Resumo: O presente estudo se propõe a analisar a Teoria da Justiça de Hans Kelsen.
Palavras-Chave: Hans Kelsen. Conceito de Justiça. Legalidade. Direito.
1. Introdução
O conceito de Justiça foi examinado por Hans Kelsen nas obras O que é Justiça? A Justiça, o Direito e a Política no Espelho da Ciência, O Problema da Justiça, A Justiça e o Direito Natural e A Ilusão da Justiça.
O presente trabalho, a partir desses textos, propõe-se a identificar as respostas do autor da Teoria Pura do Direito às seguintes questões: o que é a justiça?, existe uma justiça única, absoluta?, qual a relação entre a justiça e o direito?, a lei é justa por ser lei?, uma lei pode ser qualificada de injusta?
Pretende-se delinear, assim, qual a relação mantida entre a Teoria Pura do Direito e a justiça, na obra deste grande expoente do Positivismo Jurídico.
2. Justiça e Legalidade. Justiça e Direito.
Hans Kelsen principia por examinar as condições de possibilidade de uma ordem social justa.
Kelsen estuda a justiça como qualidade de uma ordem social antes de estudá-la enquanto qualidade de um indivíduo porque acredita na idéia de que a qualificação entre um homem como justo depende da identificação de uma ordem social justa à qual corresponda o comportamento deste indivíduo, pois o homem só é justo "...quando seu comportamento corresponde a uma ordem dada como justa"[1].
Este método de comparar uma conduta humana a uma ordem social para valorá-la como justa, ou injusta, é uma constante nos textos kelsenianos da justiça. Em outra passagem, ao lidar com a justiça enquanto qualidade de um indivíduo, Kelsen adota o mesmo procedimento sob outro viés: "...a conduta social de um indivíduo é justa quando corresponde a uma norma que prescreve esta conduta..."[2].
Por isso consideramos relevante destacar algumas observações quanto a este método. Este proceder decorre do entendimento de que norma e valor, em Kelsen, são conceitos correlativos. Tal posicionamento baseia-se na constatação de que a única coisa em que os diversos sistemas morais existentes coincidem é quanto à forma, quanto ao dever-ser. Todos esses sistemas morais são compostos por normas sociais, isto é, estabelecem como devida uma determinada conduta de um homem em face de outro, de modo que é moralmente bom o que corresponde a uma norma social que estatui uma determinada conduta humana, e é moralmente mau o que contraria uma tal norma.
Totalmente diferente é a relação entre realidade e valor que, em Kelsen, são conceitos distintos. Argumenta este autor que a realidade só pode ser valorada quando confrontamos fatos com normas, haja vista que o ser não decorre do dever-ser e nem o dever-ser decorre do ser:
"Só quando confrontamos o ser com um dever-ser, os fatos com as normas, é que podemos apreciar aqueles por estas e julgá-los como conformes com as normas, isto é, como bons, como justos, ou como contrários às normas, quer dizer, como maus, como injustos"[3].
Em seu estudo sobre as condições de possibilidade de uma ordem social justa, nas primeiras linhas de sua obra O que é justiça?: A Justiça, O Direito e a Política no Espelho da Ciência[4], Kelsen pergunta: "... o que significa uma ordem social ser justa?". Sua resposta é ser essa ordem capaz de regular o comportamento dos homens de modo a contentar a todos, e todos encontrarem sob ela felicidade. Esta resposta, originariamente, não é de Kelsen, mas de Platão, para quem só o homem justo é feliz.
Todavia, a resposta dada não satisfaz ao jurista, porquanto não diz o que seja felicidade e, por consequência, o que é uma ordem social justa. Logo, Kelsen passa a estudar qual felicidade, e se existe algum tipo de felicidade, que pode ser participada a todos os indivíduos, por meio de uma ordem social, simultaneamente.
O jurista demonstra que não pode haver uma ordem justa se a felicidade for entendida como felicidade individual, isto é, como sentimento subjetivo que cada um compreende para si mesmo, pois existe a possibilidade de duas pessoas coincidirem no objeto de suas felicidades, de tal modo que a concessão, pela ordem social, do objeto almejado a qualquer um eles implicará a felicidade do escolhido e a infelicidade do preterido. Portanto, a ordem social é incapaz de garantir a felicidade individual de todos os indivíduos[5]. O exemplo de Kelsen é o amor de dois homens por uma mesma mulher, em que ambos acreditam que somente se tiverem esta mulher com exclusividade é que poderão ser felizes. A resolução deste conflito acarretará a felicidade de um e a infelicidade do outro.
Sob esta ótica, o resultado da investigação consiste em que nenhuma ordem social pode contentar a todos os seus indivíduos subjetivamente, e, neste caso, não pode haver uma ordem social justa.
Ao verificar na realidade das relações sociais que é logicamente impossível a uma ordem contentar a todos subjetivamente (satisfazer a felicidade individual de todos os indivíduos), Kelsen conclui que a ordem social justa não é alcançada pela satisfação das felicidades individuais de casa membro subordinado a essa ordem, mas pela satisfação de uma felicidade coletiva. Logo, é a satisfação da felicidade coletiva que dá à ordem social a qualidade de ser justa, ou, em outras palavras, a justiça é a felicidade coletiva garantida por uma ordem social.
Segundo Kelsen, a única felicidade capaz de ser garantida por uma ordem social é aquela interpretada num sentido objetivo-coletivo, em que uma autoridade social - o legislador - reconhece certas necessidades e estas são satisfeitas, tais como alimentação, vestuário, moradia, etc. Portanto, se justiça for felicidade coletiva, somente pode haver uma ordem social justa se esta ordem for capaz de assegurar determinados interesses reconhecidos como dignos de proteção pela maioria dos subordinados a essa ordem, definidos por uma autoridade legisladora.
Assim, o conceito de felicidade individual-subjetiva sofre uma transformação de sentido e se transforma na satisfação de necessidades reconhecidas socialmente. Essa transformação é explicada por Kelsen através de uma comparação com a que sofre o princípio da liberdade. Pois a liberdade, que em essência significa a liberdade de qualquer jugo, de qualquer tipo de governo, ao incompatibilizar-se com qualquer ordem social, deve aceitar a importância de uma forma especial de governo, passando a significar: governo pela maioria, se necessário, contra a minoria.
Não obstante, o próprio Kelsen, certamente influenciado por ideias platônicas, admite que esta conclusão se afasta do sentido original da palavra justiça, que em sua natureza mais profunda é altamente subjetivo:
"O anseio por justiça é tão elementar, está tão profundamente enraizado no coração do homem, justamente por exprimir um anseio indestrutível da própria felicidade subjetiva"[6].
Pensamos que essa compatibilização forçada da liberdade e da justiça em prol da ordem social cria um outro tipo de liberdade e de justiça distanciado do algo de "definitivo" que poderiam conter as palavras liberdade e justiça, tão ricas em significado.
Ao afastar-se daquilo que o indivíduo concebe como justo, a justiça perde seu sentido original, que é subjetivo, e, em nome de uma ordem social justa, aceita a condição de representar a satisfação de necessidades socialmente reconhecidas.
Após acatar este desvirtuamento, Kelsen segue em frente e questiona quais seriam essas necessidades reconhecidas socialmente, ou, em suas palavras, "...quais interesses humanos..." deve ser "... reconhecidos como dignos de proteção pela maioria dos subordinados."
O problema da justiça se coloca quando se trata de escolher um entre os diversos interesses existentes. A decisão entre dois interesses depende de se saber qual deles é o mais importante, o mais elevado, o maior, e esta decisão depende de um juízo acerca de valores conflitantes.
Fazendo-se necessário determinar qual interesse será priorizado, a justiça se torna um problema, pois a concretização de um interesse representará a rejeição de outro, na medida em que, como visto, duas pessoas podem desejar um mesmo bem concomitantemente. O problema da justiça, ou melhor, a necessidade de justiça, em Kelsen, somente surge quando há um conflito de interesses, isto é, quando um interesse só pode ser satisfeito à custa de outro, quando dois valores se contrapõem e não é possível concretizá-los ao mesmo tempo. Aliás, segundo o jurista vienense, onde este conflito não existe, a justiça é desnecessária.
Este problema de conflitos de valores, para Kelsen, não pode ser solucionado com os meios de conhecimento racional[7], mas apenas por fatores emocionais:
"Não existe, e não pode existir, um critério objetivo de justiça porque a afirmação de que algo é justo ou injusto é um juízo de valor que se refere a um fim absoluto, e esses juízos de valor são, pela sua própria natureza, de caráter subjetivo porque baseados em elementos emocionais de nossa mente, em nossos sentimentos e desejos. Juízos de valor definitivos são, na maioria das vezes, atos de preferência; indicam o que é melhor em vez de o que é bom; implicam a escolha entre dois valores conflitantes como, por exemplo, a escolha entre liberdade e segurança. Se um sistema social que garante a liberdade individual, mas não a segurança econômica, é preferível a um sistema social que garante a segurança econômica, mas não a liberdade individual, depende da decisão quanto a ser a liberdade ou a segurança o valor superior. Existem indivíduos que preferem a liberdade à segurança porque se sentem felizes apenas se forem livres (...) Seus juízos sobre o valor da liberdade e o da segurança, e, portanto, sua ideia de justiça, baseiam-se, por fim, em nada mais que seus sentimentos."[8]
A solução, portanto, é baseada em sentimentos, e, portanto, subjetiva, o que significa que o "juízo é válido para o sujeito que julga", sendo, nesse sentido, relativa. Chegamos a um ponto crucial na teoria da justiça de Kelsen: a "relatividade do valor moral".
Com o fito de corroborar a sua tese de que o valor justiça é relativo, isto é, que uma determinada norma de justiça não exclui as demais, Hans Kelsen adotou uma postura cética em relação à justiça, restringindo-se a enumerar, uma a uma, as grandes teorias da justiça, que o mesmo dividiu em racionalistas, metafísicas e jusnaturalistas, e à criticá-las.
Não nos alongaremos aqui na reprodução de cada uma das grandes teorias da justiça, mas apenas a enunciá-las, pois o foco no presente estudo é o pensamento de Kelsen sobre a Justiça.
Dentre as teorias racionalistas criticadas por Kelsen, enquadrar-se-iam: A fórmula do suum cuique[9]; A justiça e o princípio da igualdade, no viés do meio-termo aristotélico, e no viés da Regra de Ouro; Princípio da Redistribuição; O imperativo categórico de Kant; A justiça e a liberdade; A justiça em Marx; A fórmula do bonum faciendum et male vitandum[10]; O costume como valor de justiça social; O princípio da equivalência; O princípio do amor ao próximo. Dentre as teorias metafísicas, enquadrar-se-iam: A justiça nas sagradas escrituras; A justiça platônica. Por fim, Kelsen aborda as teorias jusnaturalistas.
Para Kelsen, essas normas são vazias de sentido. Sustentou que o cientista que se dedica à justiça não deve apontar qual das normas de justiça é a melhor, devendo apenas descrevê-las, a fim de tomar conhecimento da realidade, ao invés de tomar uma posição em face da realidade.
Kelsen não se sensibilizou com o fato de que, sendo várias e incompletas as formas de se conceber a justiça, a questão fica em aberto. Resoluto em seu desiderato, rejeitou a subjetividade de qualquer decisão sobre esta ou aquela norma de justiça, pois, para ele, qualquer juízo de valor que se faça diante das diversas normas de justiça existentes apenas leva em consideração fatores emocionais, sendo válido apenas par o indivíduo que julga.
Assumindo um ponto de vista científico, Kelsen rejeita valores absolutos, e, por consequência, rejeita uma Moral absoluta, sob o argumento de que não há uma única Moral válida que exclua a possibilidade de validade de qualquer outra ordem moral. Outro argumento invocado por Kelsen baseia-se na constatação de que, em diferentes épocas e em diferentes povos, ou mesmo em um mesmo povo, notadamente entre diferentes classes, categorias e profissões, valeram sistemas morais muito diferentes e contraditórios entre si.
Valores absolutos, segundo ele, somente podem ser admitidos com base numa crença religiosa ou na autoridade transcendente de uma divindade. Esta é a sua conclusão:
"Com efeito, quando se não pressupõe qualquer a priori com dado, quando se não pressupõe qualquer valor moral absoluto, não se tem qualquer possibilidade de determinar o que é que tem de ser havido, em todas as circunstâncias, quer bom e mau, justo e injusto"[11].
Não é possível decidir objetivamente o que é justo e o que é injusto, como se determina algo é ácido ou uma base, porque a afirmação de que algo é justo ou injusto é um juízo de valor que se refere a um fim absoluto: a justiça absoluta. Esta, no entanto, não é cognoscível pela razão humana:
"...o absoluto em geral e valores absolutos em particular encontram-se além da razão humana..."[12].
Não podemos, assim, determinar se esta ou aquela ordem social tem um valor absoluto de justiça. Logo, inexiste uma ordem social absolutamente justa, mas apenas pode existir uma ordem social relativamente justa.
Vale a pena frisar que a inexistência de valores absolutos não significa que um certo número de indivíduos não possa concordar em seus juízos de valor. Isto é possível. Sucede, diz Kelsen, que o "...fato de certos valores serem aceitos por todos dentro de uma determinada sociedade é perfeitamente compatível com o caráter subjetivo e relativo dos juízos que mantêm esses valores..."[13], na medida em que a unanimidade sobre um juízo de valor não prova que ele esteja correto e não lhe confere objetividade. Como se sabe, relembra o jurista, o fato de muitos homens terem acreditado, no passado, que o Sol girava em torno da Terra não provou que este juízo estivesse correto.
Estudar a relação entre o Direito e a Justiça significa estudar a relação entre o Direito e a Moral. Neste particular, importante transcrever a lição de Hans Kelsen:
"Ao lado das normas jurídicas, porém, há outras normas que regulam a conduta dos homens ente si, isto é, normas sociais. Essas outras normas sociais podem ser abrangidas sob a designação de Moral e a disciplina dirigida ao seu conhecimento e descrição pode ser designada como Ética. Na medida em que a Justiça é uma exigência da Moral, na relação entre a Moral e o Direito está contida a relação entre a Justiça e o Direito."[14]
O Direito, para Hans Kelsen, é sistema de normas que regulamenta a conduta recíproca de seres humanos. A seu turno, ordem social é um conjunto de regras que prescreve certa conduta humana. Logo, por silogismo, o Direito é uma ordem social. Sabendo que inexiste uma ordem social justa, podemos dizer, então, com base nos conceitos de Kelsen, que inexiste um Direito justo em termos absolutos, isto é, capaz de ser justo em todas as circunstâncias e de excluir a possibilidade de uma outra ordem social jurídica também ser considerada justa.
Antes de prosseguir nesse estudo, é oportuno salientar o alerta de Kelsen no sentido de essa investigação sobre a relação entre Direito e a Moral requer muita atenção para o seu caráter dúplice:
"...pode com ela pretender-se indagar qual a relação que de fato existe entre o Direito e a Moral, mas também se pode pretender descobrir a relação que deve existir entre os dois sistemas de normas"[15].
Esta relação e abordada nos seguintes textos de Hans Kelsen: no segundo capítulo da obra Teoria Pura do Direito, dedicado inteiramente ao tema, intitulado "Direito e Moral"; no artigo "Direito, Estado e justiça na Teoria Pura do Direito", publicado no livro O que é a justiça?, e ainda na obra O problema da Justiça, sob o título "Direito e justiça: a teoria idealista do direito é uma teoria dualista".
Kelsen apresenta as duas concepções existentes sobre o assunto. Para a primeira, defendida pela teoria idealista, o direito positivo somente é válido na medida em que a sua prescrição corresponda às exigências da justiça. Para a segunda, defendida pela teoria realista e adotada pelo positivismo jurídico, o direito positivo deve ser aplicado e acatado independente de sua conformidade com uma norma de justiça. Não é preciso dizer à qual delas Kelsen se filiou.
A teoria idealista identifica Direito e Justiça, e afirma que o Direito por essência tem um conteúdo moral. Segundo seus defensores, não é Direito uma ordem social que prescreva uma conduta que a Moral proíbe ou proíba uma conduta que a Moral prescreva. Hans Kelsen refuta esta teoria por dois principais motivos.
Primeiro, pelo seu caráter dualista, ao exigir a coexistência ente um direito ideal e o direito posto pelo homem. A norma de justiça que prescreve uma determinada conduta humana, ao pretender ser a única válida, carece de uma Moral absoluta, uma única Moral válida, a qual, como antes visto, inexiste, a não ser que se conceba procedente de uma autoridade transcendente. Ocorre que uma ordem jurídica positiva não pode ser valorada com base em uma Moral simplesmente relativa.
Em segundo lugar, a aplicação de uma tal teoria idealista numa dada comunidade jurídica conduziria a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva vigente nessa comunidade. O direito estatuído seria considerado válido e tornado eficaz sob o argumento de que se trata de um direito justo simplesmente por ser direito.
O jurista, ao optar pela teoria realista, que diferencia Direito e Justiça, não nega que as normas de justiça indicam e influenciam a elaboração do conteúdo do Direito, isto é, que elas visam os atos pelos quais o direito é posto, mas diz que justamente por isso a justiça não se confunde com o direito posto. Isso não significa negar a possibilidade de qualificação do direito como justo ou injusto:
"Um Direito Positivo pode ser justo ou injusto, a possibilidade de ser justo ou injusto é uma conseqüência essencial do fato de ser positivo."[16]
Porém, essa qualificação somente pode ser feita com base em um critério relativo, sob a ótica de um determinado sistema de moral, dentre os diversos sistemas morais existentes, muitos deles diferentes e contraditórios entre si, isto é, segundo uma das normas de justiça, dentre as diversas normas de justiça existentes:
"Devemos ter presente, porém, quando apreciamos 'moralmente' uma ordem jurídica positiva, quando a valoramos como boa ou má, justa ou injusta, que o critério é um critério relativo, que não fica excluída uma diferente valoração com base num outro sistema de moral que, quando uma ordem jurídica é considerada injusta se apreciada com base no critério fornecido por um sistema moral, ela pode ser havida como justa se julgada pela medida ou critério fornecido por um outro sistema moral."
Conforme a Teoria Pura do Direito, o direito possui a característica de poder ser moral e de poder não ser moral.
Embora o direito justo seja preferível[17], o direito não precisa ser justo para ser válido, para ser aceito. Eis a separação entre o Direito e a Moral. Eis a separação entre o Direito e a Justiça.
O direito precisa exclusivamente ser produzido de acordo com as regras dadas pelo próprio ordenamento jurídico, ou seja, de acordo com a norma fundamental. Essa norma fundamental não se fundamenta, nem constitui um determinado valor justiça, conforme descreve Kelsen, apenas determina o fundamento de validade de uma ordem jurídica positiva:
"Uma teoria jurídica não reconhece o fundamento de validade de uma ordem jurídica positiva em nenhuma das muitas normas de justiça - pois não pode dar a nenhuma delas preferência sobre as demais - mas, como já se mostrou, numa norma fundamental (...) pressuposta pelo pensamento jurídico (...) por força da qual devemos tratar os homens conforme uma primeira constituição histórica, global e regularmente eficaz, sem importar a questão de saber se a ordem jurídica erigida em conformidade com esta constituição corresponde ou não a qualquer norma de justiça."[18]
"A única norma não-positiva que a ciência do Direito pode levar em consideração - não como objeto, mas como uma condição dos enunciados que descrevem seu objeto - é a norma fundamental ... Portanto, a norma fundamental de uma ordem jurídica positiva tem um caráter meramente formal; ela não constitui um valor substantivo como, por exemplo, a norma não positiva de que os homens devem ser livres, ou de que os homens devem viver em segurança - que constituem o valor que chamamos de justiça."[19]
Miguel Reale[20] observa que essa teoria da validade do direito, ou do formalismo [21]jurídico, em que a validade do direito se funda em critérios que concernem unicamente à sua estrutura formal, ao seu aspecto exterior, prescindindo do seu conteúdo, decorre da exclusão dos juízos de valor em busca da objetividade que só pode ser conseguida através de juízos de fato. Dentro dessa estrutura formal, o direito prescinde do fato de ser bom ou mau, justo ou injusto, de ser um valor ou um desvalor. Assume-se uma atitude em que a validade do direito real independe de sua correspondência com o direito ideal, afastando-se da visão jusnaturalista, pela qual uma norma só é válida, existente, se for justa.
A validade de uma norma jurídica (a validade do direito) tem a ver com a sua pertinência a um ordenamento jurídico. Dizer que uma norma é válida significa dizer que ela existe. Enquanto o valor de uma norma jurídica (o valor do direito) tem a ver com sua correspondência ao direito ideal, visto como "a síntese de todos os valores fundamentais nos quais o direito deve se inspirar."[22]
Enfim, validade e justiça - entendida esta como um valor absoluto, constituído por uma norma não-positiva, que se afirma em todas as partes e em todos os tempos, uma norma substantiva com um conteúdo imutável - são valores diversos. A validade não depende de sua conformidade com a justiça. O direito é válido ainda que contrarie os padrões morais. Deste modo, uma norma pode ser válida e justa, válida e injusta.
Kelsen sustenta que a função de discutir o justo, o que equivale a discutir as normas de justiça, não cabe ao jurista e que a doutrina da justiça não é objeto de seu conhecimento, mas de outra ciência, a ética, à qual incumbe estudar o que é certo e errado, o que é justo e injusto:
"...a questão de se determinada ordem jurídica é justa ou injusta não pode ser respondida no âmbito e pelos métodos específicos de uma ciência voltada para uma análise estrutural do Direito positivo."[23]
Não podemos esquecer que o princípio metodológico fundamental da Teoria Pura do Direito é libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos.
Dentro dessa linha de raciocínio, o jurista não deve valorar ou apreciar o objeto do direito, mas apenas descrevê-lo. Sua ciência deve ser objetiva. Em face de uma norma jurídica válida, deve apenas descrever seu conteúdo e não discutir o valor justiça em que se baseou a sua estatuição. Na interpretação de uma norma jurídica, o jurista deve apenas descrever todas as interpretações possíveis, sem escolher a melhor. Diante do problema da justiça, deve ser neutro, adotando uma postura de indiferença, pois a valoração ética do direito não é função da ciência do direito.
3. Conclusões
Hans Kelsen partiu da constatação de que a palavra justiça é utilizada correntemente como uma característica possível de uma ordem social ou como uma qualidade ou atributo da conduta social do ser humano.
Destacaram-se duas premissas em sua investigação teórica acerca da justiça como qualidade ou atributo da conduta social do ser humano:
- a conduta humana é qualificada justa ou injusta de acordo com sua correspondência a uma norma de justiça, que lhe imputa um dever ser, pois esta é a peculiaridade formal de todo e qualquer ordenamento social;
- considerando que os homens tem e sempre terão a necessidade de justificarem seu comportamento com base em um fim último, que não sirva de meio para nenhum outro fim, um comportamento social somente pode ser qualificado como absolutamente justo se corresponder a uma norma de justiça absoluta, entendida esta como um critério pelo qual uma determinada conduta é posta como devida em exclusão a todas as condutas em sentido contrário.
Com o fito de corroborar a sua tese de que o valor justiça é relativo, isto é, que uma determinada norma de justiça não exclui as demais, Hans Kelsen adotou uma postura cética em relação à justiça, restringindo-se a enumerar, uma a uma, as grandes teorias da justiça, que o mesmo dividiu em racionalistas, metafísicas e jusnaturalistas, e à criticá-las, por serem dependentes de uma ordem social ou moral positiva que lhes forneça conteúdo, ou vazias de sentido.
Sustentou Kelsen que o cientista que se dedica à justiça não deve apontar qual das normas de justiça é a melhor, devendo apenas descrevê-las, a fim de tomar conhecimento da realidade, ao invés de tomar uma posição em face da realidade.
Kelsen não se sensibilizou com o fato de que, sendo várias e incompletas as formas de se conceber a justiça, a questão fica em aberto. Resoluto em seu desiderato, rejeitou a subjetividade de qualquer decisão sobre esta ou aquela norma de justiça, pois, para ele, qualquer juízo de valor que se faça diante das diversas normas de justiça existentes apenas leva em consideração fatores emocionais, sendo válido apenas par o indivíduo que julga.
O ponto de partida[24] e, ao nosso ver também de chegada de Hans Kelsen, é que não existe, sob o ponto de vista racional, uma norma de justiça absoluta (justiça absoluta) capaz de resolver os conflitos de valores existentes na vida de relação do homem, onde ela se faz mais necessária, ou apta a servir de fim último e justificador do comportamento humano, exceto sob o ponto de vista irracional, se se acreditar que a justiça absoluta provem de uma autoridade transcendente, mesmo assim arcando com o ônus das contradições dessa teoria metafísica de justiça.
Se por um lado, em razão de sua teoria do direito, Kelsen se reconhece o “mérito de ter albergado em suas pretensões teóricas a construção do verdadeiro e definitivo espaço teórico da ciência do direito”[25], por outro, sua teoria da justiça tem recebido pertinentes críticas em função de sua inocuidade.
Mário G. Losano[26] critica essa intenção de descrever e não prescrever, de enumerar e não escolher, por ser destinada a um mundo onde se prescreve e se escolhe, pois só assim se muda a realidade. Acompanhamos este pensamento por considerarmos que o conhecimento não é um fim em si mesmo e sim um instrumento que deve servir à ação sobre o status quo. Refutando as contradições suscitadas em relação às normas de justiça, o jurista italiano salienta que Kelsen coloca os vários conteúdos do valor justiça numa sincronia irreal, ao passo que, na realidade histórica, esses valores não coexistem, mas se sucedem no tempo, mesmo que com inevitáveis sobreposições parciais.
Por outro lado, assim como não há uma norma de justiça absoluta, inexiste uma ordem social absolutamente justa, capaz de realizar concomitantemente a felicidade subjetiva de todos os indivíduos, pois estes apresentam conflitos de interesses cuja solução sempre implicará a infelicidade daquele que teve sua felicidade preterida. Sendo o direito uma ordem social, conclui-se que não pode haver um Direito absolutamente justo.
Kelsen admite a qualificação do direito como direito justo e injusto, mas somente no caso concreto, na medida em que não admite a qualificação de uma norma como justa, sob o argumento de que não se pode formular um juízo de valor sobre outro valor. Ao que nos parece, a rígida divisão entre o ser e o dever ser não sobreviveu à própria Teoria Pura do Direito e ao reconhecimento de que a norma não é definida apenas através de sua validade, mas também através de sua eficácia.
Em Kelsen, o direito pode ser qualificado de justo dentro de um critério relativo, sob o ponto de vista da ordem moral vigente em determinada comunidade, mas não precisa sê-lo. Não precisa respeitar um mínimo moral, podendo ser injusto sem deixar de ser válido. As normas jurídicas apenas precisam ser produzidas em conformidade com o ordenamento jurídico.
Reconhecemos que Kelsen estava certo ao afirmar que o direito não deixa de ser válido por ser injusto, mas entendemos que assim o direito perde o seu sentido.
Recorremos ao pensamento de Tércio Sampaio Ferraz Junior, exposto no final de sua obra, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação, para criticarmos a posição radical de Kelsen em defesa da possibilidade de um direito injusto sob o argumento de que as ordens morais e jurídicas são absolutamente independentes:
“...nenhum homem pode sobreviver numa situação em que a justiça, enquanto sentido unificador do seu universo moral, foi destruída, pois a carência de sentido torna a vida insuportável. Ao menos nestes termos existenciais, é de se reconhecer que a justiça confere ao direito um significado no sentido de razão de existir. Diz-se, assim, que o direito deve ser justo ou não tem sentido a obrigação de respeitá-lo.”[27]
Ao final do seu ensaio “O que é justiça?”[28], Kelsen se declara plenamente ciente de não ter respondido à pergunta título de seu trabalho, escusando-se no argumento de que, sendo a justiça absoluta um sonho da humanidade, também os maiores pensadores fracassaram ao tentar decifrá-la, ou na suposição de que se trata de uma daquelas questões para as quais o “homem nunca encontrará uma resposta definitiva; devendo apenas tentar perguntar melhor”[29].
Todavia, não se pode dizer que Kelsen, enquanto indivíduo (e não como jurista ou cientista da justiça), deixou de expor o seu entendimento acerca da justiça. Para ele, justiça é “...justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância.”[30] A justiça para Hans Kelsen é, sobretudo, ideológica. Sua formulação levou em conta as próprias sensações de seu autor, aproximando-se mais da dóxa, opinião, do que da verdade e do conhecimento, episteme.
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[1] O que é a justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência, p. 2.
[2] O problema da justiça, p. 3.
[3] O problema da justiça, p. 72.
[4] O que é a justiça?: A justiça, o direito e apolítica no espelho da ciência, p. 2.
[5] Kelsen afirma que mesmo a fórmula de Jeremy Bentham, que busca proporcionar a maior felicidade possível ao maior número possível de pessoas não perfaz a ordem justa, pois uma ordem social não consegue garantir felicidade num sentido subjetivo-individual, na medida em que indivíduos diferentes divergem em suas concepções de felicidade.
[6] Ibid., p. 4.
[7] No mesmo diapasão, Ayer: "Os conceitos éticos fundamentais escapam à análise, porque não existe um critério pelo qual se possa testar a validade dos julgamentos em que se apresentam...", citado por Edgar Bodenheimer, Ciência do Direito, p. 202.
[8] O que é justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência, p. 293.
[9] "Conceder a cada um o que é seu", atribuída ao jurisconsulto Ulpiano.
[10] "Fazer o bem e evitar o mal".
[11] Teoria Pura do Direito, p. 73.
[12] O que é a justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência, p. 11.
[13] Ibid., p. 8.
[14] Teoria Pura do Direito, p. 67.
[15] Ibid., p. 71.
[16] O que é a justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência, p. 364.
[17] "Se a idéia de justiça tem alguma função, é a de ser um modelo para a feitura do bom Direito e um critério para distinguir bom e mau Direito." Hans Kelsen, op. cit., p. 292.
[18] Ibid., p. 70.
[19] Ibid., p. 363.
[20] REALE, Miguel. A Visão Integral do Direito em Kelsen. In: Estudos de Filosofia do Direito: Uma Visão Integral da Obra de Hans Kelsen. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1984.
[21] Conforme Norberto Bobbio, citado por Mario G. Losano, apud O problema da justiça, op. cit., p. XXIII: "...com base na filosofia neokantiana, Kelsen decide privilegiar o aspecto formal e não os aspectos ético e substancial do direito." Miguel Reale, op. cit., p. 19, faz a seguinte ressalva: "A teoria Kelseniana jamais foi formalista, no sentido ingênuo desta palavra. Para ele, fiel à doutrina de Kant, para quem a forma sem a realidade é vazia, e a realidade sem a forma é cega, o elemento formal jamais se apresenta como algo válido em si e por si, mas sempre como uma estrutura aplicável a determinada porção ou a determinado momento da experiência."
[22] Ibid., p. 137.
[23] O que é justiça? A justiça, o direito e apolítica no espelho da ciência, p. 292.
[24] Assim Mario G. Losano, na introdução de O problema da justiça, p. XXV.
[25] Eduardo C. Bittar, Ibid., p. 186, bem como em nota de rodapé: “A sua teoria pura do direito constitui a mais grandiosa tentativa de fundamentação da ciência do Direito como ciência – mantendo-se embora sob império do conceito positivista desta última e sofrendo das respectivas limitações – que o nosso século veio até hoje a conhecer (Larenz, Metodologia da ciência do direito, 1989, p. 82)”.
[26] Ibid., p. XXIX.
[27] Ibid., p. 351.
[28] O que é Justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência, p. 25.
[29] Ibid., p. 1.
[30] Ibid., p. 25.
Procurador Federal. Chefe do Serviço de Consultoria e Assessoramento da Procuradoria Regional do INSS em Porto Alegre. Ex-Procurador do Município de Porto Alegre. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Cristiano Silvestrin de. A Crítica de Hans Kelsen ao Conceito de Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42653/a-critica-de-hans-kelsen-ao-conceito-de-justica. Acesso em: 23 dez 2024.
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