RESUMO: O presente artigo cuida da análise sobre algumas questões que restam suscitadas a partir da aplicação da política de cotas para ingresso no ensino superior veiculada pela Lei nº 12.711/2012
PALAVRAS CHAVE: Ensino superior, ingresso, processo seletivo, cotas, isonomia, política afirmativa.
SUMÁRIO: I - Introdução. II. A nova política de cotas para ingresso no ensino superior e algumas questões suscitadas com a aplicação da Lei nº 12.711/2012. III. Conclusão.
I - Introdução
A política de cotas para ingresso no ensino superior já é conhecida do público jurídico nacional há algum tempo, tendo a sua constitucionalidade, inclusive, sido reconhecida pelo STF no âmbito da ADPF nº 186, de tal maneira que descabe falar, aqui, sobre os seus fundamentos constitucionais, sociológicos e filosóficos, bem como sobre as teorias que a informam.
Lembrando que as Instituições Federais de Ensino Superior – IFES, então colhidas pelo âmbito de abrangência da Lei 12.711/2012, continuam com suas autonomias preservadas para criar, desde que com respeito ao postulado da razoabilidade, outras hipóteses de cotas (artigo 207 da Constituição), o que se busca no presente artigo é trazer ao leitor algumas questões suscitadas com a aplicação da Lei 12.711/2012.
II – A nova política de cotas para ingresso no ensino superior e algumas questões suscitadas com a aplicação da Lei nº 12.711/2012
Cabe ponderar, inicialmente, que ao lado das cotas que podem ser criadas pelas próprias instituições de ensino, a Lei nº 12.711/2012 passou a obrigar todas as IFES a executar, ao menos, a política de cotas determinada pelo legislador.
Segundo esta lei, as IFES estão obrigadas a reservar, em cada processo seletivo, por curso e turno, no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas (artigo 1º, caput). Diz a lei, ainda, que metade dessas vagas reservadas deve ser preenchida por estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita (artigo 1º, parágrafo único). Por fim, a lei arremata no sentido de que tais vagas, tanto as contidas no caput do artigo 1º quanto as especificadas no parágrafo único do mesmo artigo, devem ser preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde estiver instalada a instituição, apurado segundo o último senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (artigo 3º, caput).
Logo se percebe que o texto legal ostenta uma razoável complexidade em sua aplicação, uma vez que não criou apenas um sistema de cotas, mas sim cotas de cotas – ou cotas subsidiárias de outras cotas –, trabalhando, ao mesmo tempo, com duas hipóteses de cotas sociais (escola pública e renda per capita familiar), bem como conjugando essas cotas com as cotas de cor/etnia (pretos, pardos e indígenas).
Entendendo-se o mecanismo da política de cotas como um sistema de proteção especial a um determinado grupo de pessoas (discriminação positiva, política afirmativa), é de se concluir que a cota é instituída para beneficiar o respectivo grupo a que se dirige. Trata-se de possibilitar a esse grupo “uma chance a mais” no acesso ao bem jurídico a ser distribuído por meio da política pública, de tal sorte que a primeira regra a ser observada, nesse processo, é a de que o beneficiário da política de cotas mantém incólume a sua situação jurídica anterior. É dizer, sendo a cota apenas “uma chance a mais”, isso significa que ele continua concorrendo nas modalidades de ingresso mais abrangentes disponibilizadas pela instituição, posto não ser razoável imaginar que tal política tenha sido editada para retirar ou para permutar direitos que o beneficiário já possuía.
Para melhor compreensão do sistema veiculado pela Lei nº 12.711/2012, observe-se que inicialmente a lei especificou um primeiro grupo que ela considera vulnerável, o qual é formado pelos alunos oriundos de escolas públicas. Independentemente de renda, cor ou etnia a lei considera como vulneráveis os alunos oriundos de escolas públicas (artigo 1º, caput). Logo na sequência, ela especificou, dentro do primeiro grupo, um grupo que ela considera um pouco mais vulnerável, que é o grupo constituído pelos alunos que não só são oriundos da escola pública, mas que também tenham renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salários mínimos (artigo 1º, parágrafo único).
Note-se, pois, que há um grupo vulnerável dentro de um outro grupo vulnerável. Uma cota é mais protetora que a outra, em níveis crescentes de proteção. E ambos os grupos de cotas decorrem de um grupo maior de candidatos, que são os candidatos universais.
Ocorre que a lei vai além, no que a complexidade do sistema da referida lei cresce sobremaneira. É que depois de especificar os dois grupos de cotas sociais acima, estando um dentro do outro, a lei resolveu especificar, dentro de cada um desses dois grupos, um outro grupo que ela considera ainda mais vulnerável, que é o grupo formado por pretos, pardos e indígenas.
Verifica-se, então, que o sistema da Lei nº 12.711/2012 funciona da seguinte maneira:
• CASO 1 – candidatos que se inscreveram no processo seletivo para concorrer às vagas de ampla concorrência: estes candidatos serão classificados apenas nas vagas da ampla concorrência.
• CASO 2 – candidatos que se inscreveram no processo seletivo para concorrer às vagas reservadas a alunos oriundos da escola pública: estes candidatos serão classificados: a) nas vagas da ampla concorrência; b) nas vagas reservadas a alunos oriundos de escolas públicas.
• CASO 3 – candidatos que se inscreveram no processo seletivo para concorrer às vagas reservadas a alunos da escola pública e que se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas: estes candidatos serão classificados: a) nas vagas da ampla concorrência; b) nas vagas reservadas a alunos oriundos de escolas públicas; c) nas vagas reservadas a alunos oriundos da escola pública e que se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas.
• CASO 4 – candidatos que se inscreveram no processo seletivo para concorrer às vagas reservadas a alunos da escola pública e que têm renda igual ou inferior a 1,5 salários mínimos: estes candidatos serão classificados: a) nas vagas da ampla concorrência; b) nas vagas reservadas a alunos oriundos de escolas públicas; c) nas vagas reservadas a alunos oriundos da escola pública e que tenham renda igual ou inferior a 1,5 salários mínimos.
• CASO 5 – candidatos que se inscreveram no processo seletivo para concorrer às vagas reservadas a alunos da escola pública, que têm renda igual ou inferior a 1,5 salários mínimos e que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas: estes candidatos serão classificados: a) nas vagas da ampla concorrência; b) nas vagas reservadas a alunos oriundos de escolas públicas; c) nas vagas reservadas a alunos oriundos da escola pública e que se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas; d) nas vagas reservadas a alunos oriundos da escola pública e que tenham renda igual ou inferior a 1,5 salários mínimos; e) nas vagas reservadas a alunos oriundos da escola pública, que tenham renda igual ou inferior a 1,5 salários mínimos e que se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas.
Observa-se, nessa linha, que as listas movimentam-se de forma independente, de sorte que onde o candidato for chamado primeiro ele faz a matrícula. Registra-se que, caso não seja conferida tal interpretação ao sistema da lei em tela, o resultado seria a criação de cota para alunos ricos e de escolas particulares, o que, induvidosamente, parece não corresponder à mensagem da lei. Isso, aliás, levaria à chamada cota inversa.
Cabe destacar, outrossim, que no contexto da política de cotas as vagas reservadas a pretos, pardos e indígenas devem ser ofertadas individualmente, não podendo, sob pena de frustrar os objetivos da lei, ser juntadas. Afinal, caso esses grupos sejam juntados em um só é possível, por exemplo, que nenhum indígena venha a ser aprovado, uma vez que a quantidade de pretos e pardos é proporcionalmente maior e a concorrência ficaria mais acirrada.
Pondera-se, ainda, que os requisitos da renda familiar per capita e da escola pública são requisitos de natureza objetiva, não comportando exceções, a fim de não desnaturar a política pública de cotas implantada. Nesse sentido, mesmo que o candidato tenha estudado na escola privada mediante bolsa, ainda assim não poderá se beneficiar da política em tela, conforme, inclusive, já decidiu o STJ (AgRg no REsp 1314005/RS).
Registra-se, ademais, que a natureza pública ou privada da escola é aferida a partir do conceito contido no artigo 19 da Lei nº 9.394/96 (LDB). Inclusive, convém esclarecer que já se decidiu que a Escola do SESI não é pública, posto não ser mantida com recursos públicos (TRF5, AC 00011778220104058500).
Remanesce como problemática, por fim, a questão relativa ao controle sobre a autodeclaração da cor/etnia. Afinal, como evitar abusos nessa autodeclaração por parte de brancos? O sistema jurídico permite algum tipo de controle? Note-se que, se por um lado a autodeclaração é um direito concedido legitimamente pela lei, de outro também é sabido que existe a teoria do abuso de direito. Tudo isso, porém, ainda necessita de mais debates e manifestações dos órgãos estatais, sobretudo dos órgãos integrantes do Poder Judiciário.
III – Conclusão
Embora a edição da Lei 12.711/2012 tenha inaugurado um novo marco na história das políticas afirmativas de acesso ao ensino superior público, sua aplicação ostenta uma razoável complexidade, exigindo-se dos órgãos aplicadores extrema atenção para não desnaturar a vontade do legislador.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 18 de dezembro de 2014.
____. Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12711.htm>. Acesso em 18 de dezembro de 2014.
___. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em 18 de dezembro de 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 186. Disponível em < file:///C:/Users/Jezihel/Downloads/texto_269432069.pdf>. Acesso em 18 de dezembro de 2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgR no RECURSO ESPECIAL Nº 1.34.05-RS (2012/051496-3). Disponível em < https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1236607&num_registro=201200514963&data=20130528&formato=PDF>. Acesso em 18 de dezembro de 2014.
Procuradora Federal da Advocacia Geral da União. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Pós Graduada em Direito Penal e Processo Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Fabiana Martinelli Santana de. Breves apontamentos sobre a nova política de cotas para ingresso no ensino superior veiculada pela Lei nº 12.711/2012 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42639/breves-apontamentos-sobre-a-nova-politica-de-cotas-para-ingresso-no-ensino-superior-veiculada-pela-lei-no-12-711-2012. Acesso em: 23 dez 2024.
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