os argumentos que diversos doutrinadores, tais como Richelmann, Bluntschli, Gabba, Manterini e Saredo, passaram a sustentar, a partir da segunda metade do século XIX, em defesa do postulado da irresponsabilidade estatal, assim enunciados:
1) O Estado é um ente abstrato, uma pessoa fictícia, e portanto, incapaz de ter atos seus, propriamente ditos; os atos são dos funcionários, pessoas físicas, dotadas de inteligência e vontade própria; conseguintemente, se êles no exercício de seus cargos praticam atos lesivos aos mesmos e não ao Estado, incumbe a responsabilidade de reparar o dano feito.
2) O Estado, sendo, como se disse, uma pessoa moral ou fictícia e incapaz de vontade, não pode jamais incorrer em culpa, elemento essencial, para que se dê a responsabilidade do dano contra o agente do mesmo.
3) O Estado não pode responder pelos atos, ilegais ou ilícitos, dos funcionários; porque, nomeando-os para os cargos, não os investiu do direito de agir contra o direito, e, pelo contrário, lhes impôs o dever de só agir na conformidade com as disposições da lei e do direito.
4) O Estado é o órgão do direito da coletividade social ou nação; é o poder tutelar, que obriga a todos os indivíduos a guardar a lei e o direito nas suas mútuas relações, quaisquer que sejam, como condição de justiça e de bem-estar geral. Como, pois, deveria êle próprio sujeitar-se à tutela jurídica de outro poder?
5) O Estado, considerado em sua análise final, não tem, nem obrigações, nem direitos propriamente seus; mas, real e verdadeiramente, os que tem, são indivíduos que compõem a coletividade social ou nação; o que êle faz, por meio de seus funcionários, é para o bem ou utilidade geral dos indivíduos; logo, se daí lhes sobrevier dano ou mal, os indivíduos devem suportá-lo como condição inerente à organização social ou política de que fazem parte; conseqüentemente, não se vê por que teriam êles o direito de pedir uma reparação ao Estado.
6) Se fôsse reconhecido ao indivíduo o direito de acionar o Estado pelos atos de seu govêrno ou da sua administração, isso tornaria a ação do Estado não só embaraçosa, vacilante, menos enérgica, - como também acarretaria enorme encargo ao tesouro público: não é justo exigir o imposto de todos os membros da coletividade, para aplicar o seu produto em satisfazer os prejuízos particulares de alguns dêles somente. (grifos do autor)
Assim é que, com base na fundamentação acima explanada, defendia-se a tese da irresponsabilidade do Estado, notoriamente consagrada na regra inglesa The King can do not wrong (o rei não erra), ou na sua equivalente francesa, Lê roi ne peut mal faire (MELLO, 2007, p.965).
Releva notar, entretanto, que, mesmo diante da vigente irresponsabilidade estatal, admitia-se, à época dos Estados absolutos, a responsabilização pecuniária dos agentes da Administração, “quando o ato lesivo pudesse ser diretamente relacionado com um comportamento pessoal, seu” (MELLO, 2007, p. 965).
Tal entendimento, segundo Sergio Cavalieri Filho (2005, p. 249), baseava-se na idéia de que “o Estado e o funcionário são sujeitos diferentes, pelo quê este último, mesmo agindo fora dos limites de seus poderes, ou abusando deles, não obrigava, com seu fato, a Administração”.
Dessa forma, restava ao administrado, apenas, acionar o funcionário causador do dano, solução essa, contudo, cuja efetividade, geralmente, ficava comprometida, em virtude da insuficiência econômica e patrimonial do agente administrativo, frustrando-se, com isso, o direito da vítima ao pleno ressarcimento (SAMPAIO, 2008, p. 6).
A teoria da irresponsabilidade civil do Estado, todavia, não veio a resistir por muito tempo, havendo encontrado inúmeros opositores em doutrina, os quais, relata Yussef Said Cahali (2007, p. 21-22), concluíram que aludida concepção
representava clamorosa injustiça, resolvendo-se na própria negação do direito; se o Estado se constitui para a tutela do direito, não tinha sentido que ele próprio o violasse impunemente; o Estado, como sujeito dotado de personalidade, é capaz de direitos e obrigações como os demais entes, nada justificando a sua irresponsabilidade.
Impende registrar, ademais, na esteira das lições de Hely Lopes Meirelles (2007, p. 650), que, nos dias de hoje, o postulado da irresponsabilidade estatal encontra-se absolutamente superado, já que os dois últimos países que o sustentavam, quais sejam, a Inglaterra e os Estados Unidos da América do Norte, terminaram por abandoná-lo, respectivamente, pelo Crown Proceeding Act, de 1947, e pelo Federal Tort Claims Act, de 1946.
3. TEORIA CIVILISTA
Com o declínio e a superação dos Estados absolutos, em virtude das revoluções burguesas do século XVIII, originou-se a concepção de Estado de Direito, cujos postulados básicos compreendem, dentre outros, “a submissão de todos, sobretudo do Estado, ao império da lei” (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 490).
Dessa forma, impondo-se também ao próprio Estado o respeito ao ordenamento jurídico, passou-se a admitir, em doutrina, que a violação do Direito pelo Poder Público, acarretando danos a terceiros, gera, ipso facto, a correspondente responsabilização do ente estatal.
Daí por que, sustenta Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 963), “a própria noção de Estado de Direito impõe, como seu consectário natural, a responsabilização pública por atos danosos causados a terceiros”.
Essa responsabilização patrimonial do Estado por danos causados a particulares, entretanto, num primeiro momento, pautou-se em regras e princípios próprios do Direito Civil, mais especificamente nos preceitos da responsabilidade por fato de terceiros (empregadores, preponentes, mandantes, representantes), com a aferição da culpa individual do agente da Administração (CAVALIERI FILHO, 2005, p. 249).
Nesse contexto, e considerando-se a já nascente figura do Estado empresário, fruto da Revolução Industrial, buscou-se distinguir, outrossim, a atividade estatal em atos de império e atos de gestão, admitindo-se a responsabilidade do Estado apenas em relação a estes últimos (SAMPAIO, 2008, p. 8).
A respeito dessa diferenciação, esclarece Yussef Said Cahali (2007, p. 22):
Tinha-se como certo que duas classes de funções desempenha o Estado: as essenciais ou necessárias, no sentido de que tendem a assegurar a existência mesma do Poder Público (manter a ordem constitucional e jurídica), e as facultativas ou contingentes, no sentido de que não são essenciais para a existência do Estado, mas este, não obstante, as realiza para satisfazer necessidades sociais, de progresso, bem-estar e cultura; quando realiza as funções necessárias, age como Poder Público, soberano; quando realiza funções contingentes, age como gestor de interesses coletivos.
Dessa forma, atuando o Estado no exercício das funções ditas essenciais e necessárias, na qualidade de poder soberano e supra-individual, tais atividades configurariam os chamados atos de império, absolutamente incólumes a qualquer julgamento, de sorte que, ainda quando viessem a prejudicar terceiros, isso não implicaria no direito à reparação (CAHALI, 2007, p. 22).
Por outro lado, no desempenho das funções facultativas ou contingentes, o Estado estaria a exercer meros atos de gestão, alheios ao poder de império e à soberania governamentais, de modo que o Estado, nesse caso, viria a ser equiparado aos particulares, podendo ter sua responsabilidade reconhecida pelos atos de seus representantes ou prepostos, lesivos a direitos dos administrados, caso houvessem os agentes públicos incorrido em negligência, imprudência ou imperícia (CAHALI, 2007, p. 22-23).
Assim sendo, seria possível cogitar-se da responsabilização do Estado tão-somente quando fosse reconhecida a culpa pessoal do funcionário causador do dano, segundo preceitos da responsabilidade por fato de terceiros, regida pelo Direito Privado.
A teoria civilista, nada obstante tenha representado o rompimento com o princípio da irresponsabilidade estatal, terminou, entretanto, por ser superada, em virtude da insuficiência de sues postulados (CAHALI, 2007, p. 23).
Deveras, é de se ponderar, de logo, que a distinção entre atos de império e atos de gestão carece de qualquer fundamentação lógica e razoável, dado que, consoante as lições de Hely Lopes Meirelles (2007, p. 656), constituindo ambos formas da atuação administrativa, a prática de qualquer daqueles atos, desde que injustos e lesivos, é reparável pela Fazenda Pública, sem se questionar se provêm do jus imperii ou do jus gestionis.
Além disso, não raro, o ressarcimento da vítima restava comprometido, ante a impossibilidade de se distinguir, no caso concreto, entre as duas espécies de atos administrativos (SAMPAIO, 2008, p. 8).
É de se considerar, ainda, por outro lado, que a aplicação de princípios privatísticos da relação empregador/empregado, mandante/mandatário, representante/representado, não se coaduna com a natureza da vinculação existente entre o Estado e o funcionário (CAHALI, 2007, p. 23).
Explica-se: durante muito tempo, sustentou-se, em doutrina, que as pessoas jurídicas exprimiriam seus atos através de mandatários ou representantes seus. No entanto, tal concepção, conhecida como teoria do mandato, restou ultrapassada com a elaboração da chamada teoria do órgão, cujo expoente máximo foi Otto Gierke.
De acordo com aludida formulação teórica, o Estado é concebido como um organismo vivo, integrado, porém, por um conjunto de órgãos ou unidades abstratas, que realizam as suas funções. A vontade e as ações desses órgãos, contudo, não são dos agentes humanos que neles atuam, sendo imputáveis, na verdade, diretamente ao próprio Estado (CAVALIERI FILHO, 2005, p. 250).
A esse respeito, discorre Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 972):
Assim como o Direito constrói a realidade (jurídica) “pessoa jurídica”, também constrói para ela as realidades (jurídicas) vontade e ação, imputando o querer e o agir dos agentes à pessoa do Estado.
A relação entre a vontade e a ação do Estado e de seus agentes é uma relação de imputação direta dos atos do agente ao Estado. Esta é precisamente a peculiaridade da chamada relação orgânica. O que o agente queira, em qualidade funcional – pouco importa se bem ou mal desempenhada -, entende-se que o Estado quis, ainda que haja querido mal. O que o agente faça nessas condições é o que o Estado fez. Nas relações não se considera tão-só se o agente obrou (ou deixou de obrar) de modo conforme ou desconforme com o Direito, culposa ou dolosamente. Considera-se, isto sim, se o Estado agiu (ou deixou de agir) bem ou mal.
Em suma: não se bipartem Estado e agente (como se fossem representado e representante, mandante e mandatário), mas, pelo contrário, são considerados como uma unidade. A relação orgânica, pois, entre o Estado e o agente não é uma relação externa, constituída exteriormente ao Estado, porém interna, ou seja, procedida na intimidade da pessoal estatal.
Com a teoria orgânica, portanto, desaparecem as relações entre representado e representante, mandante e mandatário, tomando lugar a figura do órgão, que, como bem observa Yussef Said Cahali (2007, p. 24), “supõe a existência de uma só pessoa, a pessoa própria do Estado, à diferença do mandato e da representação, que necessitam da existência de duas pessoas distintas”.
Destarte, se a atuação do funcionário é diretamente imputável ao próprio Estado, todas as conseqüências dessa atividade, danosas ou não, devem ser suportadas pelo ente estatal, independentemente da existência de culpa ou dolo do respectivo funcionário (CAHALI, 2007, p. 66).
Aliás, nesse ponto, não se pode desconsiderar que, geralmente, a prova da culpa do agente estatal, por parte da vítima, no caso concreto, restava inviável, frustrando-se, assim, também por esta razão, o direito do administrado ao ressarcimento dos prejuízos suportados por força da atuação administrativa.
Diante desse panorama, resta evidente que a utilização de princípios de Direito Privado como fundamento da responsabilidade civil do Estado - com a aferição da culpa do funcionário, tido como representante ou mandatário da pessoa estatal -, mostrou-se juridicamente inconsistente e injustificável, reclamando, enfim, a aplicação, à matéria, de postulados próprios e específicos do Direito Público.
Outra não é a conclusão a que chegou Hely Lopes Meirelles (2007, p. 650), consoante se infere do excerto a seguir transcrito:
A doutrina civilística, ou da culpa civil comum, por sua vez, vem perdendo terreno a cada momento, com o predomínio das normas de Direito Público sobre as regras de Direito Privado na regência das relações entre a Administração e os administrados.
Resta, portanto, a teoria da responsabilidade sem culpa como a única compatível com a posição do Poder Público perante os cidadãos.
Realmente, não se pode equiparar o Estado, com seu poder e seus privilégios administrativos, ao particular, despido de autoridade e de prerrogativas públicas. Tornaram-se, por isso, inaplicáveis em sua pureza os princípios subjetivos da culpa civil para a responsabilização da Administração pelos danos causados aos administrados. Princípios de Direito Público é que devem nortear a fixação dessa responsabilidade.
4. TEORIA DA CULPA ADMINISTRATIVA
A noção civilista de responsabilidade do Estado, vinculada à verificação de culpa pessoal do agente administrativo, passa a ceder espaço a uma concepção publicística de responsabilização estatal, desvinculada dos preceitos de Direito Privado.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 966), o reconhecimento da responsabilidade do Estado, independente de qualquer texto legislativo e segundo princípios de Direito Público, teve por marco relevante o aresto Blanco, proferido, em 1873, na França, pelo Tribunal de Conflitos, muito embora nele se tenha fixado que a responsabilidade do Poder Público “não é nem geral nem absoluta”, regulando-se por regras especiais.
A respeito do caso Blanco, observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007, p. 598) que
a menina Agnès Blanco, ao atravessar uma rua da cidade de Bordeaux, foi colhida por uma vagonete da Cia. Nacional de Manufatura do Fumo; seu pai promoveu ação civil de indenização, com base no princípio de que o Estado é civilmente responsável por prejuízos causados a terceiros, em decorrência da ação danosa de seus agentes. Suscitado conflito de atribuições entre a jurisdição comum e o contencioso administrativo, o Tribunal de Conflitos decidiu que a controvérsia deveria ser solucionada pelo tribunal administrativo, porque se tratava de apreciar responsabilidade decorrente de funcionamento do serviço público. Entendeu-se que a responsabilidade do Estado não pode reger-se pelos princípios do Código Civil, porque se sujeita a regras especiais que variam conforme a necessidade do serviço e a imposição de conciliar os direitos do Estado com os direitos privados.
Diante, pois, dos princípios publicísticos, não mais se há cogitar da verificação da culpa individual, atribuída ao funcionário, para deflagrar-se a responsabilidade do Estado.
Nesse ponto, a concepção teórica da culpa administrativa, também denominada de culpa do serviço, ou faute du service entre os franceses, revelou-se como o primeiro estágio da transição entre a doutrina subjetiva da culpa civil e a teoria objetiva do risco administrativo (MEIRELLES, 2007, p. 651).
Conforme Paul Duez, citado por Hely Lopes Meirelles (2007, p. 651), a culpa do serviço apresenta-se sob três modalidades, a saber: “inexistência do serviço, mau funcionamento do serviço ou retardamento do serviço”.
Dessa forma, demonstrada a ausência do serviço devido, ou o seu funcionamento defeituoso ou retardado, resta configurada a culpa administrativa ou falta do serviço, independentemente da comprovação da culpa pessoal de determinado funcionário, acarretando-se, pois, a correlata obrigação do Poder Público de indenizar o lesado.
Trata-se, portanto, do fenômeno da “despersonalização da culpa, transformando-a, pelo anonimato do agente, à consideração de falha da máquina administrativa” (CAHALI, 2007, p. 25).
Releva notar, outrossim, que a teoria da faute du service implica na responsabilidade subjetiva do ente estatal, e não objetiva, tal como adverte Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 967-969).
Nesse sentido, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, citado por Cavalieri Filho (2005, p. 251), assevera que
a responsabilidade por falta de serviço, falha do serviço ou culpa do serviço, seja qual for a tradução que se dê à fórmula francesa faute du service, não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, mas subjetiva, baseada na culpa do serviço diluído na sua organização, assumindo feição anônima ou impessoal. Responsabilidade com base na culpa, enfatiza o Mestre, e culpa do próprio Estado, do serviço que lhe incumbe prestar, não individualizável em determinado agente público, insuscetível de ser atribuída a certo agente público, porém no funcionamento ou não funcionamento do serviço, por falta na sua organização. Cabe, neste caso, conclui o professor, à vítima comprovar a não prestação do serviço ou a sua prestação retardada ou má prestação, a fim de ficar configurada a culpa do serviço, e, conseqüentemente, a responsabilidade do Estado, a quem incumbe prestá-lo.
De fato, para a deflagração da responsabilidade por culpa administrativa, não basta a mera relação de causalidade entre um comportamento positivo ou negativo do Estado e um determinado evento danoso, como se dá em sede de responsabilidade objetiva, revelando-se imperioso demonstrar, além disso, a culpa do serviço, o elemento subjetivo consistente na falha da máquina estatal, isto é, na ausência do serviço, ou na sua prestação defeituosa ou retardada.
Por outro lado, o Estado pode se eximir da responsabilidade civil, de acordo com a teoria da faute du service, alegando haver se comportado com diligência, prudência e perícia, o que jamais poderia ocorrer se se tratasse de responsabilidade objetiva, na qual se revela inadmissível perquirir a respeito da culpa (MELLO, 2007, p. 968).
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 968), um dos fatores que haveriam levado à equivocada suposição de que a responsabilidade pela culpa do serviço seria objetiva é o da “defeituosa tradução da palavra faute”, que, em francês, significa “culpa”, e não “falta” ou “ausência”, que denotam a idéia de algo objetivo.
Por fim, é de se ter em mente que a teoria da culpa administrativa, apesar de romper com a concepção civilista de responsabilidade do Estado, ainda exige muito da vítima - como pondera Hely Lopes Meirelles (2007, p. 651) -, a qual, “além da lesão sofrida injustamente, fica no dever de comprovar a falta do serviço para obter a indenização”, providência essa que, não raro, mostra-se inviável, à vista do caso concreto.
5. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO
No último estágio da linha evolutiva que ora se desenvolve, e ainda na seara do Direito Público, restou consagrada a responsabilidade objetiva do Estado, à margem da verificação da falta do serviço ou da culpa do agente causador do dano (CAVALIERI FILHO, 2005, p. 252).
Na definição de Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 969-970),
Responsabilidade objetiva é a obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razão de um procedimento lícito ou ilícito que produziu uma lesão na esfera juridicamente protegida de outrem. Para configurá-la basta, pois, a mera relação causal entre o comportamento e o dano.
Como fundamento para essa responsabilidade objetiva do Estado, estabeleceu-se a chamada teoria do risco administrativo, originalmente imaginada por Lèon Duguit, “sobre a idéia de um seguro social suportado pela caixa coletiva, em proveito de quem sofre um prejuízo causado pelo funcionamento do serviço público” (PEREIRA, 1999, p. 132).
De acordo com a mencionada concepção teórica, a atividade exercida pela Administração gera risco para a coletividade, podendo decorrer, desse seu atuar, a causação de danos em desfavor de parte dos administrados, impondo-lhes, assim, um ônus não suportado pelos demais (MEIRELLES, 2007, p. 651).
Considerando-se, entretanto, que a atuação administrativa é desempenhada em prol de toda a sociedade, a reparação dos prejuízos advindos do exercício dessa atividade deve ser custeada não apenas pelos indivíduos lesados, mas, também, pelos outros integrantes do meio social, através do próprio Estado (MEIRELLES, 2007, p. 651).
Assim sendo, incumbe ao Estado suportar os ônus de sua atuação, independentemente da culpa do serviço ou de seus agentes, como forma de assegurar o princípio da igualdade dos indivíduos diante dos encargos públicos (CAHALI, 2007, p. 38).
Daí porque, conclui Hely Lopes Meirelles (2007, p. 651), “o risco e a solidariedade são, pois, os suportes dessa doutrina, que, por sua objetividade e partilha dos encargos, conduz à mais perfeita justiça distributiva”.
No plano da teoria do risco administrativo, leciona Yussef Said Cahali (2007, p. 35), o dano infligido ao administrado tem como causa o fato objetivo da atividade positiva ou negativa do Estado, regular ou irregular, lícita ou ilícita, incompatível, pois, com a noção de culpa administrativa ou falha do serviço.
Deve-se verificar, tão-somente, a relação de causalidade entre o comportamento comissivo ou omissivo estatal e o dano acarretado ao particular, não se havendo cogitar, repita-se, da culpa anônima do serviço ou do respectivo funcionário.
A idéia de culpabilidade do agente, portanto, é substituída pela de causalidade do ato (MONTEIRO apud CAHALI, p. 38).
Nesse sentido, assevera Yussef Said Cahali (2007, p. 35):
A concepção publicística da responsabilidade civil do Estado – em cujo êxito tanto se empenharam os administrativistas -, ao consagrar a responsabilidade objetiva do ente estatal, degenera, desenganadamente e sem paliativos, na adoção da teoria do risco, risco criado pelas atividades normais ou anormais da Administração; mostra-se, assim, incompatível com a concepção da faute du service, com a culpa anônima da Administração, como causa da responsabilidade civil do Estado, no que esta nada mais é que uma transposição e adaptação, no âmbito do Direito Público, de uma concepção privatística por excelência. (grifos do autor)
Convém advertir, todavia, que a teoria do risco administrativo, a despeito de dispensar a prova da culpa da Administração ou de seus agentes pela vítima, não implica a responsabilização do Estado em toda e qualquer hipótese, permitindo-se ao ente público, ao revés, invocar e comprovar a existência de causas excludentes do nexo de causalidade, quais sejam: fato exclusivo da vítima ou de terceiro, caso fortuito e força maior (CAVALIERI FILHO, 2005, p. 253).
E isso porque a concepção doutrinária de que ora se cuida responsabiliza o Estado pelos riscos inerentes à sua atuação administrativa, e não pela atividade isolada da vítima, de terceiros ou de fenômenos da Natureza, estranhos ao mister estatal (CAVALIERI FILHO, 2005, p. 253).
Destarte, inexistente o nexo de causalidade entre uma ação ou omissão estatal e o dano suportado pela vítima, não se há falar em responsabilidade do Poder Público com base na teoria do risco administrativo.
Registre-se, por oportuno, que, segundo Hely Lopes Meirelles (2007, p. 652), a teoria do risco abrange duas modalidades, quais sejam, o risco administrativo e o risco integral, distintas entre si pelo simples fato de que, na primeira hipótese, seria admissível ao Estado invocar, em seu favor, as causas excludentes do nexo de causalidade, a fim de se eximir da correspondente obrigação de indenizar, o que, entretanto, não seria possível no segundo caso.
No Brasil, entende-se que o art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, preconiza o postulado da responsabilidade civil objetiva extracontratual do Estado, com base na teoria do risco administrativo, ao dispor que “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
6. CONCLUSÕES
O Estado, na qualidade de sujeito de direitos, pode vir a acarretar danos a terceiros, em decorrência de seus comportamentos administrativos comissivos ou omissivos, lícitos ou ilícitos, materiais ou jurídicos, daí exsurgindo a sua responsabilidade civil extracontratual perante os sujeitos lesados.
A consagração da responsabilidade civil objetiva do Estado, como hoje se concebe, é resultado de uma extensa e gradual evolução, atribuível, sobretudo, à construção da doutrina e da jurisprudência francesas.
Num primeiro momento, sob o império dos Governos Absolutistas, vigia o princípio da irresponsabilidade do Estado, historicamente consagrado na máxima inglesa The King can do not wrong (“o rei não erra”), bem como na fórmula francesa Lê roi ne peut mal faire.
Com a superação dos Estados absolutos e o advento da noção de Estado de Direito, passou-se a admitir a responsabilização patrimonial do Estado pelos danos causados aos particulares, baseando-se, entretanto, em regras e princípios próprios do Direito Civil, mais especificamente nos preceitos da responsabilidade por fato de terceiros e na culpa individual do agente público que houvesse incorrido em negligência, imprudência ou imperícia.
O primeiro estágio da transição entre a doutrina subjetiva da culpa civil e a teoria objetiva do risco foi a concepção da culpa administrativa, denominada pelos franceses de faute du service. Trata-se de responsabilidade subjetiva, já que, para deflagrar-se o dever de indenizar, não basta a verificação do nexo de causalidade entre uma conduta do Poder Público e o dano, revelando-se necessário, ainda, que o lesado comprove o elemento subjetivo consistente na culpa anônima da Administração ou falha da máquina estatal, é dizer, na inexistência, no mau funcionamento ou no retardamento do serviço.
Na última fase dessa linha evolutiva, consagrou-se a responsabilidade objetiva do Estado pelos danos causados aos administrados, exigindo-se da vítima, tão-somente, a prova da relação de causalidade entre um comportamento estatal, seja ele lícito ou ilícito, e a lesão sofrida pelo particular, independentemente da falha do serviço ou, ainda, da culpa do agente causador do resultado lesivo. Como fundamento desse sistema objetivo, estabeleceu-se a chamada teoria do risco administrativo, segundo a qual a atividade exercida pelo Estado gera riscos para a coletividade, porém, se essa atuação se dá em benefício de todos, a reparação dos prejuízos dela advindos deve ser custeada pela totalidade dos integrantes do meio social, através do Estado, e não apenas pelos sujeitos lesados, como forma de assegurar a igualdade dos indivíduos em face dos encargos públicos.
Essa é a teoria adotada pelo art. 37, § 6º, da Constituição Federal no que se refere à responsabilidade civil extracontratual do Estado.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6. ed. rev. e atual. e aum. São Paulo: Malheiros, 2005.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2008.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2007.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 9. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. Responsabilidade Civil do Estado por Ato do Administrador. Disponível em: < www.puc-rio.br/sobrepuc/depto/direito/pet_jur/patrespc.html>. Acesso em: 15 dez. 2014.
Procuradora Federal. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito do Estado pela Faculdade Baiana de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Caroline Marinho Boaventura. Evolução histórica da responsabilidade civil do Estado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42609/evolucao-historica-da-responsabilidade-civil-do-estado. Acesso em: 23 dez 2024.
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