RESUMO: Partindo-se do princípio da isonomia, busca-se esclarecer que a norma abstrata, inicialmente garantidora da igualdade, tanto formal como material, de seus destinatários, pode apresentar desafios em sua aplicação, posta a possibilidade de, no caso concreto de sua execução, resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente desproporcional sobre certas categorias de pessoas. Neste contexto, abordam-se os principais institutos utilizados para avaliar a manutenção da igualdade, notadamente a Teoria do Impacto Desproporcional e sua aplicação ao Direito à Adaptação Razoável.
PALAVRAS-CHAVE: Princípio da Isonomia – Igualdade Formal – Igualdade Material – Ações Afirmativas – Igualdade E Diferença – Políticas Decunho Universalista – Justiça Compensatória – Justiça Distributiva – Multiculturalismo – Pluralismo – Temporariedade – Discriminação Positiva – Perspectiva Anti-Diferenciação – Perspectiva Anti-Subordinação – Teoria do Impacto Desproporcional – Direito à Adaptação Razoável.
A teoria do impacto desproporcional e o direito à adaptação razoável apresentam-se como temas de profunda interligação na comunidade jurídica atual, relacionando-se diretamente ao princípio da igualdade isonômica estabelecido pelo art. 5º, caput, da Constituição Federal Brasileira, a tangenciar conceitos atinentes a ações afirmativas, às perspectivas do direito antidiscriminatório, conjugando a igualdade e a diferença em um panorama multiculturalista.
Nessa perspectiva, inegável admitir-se que a discussão dos renomados institutos inicia-se, por óbvio, a partir da definição do princípio da isonomia. Sem dúvida alguma, esta definição se mostra absoluta e profundamente influenciada pelo contexto social em que inserida. De fato, durante o constitucionalismo liberal (voltado precipuamente à liberdade de iniciativa preponderantemente exercida pela burguesia), a isonomia significava nada mais do que a igualdade formal perante a lei, ignorando se referida igualdade poderia ser, de fato e in concreto, exercida.
Por óbvio, com a crise do constitucionalismo liberal e consequente ascensão do Estado Social a mera igualdade formal já não mais satisfazia os anseios sociais da época. Em consequência, abandonou-se o ideário de igualdade perante a lei e buscou-se a igualdade na própria lei, denominada isonomia ou igualdade material. O fundamento principal para admissão dessa nova ideologia albergou-se na máxima de que há direito a ser igual quando a desigualdade inferioriza, não obstante, simultânea e concomitantemente, exista o direito de ser diferente quando a igualdade descaracteriza.
Impende observar, no que respeita à evolução do princípio da igualdade, a passagem do pensamento de aculturação das diversas diferenças socioculturais para o da preservação da identidade própria de cada comunidade, de cada indivíduo, inserido na concepção do respeito ao multiculturalismo numa sociedade humanamente sadia. Parece-nos, contudo, que o respeito ao multiculturalismo não significa apenas reconhecer os usos, costumes e direitos de determinada comunidade; ao contrário, deve constituir algo muito maior, com o escopo de assegurar não apenas o reconhecimento, mas sim mecanismos que permitam o efetivo e concreto exercício das diferenças identificadas nos usos, costumes e direitos assim catalogados.
Portanto, é papel do Direito promover as chamadas políticas de reconhecimento, objetivando conferir a devida estima social a grupos historicamente estigmatizados tanto pela sociedade como pelo Estado. A exemplificar, segura é a assertiva de que os índios, se tratados como iguais perante a sociedade plena, sofreriam nítida agressão à sua cultura, a acarretar sua completa descaracterização e, por que não, extinção.
Para essas finalidades surgem as ações afirmativas como medidas públicas ou privadas, cogentes ou não, destinadas a promover a igualdade material por meio da discriminação positiva de pessoas integrantes que estejam em situação desfavorável ou sofram retaliações por estereótipos socialmente estabelecidos. Tal defesa se insere na perspectiva do constitucionalismo social, em que não se apresenta suficiente a abstenção do Estado de instituir privilégios ou discriminações arbitrárias; ao revés, é papel do Estado perseguir a igualdade como objetivo concreto, alcançável mediante ações ou políticas públicas a exigirem iniciativas estatais concretas em favor dos grupos desfavorecidos.
Note-se que, adrede a esta conjuntura social, a própria Constituição Federal de 1988, em seus artigos 7º, inciso XX e 37, inciso VIII, ao tratar, respectivamente, do incentivo à inserção da mulher no mercado de trabalho e à reserva de vagas a pessoas com deficiência, expressamente consagrou o dever do Estado no cumprimento de políticas de ação afirmativa. E não é só isso, a sistemática constitucional determina, cristalinamente, que toda discriminação positiva deve estar baseada em parâmetros razoáveis, a evitar que propósitos inicialmente legítimos sejam indevidamente destinados a opressões inconstitucionais, ultrapassando o estritamente necessário para a promoção da igualdade de fato.
Que não fique dúvida: a violação do princípio da igualdade ocorre não só quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária, mas também se a igualdade de tratamento não se mostra capaz de materializar a isonomia in concreto. Nessas hipóteses, a igualdade jurídica restará prejudicada quando o discrímen positivo não se basear em fundamento sério, não tiver um sentido legítimo, muito menos apresentar justificada razoabilidade.
De se ver, no ponto, que o modelo constitucional brasileiro incorpora diversos mecanismos institucionais para correção de distorções resultantes da incidência meramente formal do princípio da igualdade. Nem poderia ser de outro modo: a adoção de políticas que levam ao afastamento da perspectiva meramente formal do princípio da isonomia integra o núcleo essencial do próprio conceito de democracia.
E, dando cores definitivas à questão, não há igualdade no não direito. A política afirmativa ampara-se em normas que, ao invés de limitarem a vedação do tratamento discriminatório, combatem-no por meio do expresso estabelecimento de medidas de promoção, afirmação ou restauração de direitos. Com isso, delas emanam pedagógicos e exemplares efeitos que terminam por institucionalizar, de modo pedagógico e costumeiro, na sociedade, o sentimento e a compreensão acerca da necessidade e da utilidade da implementação efetiva do princípio universal da igualdade entre os seres humanos.
Apontados já alguns fundamentos práticos das ações afirmativas, vejamos os principais argumentos legitimadores do instituto. O primeiro argumento reside na justiça compensatória, destinada a reparar danos provocados pela desigualdade histórica sofrida por distintos segmentos da sociedade multicultural e pluralista. Já o segundo argumento refere-se à necessidade de se efetivar a justiça distributiva, autorizando a superação das desigualdades no mundo dos fatos, por meio da intervenção estatal a realocar bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício de todos. Por terceiro, há de se mencionar o lógico argumento do pluralismo, a pressupor pessoas de raças, costumes, hábitos e níveis sociais convivendo harmonicamente no mesmo meio, em contínuo mutualismo construtivo. Em quarto lugar, em epítome, localiza-se o argumento relativo às políticas de reconhecimento, promovendo-se a igualdade simbólica e cultural ao se admitirem pretéritas agressões indevidas a determinado conjunto social.
Queiramos ou não, bom se faz esclarecer, as políticas afirmativas, por natureza, possuem caráter temporário. Em outras palavras, alcançado o patamar de igualdade material e, instituídos institutos que permitam o harmônico convívio multiculturalista em sociedade, as políticas afirmativas perdem sua razão fundante – sob pena de virem a representar, agora sim, nítida afronta à igualdade e à isonomia constitucionalmente estabelecidas. Percebe-se, desse modo, que eventuais políticas afirmativas que se protraem no tempo indefinidamente, sem resultados naturalísticos aferíveis, certamente estão baseadas em viciadas premissas, cuja revisão urgente se apresenta como indispensável – seja em defesa da própria democracia, seja em defesa do próprio Estado de Direito.
Como quer que seja, as ações afirmativas possuem limites, com bem assevera JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, em sua obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ed. Almedina, 7ª edição, p. 428:
“o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge com arbitrária. O arbítrio da desigualdade seria condição necessária e suficiente da violação do princípio da igualdade. Embora ainda hoje seja corrente a associação do princípio da igualdade com o princípio da proibição do arbítrio, este princípio, como simples princípio de limite, será também insuficiente se não transportar já, no seu enunciado normativo-material, critérios possibilitadores da valoração das relações de igualdade ou desigualdade. Esta a justificação de o princípio da proibição do arbítrio andar sempre ligado a um fundamento material ou critério objectivo.”
Com relação à postura adotada pela Constituição Federal para cumprimento da política de ações afirmativas, não é possível deixar de mencionar que utiliza a perspectiva de anti-subordinação, consistente no combate à discriminação mediante atuações efetivas a superá-la. Vale dizer que esta perspectiva distancia-se, felizmente, daquela em que o combate à discriminação restringir-se-ia ao tratamento neutro (sem ações afirmativas), denominada perspectiva anti-diferenciação.
Prosseguindo no trato do tema, evidentemente é de se mencionar que a manifestação mais conhecida das ações afirmativas, na sociedade brasileira, consiste no estabelecimento de cotas nas universidades públicas. Urge destacar que, por conter o Brasil uma das maiores e mais diversificadas riquezas étnicas e culturais, a promoção do pluralismo situa-se como essencial para que todos dela se beneficiem, permitindo contato real e paritário entre membros de diferentes etnias. Desta feita, ao romper com o modelo informal de segregação (que confina setores étnicos e sociais a posições subalternas na sociedade, especialmente no ensino), as ações afirmativas neutralizam estereótipos negativos. É exatamente por isso que as políticas de cotas não agridem qualquer dos subprincípios em que se desdobra o da proporcionalidade, ausente qualquer outra medida capaz de promover, com a mesma intensidade, os objetivos almejados.
Relembre-se, a propósito, que os programas de ações afirmativas corresponderiam a maneira útil e adequada encontrada para compensar uma dada discriminação culturalmente arraigada. Isto porque atualmente a justiça social compreende os atos de distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade valores culturais diversificados. De igual maneira, as ações afirmativas, além de desmistificarem os preconceitos sociais e contribuírem para a construção de consciência coletiva plural e culturalmente heterogênea, não configuram meras concessões do Estado, e sim deveres extraídos a partir dos princípios constitucionais.
Enfim: o direito à diferença reivindica implementação ética da igualdade material, sendo que a Constituição Federal Brasileira partiu da igualdade estática para o processo dinâmico de igualação. No caso brasileiro, porque ainda não se apresentam naturais tanto a igualdade como a liberdade de ser diferente, verifica-se como responsabilidade social e estatal o cumprimento, objetivo, deste processo dinâmico.
Acompanhando o raciocínio exposto, não há outro modo de concretizar o valor constitucional da igualdade senão pelo decidido combate aos valores reais de desigualdade. No ponto, vale a pena deixar claro que o direito a ser diferente, por outro lado, pode ser entendido, também, como desigualdade justificada por fatores sociais, culturais ou econômicos, oportunidades em que o próprio texto constitucional prevê situações distintas, exempli gratia, entre homens e mulheres para fins previdenciários (licença-maternidade e critérios para aposentadoria), cívicos (serviço militar obrigatório) e penais (Lei Maria da Penha).
Em todas essas situações, no entanto, bom se faz ter em mente que o próprio Preâmbulo do Texto Constitucional já antevê o direito à diferença, na medida em que expressa conceitos como sociedade pluralista e sem preconceitos, complementados pelos objetivos fundamentais posteriormente arrolados nos dispositivos que se seguem, a garantir a existência de uma sociedade livre, justa e solidária, que deve promover o bem de todos sem preconceitos de raça, cor, gênero, idade ou qualquer outra forma de discriminação.
Nesse quadro é que se insere a Teoria do Impacto Desproporcional. É bem de ver, nesse campo, que esta teoria relaciona-se aos conceitos de discriminação de fato e discriminação indireta, absolutamente importantes para a compreensão das ações afirmativas anteriormente tratadas.
Cumpre distinguir: discriminação de fato ocorrerá quando a norma jurídica for válida, de modo a permitir sua aplicação de maneira discriminatória mas, no mundo dos fatos concretos e empiricamente aferíveis, ela acaba discriminando pessoas e grupos. Discriminação indireta, por sua vez, é apurada pela existência de norma aparentemente neutra, porém cuja aplicação efetiva, pura e simplesmente, levará à discriminação.
De modo que a expressão Teoria do Impacto Desproporcional significa toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semigovernamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não apresente intenção alguma discriminatória no momento de sua concepção, que deva ser invalidada por violação do princípio constitucional da igualdade material se, em consequência de sua aplicação, resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente desproporcional sobre certas categorias de pessoas.
Com efeito, o mais célebre caso de aplicação da Teoria do Impacto Desproporcional no direito brasileiro correspondeu à apreciação da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. º 1946-DF. Neste caso considerou-se que a extensão do teto dos benefícios previdenciários ao salário-maternidade transferiria ao empregador a responsabilidade pelo pagamento da diferença, durante o período da sobredita licença, entre o salário efetivamente recebido pela gestante e o teto em questão. Entendeu-se, pela aplicação da Teoria do Impacto Desproporcional, que o limite dos benefícios não poderia ser aplicado ao salário-maternidade, sob pena de inconstitucionalidade, porque teria o efeito concreto de incrementar a discriminação contra a mulher no mercado de trabalho, em absoluta afronta à igualdade de gêneros insculpida como cláusula pétrea, nos termos do quanto disposto no art. 5ª, inciso I, bem como no art. 60, §4ª, inciso IV, ambos da Constituição Federal Brasileira.
E é justamente aqui, na Teoria do Impacto Desproporcional, que se abre campo para a aplicação do Direito à Adaptação Razoável. Embora inicialmente a norma possa não acarretar, em abstrato, discriminações de fato ou indiretas, sua aplicação pode implicar efeitos nocivos de incidência especialmente desproporcionais sobre certas categorias de pessoas; no caso, as com deficiência.
Cumpre anotar, então, que o Direito à Adaptação Razoável consiste na prerrogativa das pessoas com deficiência em buscar modificações e ajustes, necessários e adequados, que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, que sejam imprescindíveis, em cada caso, para que possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. Então, podemos afirmar que a não realização da adaptação em testilha, quando possível e razoável, seguramente pode gerar discriminações negativas em desfavor das pessoas com deficiência, em absoluta afronta ao núcleo existencial mínimo imprescindível à manutenção da dignidade da pessoa humana afeta a categoria de pessoas notadamente prejudicadas em seus direitos e garantias individuais.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JANNUCCI, Alessander. Teoria do impacto desproporcional e o direito à adaptação razoável Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42645/teoria-do-impacto-desproporcional-e-o-direito-a-adaptacao-razoavel. Acesso em: 23 dez 2024.
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