Resumo: Este artigo pretende avaliar a natureza da investigação preliminar na sede disciplinar e o eventual acesso do servidor público àquele procedimento investigatório em face da Lei de Acesso à Informação.
Palavras-chave: Processo disciplinar. Investigação Preliminar. Sigilo. Lei de acesso à informação.
O art. 143 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, estabelece que “a autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa”.
No âmbito do Poder Executivo Federal, restou consagrada, ainda, a investigação preliminar como procedimento prévio à apuração, destinado tão-somente a formar o convencimento da autoridade sobre a presença ou não de indícios de autoria e materialidade que justifiquem a eventual apuração de irregularidade por meio próprio e, portanto, ainda sem a presença de acusados ou interessados. Trata-se, deste modo, de elemento ainda integrante de um juízo de admissibilidade prévio aos procedimentos de apuração que se encontram descritos na Lei nº 8.112, de 1990.
A Investigação Preliminar, ressalte-se, constitui instrumento apuratório previsto expressamente na Portaria CGU nº 335/2006, que regulamenta o Sistema de Correição do Poder Executivo Federal de que trata o Decreto nº 5.480[1], de 30 de junho de 2005, sendo definida como “procedimento sigiloso, instaurado pelo Órgão Central e pelas unidades setoriais, com objetivo de coletar elementos para verificar o cabimento da instauração de sindicância ou processo administrativo disciplinar”.
Trata-se, deste modo, de procedimento sigiloso, de viés meramente investigativo e, portanto, sem possibilidade de dar ensejo a qualquer espécie de sanção ou penalidade. Tem-se, em verdade, a mera reunião de elementos informativos, prévios ao início de qualquer procedimento disciplinar ou sindicância e destinados tão-somente a formar um juízo primário da Administração acerca da ocorrência ou não de determinada irregularidade, que terá sua apuração, se for o caso, por meio de procedimento administrativo específico.
É, ainda, com base na mesma linha de intelecção que, ante a ausência até mesmo da delimitação de interessados nesta fase de reunião de informações, entende-se prescindíveis o contraditório e a ampla defesa, restando tal posicionamento devidamente consagrado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, conforme se depreende do julgado abaixo colacionado:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. SINDICÂNCIA PRELIMINAR. GARANTIAS DO CONTRADITÓRIO E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. INAPLICABILIDADE. CARÁTER INQUISITORIAL. POSTERIOR ABERTURA DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR (PAD). SUPERAÇÃO DE EVENTUAIS IRREGULARIDADES DO PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 343/STJ. EDIÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 5 PELO STF. ALEGAÇÃO DE OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO. INOVAÇÃO RECURSAL. INADMISSIBILIDADE NA VIA DO AGRAVO INTERNO. 1. A tese de ocorrência da prescrição da ação disciplinar não foi apreciada pelo Tribunal de origem, tampouco suscitada nas razões do recurso especial, caracterizando-se, pois, clara inovação recursal que não pode ser conhecida neste momento processual. 2. Este Tribunal Superior consagrou o entendimento de que na sindicância instaurada com caráter meramente investigatório (inquisitorial) ou preparatório de um processo administrativo disciplinar (PAD), é dizer, aquela que visa a apurar a ocorrência de infrações administrativas sem estar dirigida, desde logo, à aplicação de sanção ao servidor público, é dispensável a observância das garantias do contraditório e da ampla defesa, sendo prescindível a presença obrigatória do investigado. 3. Outrossim, "havendo a instauração do devido processo administrativo disciplinar, resta superado o exame de eventuais irregularidades ocorridas durante a sindicância". (MS 9.668/DF, relatora a Ministra LAURITA VAZ, DJe 01/02/2010.) 4. Nos termos do enunciado da Súmula Vinculante nº 5 do STF, "A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição". 5. Agravo regimental a que se nega provimento.” (STJ, AGRESP 200702042332, Quinta Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJE 21/09/2012).
Em sentido semelhante, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:
“A Administração Pública não age à margem da lei quando recebe e investiga delação anônima a respeito de possíveis faltas cometidas por servidor público. A investigação preliminar para averiguar a materialidade dos fatos e sua veracidade, desde que não exponha a imagem do denunciado e não sirva de motivo para perseguições, deve ser feita e é inerente ao poder-dever de autotutela da Administração Pública, admitindo-se o anonimato do denunciante com certa cautela e razoabilidade, pois a sua vedação, de forma absoluta, serviria de escudo para condutas deletérias contra o erário. Esse é entendimento assente nesta Corte Superior, que admite a denúncia anônima para apuração de fatos ilícitos contra a Administração Pública, com a devida prudência e razoabilidade da autoridade administrativa (…)”. (STF, RMS 30963/DF, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, j. 06/06/2012, DJe 18/06/2012)
Ressalte-se que o levantamento de informações realizado pela Administração nestas condições sequer tem o condão de atribuir formalmente qualquer conduta aos servidores, razão pela qual a eles não pode ser imputada qualquer sanção ou prejuízo. Verificados indícios de configuração de irregularidade funcional, resta à Administração dar início à necessária sindicância ou processo administrativo disciplinar, nos termos previstos na Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
É somente nestes termos, repise-se, que se admite a existência do referido procedimento de investigação preliminar como etapa distinta das sindicâncias e processos administrativos disciplinares e, consequentemente, sem a aplicação dos princípios inerentes aos procedimentos disciplinares punitivos.
Corroborando esta ilação, tem-se que são comuns investigações preliminares que sequer chegam ao conhecimento dos servidores, seguidas de seu arquivamento ou instauração de procedimento apuratório pela autoridade competente, sem que disto decorra qualquer ofensa aos preceitos que regem os processos administrativos, ou mesmo aos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa.
Firmada a prescindibilidade do contraditório e da ampla defesa nos procedimentos destinados exclusivamente ao levantamento inicial de informações, cumpre analisar o caráter sigiloso desta investigação preliminar, distinta dos procedimentos previstos na Lei nº 8.112, de 1990, mormente em face das disposições da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regulamentou o acesso à informação previsto no art. 5º, XXXIII; no art. 37, § 3º, II; e no art. 216, § 2º, da Constituição Federal.
Neste ponto, tem-se que eventual conhecimento da existência de procedimento de investigação preliminar não garante ao requerente, por si só, o acesso aos autos e às informações coletadas pela Administração, ainda que mediante a formulação de requerimento nos termos da Lei de Acesso à Informação, uma vez que se afigura possível a restrição de acesso a informações ou documentos nos casos em que tal sigilo se mostre necessário à elucidação dos fatos ou nos casos em que decorra de exigência do interesse público, desde que respaldados por norma legal.
Nessa esteira, não obstante tenha a Lei nº 12.527, de 2011, positivado a publicidade como preceito geral, sendo o sigilo tratado como exceção, conta aquele diploma legal com previsão específica acerca das atividades de investigação relacionadas à prevenção ou repressão de infrações, com vistas a resguardar sua efetividade:
“Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:
(...)
VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.”
Questão distinta, todavia, é a efetiva caracterização desta situação de potencial comprometimento das atividades no caso concreto, o que, se por um lado torna inequívoca certa margem de discricionariedade por parte da Administração, por outro exige estrita observância dos parâmetros objetivamente inseridos nas normas legais, bem como do necessário dever de motivação, seja em relação à classificação, seja em relação ao pedido de acesso à informação.
Deve a autoridade administrativa, deste modo, avaliar com a devida prudência e razoabilidade a natureza dos fatos objeto da investigação preliminar, bem como possíveis prejuízos à investigação advindos da divulgação de informações constantes do processo, com vistas a compatibilizar o sigilo eventualmente necessário ao procedimento preliminar de investigação com as disposições da Lei nº 12.527, de 2011, relativas ao acesso à informação.
Referências
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 17ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2005.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003.
MORAES, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 12ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
SOARES NETO, João Eudes Leite. A lei de acesso à informação e o tratamento conferido às informações pessoais de servidores públicos. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 01 jul. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.48862&seo=1>. Acesso em: 20 nov. 2014.
[1] O próprio Decreto nº 5.480, de 30 de junho 2005, que dispõe sobre o Sistema de Correição do Poder Executivo Federal, expressamente prevê, no § 2º do art. 1º, que “a atividade de correição utilizará como instrumentos a investigação preliminar, a inspeção, a sindicância, o processo administrativo geral e o processo administrativo disciplinar”.
Procurador Federal. Pós-graduado na área de licitaçoes e contratos administrativos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, João Eudes Leite Soares. O acesso aos autos da investigação preliminar pelo servidor público à luz da Lei de Acesso à Informação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42702/o-acesso-aos-autos-da-investigacao-preliminar-pelo-servidor-publico-a-luz-da-lei-de-acesso-a-informacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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