RESUMO: O presente artigo aborda o direito de greve no serviço público, à luz da Constituição Federal, registrando o entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mandado de Injunção 712.
PALAVRAS-CHAVE: Greve. Greve no serviço público. Mandado de injunção. Princípio da continuidade do serviço público.
INTRODUÇÃO:
A greve é um mecanismo utilizado pela coletividade de trabalhadores na luta pela conquista de melhores condições de vida e trabalho. Essencialmente, a greve tem por efeito gerar algum prejuízo ao empregador, com vistas a instiga-lo a aceitar as reivindicações da classe operária. Normalmente, caracteriza-se pela suspensão coletiva da prestação de serviços ao empregador, muito embora a doutrina aponte para outras modalidades de manifestação grevista, como a greve de zelo ou a greve-tartaruga. Nestes aspectos, a greve revela-se como um fato social.
No que tange ao direito de greve do servidor público, sua consagração pela Constituição Cidadã foi um evento inédito no ordenamento jurídico brasileiro, haja vista a ordem jurídica anterior expressamente proibi-la. Com efeito, a atual redação do artigo 37, VII proclama que o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica. Apesar de certa resistência inicial, a jurisprudência, em harmonia com o espírito democrático que inspirou a atual Constituição Federal, evoluiu para consagrar a eficácia plena desde direito fundamental social.
DESENVOLVIMENTO:
Historicamente, a greve era proibida pelos ordenamentos jurídicos, sendo tipificada como crime e sido bastante reprimida pelos órgãos estatais. Seu reconhecimento jurídico se operou no plano internacional principalmente após a adoção do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 8º, item 1, alínea “a”). A OIT, conquanto não tenha uma convenção que trate especificamente sobre o direito de greve, expede orientações sobre o tema a seus membros, por meio do Comitê de Liberdade Sindical.
No Brasil, a Constituição da República de 1988, rompendo a ordem totalitarista então vigente e consagrando o paradigma democrático de direito, reconheceu a greve como direito fundamental social, no seu artigo 9º, conferindo aos trabalhadores a liberdade de decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses a serem defendidos. Cuida-se de direito fundamental de natureza garantidora já que, pelo seu escopo, busca a efetividade de outros direitos fundamentais trabalhistas.
Como direito fundamental, o direito de greve não é absoluto e está condicionado à preservação de outros direitos fundamentais consagrados pela Constituição, pelo que seu exercício se submete ao postulado da proporcionalidade e ao princípio da cedência recíproca.
Nas Constituições anteriores, os servidores públicos não tinham direito à organização sindical ou greve. A Constituição da República de 1988 foi a primeira a lhes assegurar tais direitos (vedados, contudo, aos militares), nos termos e limites definidos em lei específica. Duas correntes surgiram a respeito do alcance deste direito. Uma primeira corrente defendia que a greve no serviço público seria um direito de eficácia limitada, somente exercível após a edição da referida lei, não sendo autoaplicável – conforme se manifestou o STF, inicialmente. Uma segunda corrente sustentava que seria um preceito de eficácia contida, com incidência plena, integral e imediata, podendo ser exercido, enquanto não aprovada a lei específica, por meio da aplicação analógica do regramento previsto para os serviços essenciais na Lei de Greve do setor privado (LICC, CPC e CLT autorizam a integração por analogia).
A decisão do STF no MI 712.
Nos termos do inciso LXXI do artigo 5º da Constituição Federal, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, soberania e cidadania, caberá mandado de injunção visando suprir a inércia do Congresso Nacional ou de outros órgãos. Até pouco tempo, contudo, vinha se mostrando, na prática, letra morta, em face da antiga jurisprudência do STF, que apenas reconhecia a mora do órgão incumbido da regulamentação requerida, mas não estabelecia a necessária e provisória normatização do direito/liberdade que se pretendia dar efetividade, ficando equiparada em efeitos à ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
Foi o que aconteceu no MI 20 (sobre o direito de greve dos servidores), em que o STF perdeu a oportunidade de atribuir ao instituto seu verdadeiro papel, qual seja, o de conferir efetividade concreta aos direitos fundamentais. Foi reconhecida a inércia do poder legislativo, mas nada fez no sentido de efetivar o direito de greve, inviabilizando-o e retirando a efetividade do inovador instituto da injunção.
Posteriormente, o Pretório Excelso evoluiu, para, além de reconhecer a inércia/mora, assinar prazo para os órgãos competentes estabelecerem a regulamentação pretendida (adotarem as devidas providências legislativas), sob pena de, esgotado o prazo, o autor do mandado de injunção poder ajuizar nova ação buscando diretamente usufruir o direito não regulamentado. A simples existência de projetos de lei não seria suficiente para afastar a mora.
O STF evoluiu sua jurisprudência para, filiando-se à corrente concretista, reconhecer a mora legislativa, assegurando, contudo, o imediato exercício do direito de greve pelos servidores, por meio do empréstimo da Lei de Greve do setor privado, feitas as devidas adaptações, em razão das peculiaridades do serviço público. Reconheceu o STF que a greve, como um poder de fato, é a arma mais eficaz de que dispõem os trabalhadores para a obtenção de melhoria em suas condições de vida, pelo que deve receber concreção imediata (autoaplicabilidade), como direito fundamental de natureza instrumental. Assim, registra-se a ementa do julgado:
EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO. ART. 5º, LXXI DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. CONCESSÃO DE EFETIVIDADE À NORMA VEICULADA PELO ARTIGO 37, INCISO VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. LEGITIMIDADE ATIVA DE ENTIDADE SINDICAL. GREVE DOS TRABALHADORES EM GERAL [ART. 9º DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL]. APLICAÇÃO DA LEI FEDERAL N. 7.783/89 À GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO ATÉ QUE SOBREVENHA LEI REGULAMENTADORA. PARÂMETROS CONCERNENTES AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE PELOS SERVIDORES PÚBLICOS DEFINIDOS POR ESTA CORTE. CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO. GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO. ALTERAÇÃO DE ENTENDIMENTO ANTERIOR QUANTO À SUBSTÂNCIA DO MANDADO DE INJUNÇÃO. PREVALÊNCIA DO INTERESSE SOCIAL. INSUBSSISTÊNCIA DO ARGUMENTO SEGUNDO O QUAL DAR-SE-IA OFENSA À INDEPENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS PODERES [ART. 2O DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL] E À SEPARAÇÃO DOS PODERES [art. 60, § 4o, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL]. INCUMBE AO PODER JUDICIÁRIO PRODUZIR A NORMA SUFICIENTE PARA TORNAR VIÁVEL O EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS, CONSAGRADO NO ARTIGO 37, VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O acesso de entidades de classe à via do mandado de injunção coletivo é processualmente admissível, desde que legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano. 2. A Constituição do Brasil reconhece expressamente possam os servidores públicos civis exercer o direito de greve --- artigo 37, inciso VII. A Lei n. 7.783/89 dispõe sobre o exercício do direito de greve dos trabalhadores em geral, afirmado pelo artigo 9º da Constituição do Brasil. Ato normativo de início inaplicável aos servidores públicos civis. 3. O preceito veiculado pelo artigo 37, inciso VII, da CB/88 exige a edição de ato normativo que integre sua eficácia. Reclama-se, para fins de plena incidência do preceito, atuação legislativa que dê concreção ao comando positivado no texto da Constituição. 4. Reconhecimento, por esta Corte, em diversas oportunidades, de omissão do Congresso Nacional no que respeita ao dever, que lhe incumbe, de dar concreção ao preceito constitucional. Precedentes. 5. Diante de mora legislativa, cumpre ao Supremo Tribunal Federal decidir no sentido de suprir omissão dessa ordem. Esta Corte não se presta, quando se trate da apreciação de mandados de injunção, a emitir decisões desnutridas de eficácia. 6. A greve, poder de fato, é a arma mais eficaz de que dispõem os trabalhadores visando à conquista de melhores condições de vida. Sua auto-aplicabilidade é inquestionável; trata-se de direito fundamental de caráter instrumental. 7. A Constituição, ao dispor sobre os trabalhadores em geral, não prevê limitação do direito de greve: a eles compete decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dela defender. Por isso a lei não pode restringi-lo, senão protegê-lo, sendo constitucionalmente admissíveis todos os tipos de greve. 8. Na relação estatutária do emprego público não se manifesta tensão entre trabalho e capital, tal como se realiza no campo da exploração da atividade econômica pelos particulares. Neste, o exercício do poder de fato, a greve, coloca em risco os interesses egoísticos do sujeito detentor de capital --- indivíduo ou empresa --- que, em face dela, suporta, em tese, potencial ou efetivamente redução de sua capacidade de acumulação de capital. Verifica-se, então, oposição direta entre os interesses dos trabalhadores e os interesses dos capitalistas. Como a greve pode conduzir à diminuição de ganhos do titular de capital, os trabalhadores podem em tese vir a obter, efetiva ou potencialmente, algumas vantagens mercê do seu exercício. O mesmo não se dá na relação estatutária, no âmbito da qual, em tese, aos interesses dos trabalhadores não correspondem, antagonicamente, interesses individuais, senão o interesse social. A greve no serviço público não compromete, diretamente, interesses egoísticos do detentor de capital, mas sim os interesses dos cidadãos que necessitam da prestação do serviço público. 9. A norma veiculada pelo artigo 37, VII, da Constituição do Brasil reclama regulamentação, a fim de que seja adequadamente assegurada a coesão social. 10. A regulamentação do exercício do direito de greve pelos servidores públicos há de ser peculiar, mesmo porque "serviços ou atividades essenciais" e "necessidades inadiáveis da coletividade" não se superpõem a "serviços públicos"; e vice-versa. 11. Daí porque não deve ser aplicado ao exercício do direito de greve no âmbito da Administração tão-somente o disposto na Lei n. 7.783/89. A esta Corte impõe-se traçar os parâmetros atinentes a esse exercício. 12. O que deve ser regulado, na hipótese dos autos, é a coerência entre o exercício do direito de greve pelo servidor público e as condições necessárias à coesão e interdependência social, que a prestação continuada dos serviços públicos assegura. 13. O argumento de que a Corte estaria então a legislar --- o que se afiguraria inconcebível, por ferir a independência e harmonia entre os poderes [art. 2o da Constituição do Brasil] e a separação dos poderes [art. 60, § 4o, III] --- é insubsistente. 14. O Poder Judiciário está vinculado pelo dever-poder de, no mandado de injunção, formular supletivamente a norma regulamentadora de que carece o ordenamento jurídico. 15. No mandado de injunção o Poder Judiciário não define norma de decisão, mas enuncia o texto normativo que faltava para, no caso, tornar viável o exercício do direito de greve dos servidores públicos. 16. Mandado de injunção julgado procedente, para remover o obstáculo decorrente da omissão legislativa e, supletivamente, tornar viável o exercício do direito consagrado no artigo 37, VII, da Constituição do Brasil.
Registre-se que a adaptação da Lei de Greve do setor privado deve-se às peculiaridades do serviço público. A principal peculiaridade reside no fato de na relação estatutária (servidor – Poder Público) não existir a tensão entre trabalho e capital, como nas atividades econômicas (quando a greve coloca em riscos os interesses egoísticos do capital). Na greve no serviço público, há, em verdade, oposição entre os interesses dos trabalhadores e o interesse social, dos cidadãos na prestação do serviço público – cuja continuidade há de ser, por isso mesmo, assegurada. Assim, a Lei de Greve necessita dos devidos ajustes para poder regulamentar a greve no serviço público, voltadas ao atendimento de necessidades inadiáveis da coletividade (atividades próprias do Estado).
Dentre as adaptações, destaca-se que a paralização somente pode ser parcial, e nunca total, em razão do princípio da continuidade do serviço público. Por outro lado, a necessária comunicação ao órgão público e à comunidade afetada deve ser feita com antecedência mínima de 72 horas (e não 48 horas), por meios eficientes de conhecimento.
Percebe-se a semelhança entre a greve no serviço público e a greve nas atividades essenciais – onde temos o mesmo conflito entre o direito de greve, de um lado, e os direitos fundamentais da população, de outro, clamando por compatibilização, proporcionalidade e bom-senso.
CONCLUSÃO:
A Constituição Federal de 1988, imbuída no espírito democrático subjacente ao fim da ditadura militar, consagrou o direito de greve dos servidores públicos. O entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mandado de Injunção 712 se harmoniza com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, de um lado, e reverencia o princípio da proporcionalidade, na medida em que as adaptações realizadas visa resguardar o interesse público tutelado pela Administração.
REFERÊNCIA:
MELO, Raimundo Simão. A greve no direito brasileiro. 3ª Edição. São Paulo: LTR, 2011.
Procuradora Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALDAS, Raquel Bezerra Muniz de Andrade. Apontamentos sobre o direito de greve no serviço público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2014, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42664/apontamentos-sobre-o-direito-de-greve-no-servico-publico. Acesso em: 23 dez 2024.
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