RESUMO: O intuito do presente artigo é o de fazer uma reflexão crítica acerca do artigo 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Artigo 4º. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Crítica.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O Direito, como tudo que é constructo social, modifica-se com o tempo. Precisamente com a Modernidade, ou seja, com o Direito moderno, que se caracteriza pela positividade, cogência, estruturação individualizada (HABERMAS, 2003, p. 153) e, sobretudo, por sua textualidade (CARVALHO NETTO, 1999, p. 474), isso se torna mais visível. De fato, sendo dado a conhecer mediante textos, o Direito requer, para sua melhor implementação, um conhecimento adequado e preciso “[d]os supostos da atividade de interpretação de todos os operadores jurídicos, do legislador ao destinatário da norma”, pois, “as posturas e supostos assumidos pelos distintos atores em sua ação, a gramática dessas práticas sociais, é atribuidora de sentido, de significação” (CARVALHO NETTO, 1999, p. 474).
A importância dessas posturas espraia-se por todo o ordenamento jurídico, ganhando especial destaque quando se colocam em perspectiva normas de sobredireito, ou seja, normas que versam sobre outras normas, mormente aquelas que procuram direcionar a interpretação dos aplicadores ou a solucionar problemas ou falhas do ordenamento jurídico. Nesses casos, há um nítido entrelaçamento entre o direito positivo, a norma cogentemente imposta e aquelas posturas (pres)supostas dos intérpretes e aplicadores.
É o que acontece com o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro - LICC[1] - denominação esta, aliás, não mais vigente, haja vista que a Lei nº 12.376, de 30 de dezembro de 2010, alterou a ementa do Decreto-Lei nº 4.657, de 1942, de forma que nela se passou a ler não mais “Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro”, mas sim, “Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro”. O artigo 4º em questão preconiza que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Aqui, há nítida positivação, em forma de método de integração do sistema jurídico, da postura a ser adotada pelo aplicador do direito. Ele deve seguir aqueles critérios, na ordem em que estabelecidos, para viabilizar a solução para a demanda judicial.
A questão que se coloca é: a postura ou método por ele preconizado seria ainda adequado hodiernamente, à luz dos problemas jurídicos cada vez mais complexos que se apresentam no Estado Democrático de Direito? É justamente esta problemática que o presente artigo pretende abordar.
2. ANÁLISE CRÍTICA DO ARTIGO 4º DA LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO
Conforme destacado, o art. 4º sob análise prescreve que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Pela precisão com que resume a dinâmica da metodologia a ser seguida pelo juiz ao constatar uma lacuna, transcreve-se a lição de Diniz (2011a, p. 99):
Como se vê, no preenchimento de lacunas jurídicas, deve ser respeitada a ordem de preferência, indicada no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. De sorte que o magistrado em caso de lacuna deverá, em primeiro lugar, constatar, na própria legislação, se há uma semelhança entre fatos diferentes, fazendo o juízo de valor de que esta semelhança se sobrepõe às diferenças. Somente se não encontra tais casos análogos é que deverá recorrer às normas consuetudinárias; inexistindo estas lançará mão dos princípios gerais de direito, e, se porventura estes últimos inexistirem ou se se apresentarem controversos, recorrerá à equidade, sempre considerando as pautas axiológicas contidas no sistema jurídico. A equidade exerce função integrativa, uma vez esgotados os mecanismos do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, na decisão: a) dos casos especiais, que o próprio legislador deixa, propositadamente, omissos, isto é, no preenchimento das lacunas voluntárias, ou seja, daqueles casos em que a própria norma remete ao magistrado a utilização da equidade, e b) dos casos que, de modo involuntário, escapam à previsão do elaborador da norma; por mais que este queira abranger os casos, ficam sempre omissas certas circunstâncias, surgindo, então, lacunas involuntárias, que devem ser preenchidas pela analogia, pelo costume e pelos princípios gerais de direito, sendo que na insuficiência desses instrumentos se deverá recorrer à equidade.
A equidade dá ao juiz poder discricionário, mas não arbitrariedade.
Assim, primeiro se recorre à analogia. Não encontrada resposta com base nesse recurso, procura-se a solução nos costumes. Sendo esses insuficientes, a resposta deve ser buscada nos princípios gerais de direito. Finalmente, se esses não existirem, nada informarem para a solução do caso ou se afigurarem controversos, dever-se-á recorrer à equidade, quando então o juiz terá discricionariedade para decidir.
Trata-se, como se vê, de um dispositivo de inspiração nitidamente positivista, pois parte da ideia de que o ordenamento jurídico é um sistema de regras (quando a lei for omissa...), mas que, embora partindo do dogma da completude, admite que lacunas podem ocorrer.[2] A base positivista deixa-se transparecer, ademais, pela discricionariedade atribuída ao juiz para desenvolver a resposta a ser dada ao hard case apresentado, uma vez esgotadas as válvulas de segurança do sistema (analogia, costumes e princípios gerais de direito).
Essa configuração do sistema enquanto conjunto de regras, contudo, já não tem mais razão de ser, eis que superada pelo paradigma do Estado Democrático de Direito. Hoje não mais se discute o caráter normativo e central dos princípios, bem como o fato de que, precisamente por isso os ordenamentos jurídicos já não devem ser compreendidos como meros sistemas de regras, mas como verdadeiros sistemas de princípios e regras (DWORKIN, 2007), onde as regras, mesmo com modo de ser diferenciado, sempre pressupõem princípios, posto que deles são densificações (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, p. 65).
Bonavides (2006, capítulo 8) resgata a história dos princípios, deixando clara sua trajetória desde sua configuração como princípios gerais de direito até sua conversão em princípios constitucionais.
Sob a batuta do positivismo, os princípios gerais de direito configuravam meras fontes normativas subsidiárias, verdadeiras válvulas de segurança, retiradas do interior do próprio sistema codificado (tido por coerente) a partir de sucessivas generalizações das regras existentes (BONAVIDES, 2006, p. 262-263). Hoje, entretanto, na esteira do pós-positivismo vigorante no Estado Democrático de Direito, os princípios, dotados de normatividade plena, saltaram dos códigos para as constituições, convertendo-se em fundamento de toda a ordem jurídica, ou seja, nas normas supremas do ordenamento, “servindo de pautas ou critérios por excelência para a avaliação de todos os conteúdos normativos [...]” (BONAVIDES, 2006, p. 289-290).
A centralidade reconhecida hodiernamente aos princípios coloca-os em condição diferenciada, não se admitindo mais que se lhes reserve, como faz o artigo 4º, um lugar na aplicação no Direito hierarquicamente abaixo de procedimentos analógicos ou de costumes. Não raramente, aliás, os direitos fundamentais - que configuram o crivo básico de validade dos comportamentos, inclusive das tradições e dos costumes - encontram-se veiculados, nas constituições, em normas principiológicas.
Doutra parte, a ausência de princípios ou o conflito entre eles não deve ser vista como porta para a discricionariedade do juiz. A solução deverá advir da reconstrução dos fatos, das práticas sociais da comunidade, buscando torná-las construtivamente melhor e sempre atentando para a igual consideração e respeito que cada pessoa merece, já que todos são dotados de liberdade e igualdade. Ademais, o fato de princípios diferentes apontarem soluções distintas não deve ser encarado como um problema a ser solucionado pela discricionariedade, mas como parte da própria solução, à luz da integridade do Direito. Afinal, a aplicação de um princípio não deve ocorrer de maneira isolada, mas tendo-se sempre em mente os correlatos princípios que apontam em direção contrária para que possa ser devidamente compreendido.
O simples recurso à analogia, de sua sorte, não garante, de per se, como preconiza o artigo 4º, um modo de fazer o Direito em consonância com o Estado Democrático de Direito, pois, encarado o Direito em sua integridade, como um todo coerente em termos de correção e justiça, não é o simples recurso a outras leis ou mesmo a casos semelhantes anteriormente decididos que irá garantir a resposta adequada, pois, no resgate da história institucional de uma comunidade, a coerência que se busca não se efetiva com a mera repetição de soluções já adotadas, já que sua recepção fica a depender do crivo universal dos direitos fundamentais.
De forma idêntica ocorre com os costumes. A reflexividade quanto aos costumes e às tradições, num sistema principiológico, impõe que o crivo de validade ou permanência de determinadas práticas sociais deve encontrar-se precisamente nos direitos fundamentais, que funcionam como trunfos contra abusos perpetrados não só em nome de políticas, mas também de tradições. É por isso que Dworkin propõe uma interpretação do Direito que atribua um propósito à determinada prática social, objetivando torná-la a melhor possível dentro de seu contexto (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, p. 78).
3. CONCLUSÃO
Desta breve – e evidentemente não-exaustiva - exposição crítica do artigo 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (antiga LICC), pode-se concluir que o dispositivo em questão apresenta-se como um resquício do positivismo, estando a merecer reflexões mais aprofundadas quanto à sua dinâmica e mesmo quanto à necessidade de sua atualização/modificação, à luz do atual desenvolvimento do pensamento jurídico quanto aos princípios e quanto à atividade de aplicação do Direito por parte dos julgadores.
REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 3, p. 473-486, 1999.
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 1. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2011a.
DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In: ________. Era das transições. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 151-173.
[1] Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.
[2] Não se pretende aqui retomar a discussão acerca da real existência ou não de lacunas nos sistemas jurídicos, pois, considerando o teor do art. 4º, nosso ponto de partida afigura-se já delimitado. Doutra parte, conforme salienta Diniz (2011b, p. 118), o fenômeno da lacuna encontra-se correlacionado à própria maneira de se conceber um sistema. Para um aprofundamento da discussão, conferir os comentários iniciais de Diniz ao referido artigo 4º (2011b, p. 116-132).
PROCURADOR FEDERAL. GRADUADO EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Igor Chagas de. Análise crítica do artigo 4º da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42745/analise-critica-do-artigo-4o-da-lei-de-introducao-as-normas-do-direito-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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