RESUMO: A emenda constitucional n. 45/2004 trouxe alteração importante quanto à regra de incorporação dos tratados internacionais sobre direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro. Restou expresso no texto constitucional a possibilidade destas espécies de tratados possuírem hierarquia constitucional, acaso respeitado o quorum de aprovação pelo congresso nacional equivalente ao das emendas constitucionais. Diversos questionamentos surgiram com a aprovação da emenda. Busca-se, dessa forma, esclarecer, a hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos que foram aprovados pelo Congresso Nacional antes da existência do parágrafo 3º do art. 5º, dos tratados sobre direitos humanos ratificados após a modificação constitucional, mas não aprovados com o quorum de três quintos dos parlamentares, e outras situações jurídicas polêmicas surgidas com o acréscimo do p 3º ao art. 5º da Carta Maior.
Palavras-chaves: Direitos Humanos. Direitos fundamentais. Emenda constitucional nº 45/2004. Tratados Internacionais. Hierarquia das normas.
SUMÁRIO: 1- Introdução; 2 - Direitos humanos e direitos fundamentais; 3 - A hierarquia dos tratados sobre direitos humanos ratificados anteriormente à emenda constitucional n. 45; 3.1. Implicações do acréscimo do parágrafo 3º sobre os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados anteriormente à sua vigência; 4 – A hierarquia dos tratados sobre direitos humanos ratificados posteriormente à vigência da emenda constitucional n. 45; 5 – Referências Bibliográficas.
1 – INTRODUÇÃO
A emenda constitucional n. 45/2004 acrescentou o parágrafo 3º ao art. 5º da Constituição da República, prevendo a possibilidade dos tratados internacionais que versarem sobre direitos humanos poderem ser incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro com status de emenda constitucional. Dessa forma, restou expresso no texto constitucional a possibilidade destas espécies de tratados possuírem hierarquia constitucional, acaso respeitado o quorum de aprovação pelo congresso nacional equivalente ao das emendas constitucionais. A aprovação dessa emenda suscitou muita polêmica no universo jurídico. Principalmente porque respeitada doutrina já apontava no sentido da hierarquia constitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos mesmo antes da aprovação da referida emenda constitucional.
De fato, certas perguntas foram levantadas pelos estudiosos do tema com relação ao novel parágrafo 3º do art. 5º da Carta Maior. Qual seria a hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos que foram aprovados pelo Congresso Nacional antes da existência do parágrafo 3º do art. 5º? Qual seria a hierarquia dos tratados sobre direitos humanos aprovados após a modificação constitucional, mas não aprovado com o quorum de três quintos dos parlamentares? A hierarquia constitucional atribuída aos tratados internacionais sobre direitos humanos seria acobertada também pelo manto da cláusula pétrea? Se afirmativa a resposta, em que situações?
Enfim, inúmeros são os questionamentos a serem enfrentados sobre o tema, o que demonstra sua importância e seu alto grau de complexidade. Os propósitos do presente trabalho, no entanto, não permitem o esgotamento do tema, mas sim uma análise geral que permita ao leitor delimitar a problemática, bem como as principais correntes existentes sobre a matéria.
2 – DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS
O parágrafo acrescentado pela emenda constitucional n. 45/2004 veio dar disciplinamento diferenciado para os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, senão vejamos:
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Dessa forma, resta necessário tratar aqui da definição de direitos humanos. Não se pretende esgotar o tema, ou abordar todas as definições do termo, mas traçar um conceito mais ou menos pacífico dentro das doutrinas brasileira e mundial.
Para melhor se delimitar o conceito de direitos humanos é necessário distingui-lo do conceito de direitos fundamentais. Ambos são direitos inerentes ao homem e possuem forte carga axiológica. No seu conteúdo muito se aproximam, na medida em que buscam resguardar valores caros à humanidade em determinada época e lugar. O cerne de sua distinção reside na sua forma de positivação. De fato, os direitos humanos são aqueles positivados em documentos internacionais com forte caráter universal, enquanto os direitos fundamentais seriam aqueles positivados em uma determinada ordem constitucional.
Um mesmo direito pode ser tanto considerado um direito fundamental em uma dada ordem constitucional, quanto um direito humano positivado em documento internacional. Como exemplo pode ser citado o direito à liberdade positivado na Constituição da República de 1988 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948, além de diversos outros documentos internacionais (v.g. pacto Internacional dos direitos civis e políticos de 1966). É nesse sentido a lição de Ingo Wolfgang Sarlet, que diferenciou com maestria os dois conceitos:
Em que pese sejam ambos os termos ("direitos humanos" e "direitos fundamentais") comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo "direitos fundamentais" se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão "direitos humanos" guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).[1]
Dessa forma, a forma de positivação é que diferencia os direitos humanos dos direitos fundamentais, uma vez que em seu cunho axiológico ambos se aproximam. Isso porque visam proteger uma gama de bens jurídicos variados em seu conteúdo, mas todos derivados, mais ou menos diretamente, do princípio da dignidade da pessoa humana. Traduzindo-se esse princípio num filtro axiológico conceitual daquilo que se pode entender por direito fundamental ou direito humano.
3 – A HIERARQUIA DOS TRATADOS SOBRE DIREITOS HUMANOS RATIFICADOS ANTERIORMENTE À EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45
Diversos são os autores que defendiam, mesmo anteriormente à edição da Emenda Constitucional n. 45/2004, a hierarquia constitucional dos tratados sobre direitos humanos. Isso por força do quanto disposto no parágrafo segundo do art. 5º da Constituição da República:
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
De fato, tal dispositivo prevê uma verdadeira cláusula de abertura, possibilitando a existência, no ordenamento constitucional brasileiro, de verdadeiros direitos fundamentais fora do catálogo do Título II da Constituição federal. Explica-se: esse dispositivo permitiria que fizessem parte do rol constitucional de direitos fundamentais do Título II não apenas os direitos expressamente ali descritos, mas também aqueles – para o que importa a esse estudo – decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil faça parte.
Dessa forma, para essa corrente (entre eles: Ingo Wolfgang Sarlet, Flávia Piovesan e Augusto Cançado Trindade), seria despicienda a previsão acrescentada pela Emenda Constitucional n. 45/2004 e prevista no parágrafo 3º do art. 5ª da Constituição Federal, uma vez que o parágrafo 2º do mesmo artigo seria suficiente para garantir hierarquia constitucional a qualquer tratado sobre direitos humanos, independentemente do quorum de aprovação. Nesse sentido é a lição de Flávia Piovesan:
Em favor da hierarquia constitucional dos direitos enunciados em tratados internacionais, outro argumento se acrescenta: a natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais. O reconhecimento se faz explícito na Carta de 1988, ao invocar a previsão do art. 5º, § 2º. Vale dizer, se não se tratasse de matéria constitucional, ficaria sem sentido tal previsão. A Constituição assume expressamente o conteúdo constitucional dos direitos constantes dos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. Ainda que esses direitos não sejam enunciados sob a forma de normas constitucionais, mas sob a forma de tratados internacionais, a Carta lhes confere o valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo de direitos fundamentais previsto pelo Texto Constitucional.[2]
Com efeito, são materialmente constitucionais os direitos fundamentais e os direitos humanos na medida em que suas cargas axiológicas estão em consonância com os valores da Carta Magna – em especial o princípio da dignidade da pessoa humana – e por expressa previsão da cláusula da abertura do parágrafo 2º do art. 5º, a autorizar a formação do chamado bloco de constitucionalidade.
3.1. Implicações do acréscimo do parágrafo 3º sobre os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados anteriormente à sua vigência
Uma questão debatida pela doutrina é justamente qual seria a implicação do novel parágrafo 3º do art. 5º da Constituição da República sobre os tratados sobre direitos humanos já ratificados pelo Estado brasileiro. Evidentemente que não se submeteram ao quorum de três quintos para aprovação pelo congresso nacional exigido com a modificação, uma vez que essa previsão sequer existia. No entanto, segundo autorizada doutrina, devem possuir status constitucional independentemente de seu quorum de aprovação. Ou seja, devem ser considerados formalmente e materialmente constitucionais, integrando o texto constitucional.
Se os tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à Emenda n. 45/2004, por força dos §§ 2º e 3º do art. 5º da Constituição, são normas material e formalmente constitucionais, com relação aos novos tratados de direitos humanos a serem ratificados, por força do § 2º do mesmo art. 5º, independentemente de seu quorum de aprovação, serão normas materialmente constitucionais. Contudo, para converterem-se em normas também formalmente constitucionais deverão percorrer o procedimento demandado pelo § 3º.[3]
Portanto, com a edição da emenda constitucional n. 45/2004, houve a recepção dos tratados internacionais sobre direitos humanos com o status de norma constitucional, independentemente do quorum de sua aprovação, constituindo-se tais regras em normas materialmente e formalmente constitucionais.
4 – A HIERARQUIA DOS TRATADOS SOBRE DIREITOS HUMANOS RATIFICADOS POSTERIORMENTE À VIGÊNCIA DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45
Com a edição da Emenda Constitucional n. 45/2004 duas possibilidades foram criadas. É possível a aprovação do tratado internacional com o quorum normal ou com o quorum qualificado de três quintos – equivalente às emendas constitucionais.
Quanto ao tratado aprovado pelo quorum qualificado não há maiores digressões a serem realizadas, uma vez que o texto constitucional é expresso em equipará-lo às emendas. Dúvida poderia persistir apenas a respeito de seu status de cláusula pétrea. Em que pese nos filiarmos à corrente da petrificação dos direitos humanos constantes dos tratados – essa discussão extrapola os limites do presente trabalho.
A problemática maior surge quanto aos tratados sobre direitos humanos aprovados por quorum simples. Uma interpretação estritamente literal do parágrafo 3º do art. 5º poderia levar à conclusão que tais tratados possuiriam hierarquia de lei ordinária. No entanto, não parece ser essa a solução mais adequada. Conforme já discorrido acima, o parágrafo 2º do art. 5º da Constituição contém uma cláusula de abertura a autorizar a formação do bloco de constitucionalidade, tornando materialmente constitucionais todos os tratados sobre direitos humanos ratificados. Dessa forma, todos os tratados sobre direitos humanos ratificados serão materialmente constitucionais, independentemente do quorum de aprovação. Essa é a posição de autorizada doutrina já mencionada. Salienta-se, no entanto, que essa não é a posição atual do Supremo tribunal Federal que assegura status constitucional apenas aos tratados sobre direitos humanos aprovados pelo quorum qualificado do p. 3º, atribuindo força supralegal àqueles aprovados pro quorum simples.
5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto (ed.). A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro. San José da Costa Rica/Brasília: Instituto Interamericano de Direitos Humanos, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, Comissão da União Europeia, 1996.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Livraria Almedina, 1993.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1979.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1990. v. 1 e 2.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1991. v. 2.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. Ed, São Paulo: Saraiva, 2013. Pg. 137.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 10ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2009, p. 27.
[1] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 10ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2009, p. 27.
[2] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. Ed, São Paulo: Saraiva, 2013. Pg. 115.
[3] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. Ed, São Paulo: Saraiva, 2013. Pg. 137.
Procurador da Fazenda Nacional. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto AVM. Ex-Auditor Interno do Poder Executivo do Estado de Santa Catarina. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PIMENTA, Andre Afeche. A hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos - uma breve análise do impacto da edição da emenda constitucional n. 45/2004 sobre o tema Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42721/a-hierarquia-dos-tratados-internacionais-sobre-direitos-humanos-uma-breve-analise-do-impacto-da-edicao-da-emenda-constitucional-n-45-2004-sobre-o-tema. Acesso em: 23 dez 2024.
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