RESUMO: O presente artigo procura apontar alguns problemas e diretrizes quanto ao alcance interpretativo do caput do artigo 11 do Decreto-Lei nº 25, de 1937, que cuida dos efeitos do tombamento no tocante à (in)alienabilidade de bens públicos.
PALAVRAS-CHAVE: Art. 11 do Decreto-Lei nº 25, de 1937. Alcance interpretativo.
1. INTRODUÇÃO
A legislação relativa ao tombamento é antiga, datando de novembro de 1937, ou seja, início do período do Estado Novo getulista. Tendo berço num outro tempo normativo, sua interpretação suscita algumas dificuldades.
Como mote para jogar luzes sobre algumas dessas dificuldades, a ideia do presente artigo é perscrutar o alcance interpretativo do caput do artigo 11 do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que trata dos efeitos do tombamento sobre bens públicos (dominicais), no tocante à sua (in)alienabilidade. Preconiza o dispositivo em questão, in verbis, o seguinte:
Art. 11. As coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades.
(...)
2. NOTAS SOBRE O CAPUT DO ARTIGO 11 DO DECRETO-LEI Nº 25, DE 1937
Dispõe o parágrafo 1º do artigo 216 da Constituição Federal de 1988 – CF/88 que “[o] Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. Para o efetivo exercício deste mister de proteção do patrimônio cultural brasileiro – nacional, portanto – pelo Poder Público, a CF/88 atribuiu competência comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” (art. 23, inciso III)[1] e para “impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural” (art. 23, inciso IV).
Já em seu artigo 24, a CF/88 atribuiu competência à União, aos Estados e ao Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre “proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico” (inciso VII) e sobre “responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico” (inciso VIII), sendo certo que, no âmbito da legislação concorrente “a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais” (parágrafo 1º), cabendo aos Estados a competência suplementar, que pode ser complementar (que pressupõe a existência da prévia lei geral nacional a ser, então, especificada – art. 24, parágrafo 2º) ou supletiva (quando, inexistente a lei geral, os Estados podem legislar plenamente, para atender a suas peculiaridades, até que a legislação nacional geral sobrevenha e, assim, suspenda a eficácia da lei estadual editada, no que lhe for contrário – art. 24, parágrafos 3º e 4º). Aos Municípios, de sua sorte, compete “legislar sobre assuntos de interesse local” (art. 30, inciso I), “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber” (art. 30, inciso II) e “promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual” (art. 30, inciso IX).
Tendo sido recepcionado pela CF/88, surge para o Decreto-Lei nº 25, de 1937, a dúvida sobre se ele seria norma federal – no que geraria um vácuo em termos de normas gerais que abriria aos Estados a competência para legislar plena e supletivamente (com efeitos até que sobreviesse a norma geral nacional editada pela União) – ou se ele seria norma nacional, veiculando dispositivos gerais vinculantes a Estados, Distrito Federal e Municípios.
Não obstante a existência de determinados dispositivos de feição federal, extrai-se da análise do Decreto-Lei nº 25, de 1937, indicativos fortes de que ele seria norma de caráter nacional, veiculador de normas gerais aplicáveis em todos os níveis da Federação.
Tal compreensão é reforçada pelos próprios termos do Decreto-Lei em questão. Com efeito, sua ementa dispõe que ele “[o]rganiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional”. Em seu artigo 1º, ele menciona o caráter “nacional” do patrimônio histórico e artístico, que abrange bens móveis e imóveis existentes no “país” e cuja conservação seja de interesse “público”. Deixa claro, sem maiores restrições, que seus dispositivos aplicam-se “às coisas pertencentes às pessoas naturais, bem como às pessoas jurídicas de direito privado e de direito público interno” (art. 2º). O artigo 23, de sua sorte, é patente a respeito do caráter geral (e nacional) da norma. Confira-se:
Art. 23. O Poder Executivo providenciará a realização de acordos entre a União e os Estados, para melhor coordenação e desenvolvimento das atividades relativas à proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e para a uniformização da legislação estadual complementar sobre o mesmo assunto.
O raciocínio acima desenvolvido indica um caminho interpretativo do caput do artigo 11 sob análise, no sentido de sua compreensão como dispositivo de caráter geral e nacional, vinculando tanto a União, quanto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. A dicção de seu caput, aliás, parece mesmo reforçar tal entendimento, já que refere-se às coisas tombadas pertencentes à União, Estados ou Municípios. A defesa de um posicionamento contrário, aliás, terminaria por levar a uma incongruência interpretativa, já que, como visto pelo artigo 23, há uma diretriz clara na busca pela uniformização da legislação estadual complementar sobre o assunto – uniformização esta que deve se dar, decerto, a partir do paradigma geral exposto no Decreto-Lei nº 25, de 1937. Afinal, não haveria uniformização e coordenação na proteção ao patrimônio cultural brasileiro se aos demais entes da Federação fosse permitido legislar de maneira diversa com relação à temática da alienação de bens públicos dominicais tombados. Certo é que, não obstante tal raciocínio, a própria compreensão do artigo 11 apresenta-se problemática, havendo posicionamento diverso, no sentido de que a inalienabilidade de tais bens seria um efeito decorrente apenas de tombamentos federais, e que, assim, haveria necessidade de normas estaduais e municipais dispondo sobre a atribuição do mesmo efeito em decorrência de tombamentos estaduais e municipais. Doutro lado, deve-se ter em mente que o Brasil é uma federação e que o fato de um ente político poder tombar bem de outro ente político termina por gerar restrições à gestão do referido bem por parte do ente que lhe tem a propriedade.
Outro ponto passível de questionamento diz respeito à abrangência das autarquias e fundações públicas federais pelo destacado art. 11 – o qual, em seu texto, refere-se “apenas” à União, aos Estados e aos Municípios. A literalidade do dispositivo não autoriza sua leitura fechada, como se fora de seu âmbito de incidência estivessem as autarquias e as fundações públicas. Nesse sentido, destaque-se que o próprio artigo 2º do Decreto-Lei nº 25, de 1937, já acima referido, é expresso em afirmar que “[a] presente lei se aplica às coisas pertencentes às pessoas naturais, bem como às pessoas jurídicas de direito privado e de direito público interno”, sendo certo que, de acordo com o artigo 41 do Código Civil de 2002, são pessoas de direito público interno não só a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios e os Municípios (incisos I, II, III), mas também as autarquias, inclusive as associações públicas, e as demais entidades de caráter público criadas por lei (incisos IV e V)[2]. Historicamente, até faz sentido que a legislação tenha feito referência apenas à União, Estados e Municípios, dada a diferença entre o contexto normativo da época da edição do Decreto-Lei nº 25, de 1937, e a atual configuração normativa[3]. Atualmente, contudo, e considerando que as autarquias e fundações públicas são pessoas de direito público interno e que seus bens são públicos e sujeitos ao tombamento, não faz sentido permitir que seus bens sejam tombados, mas não se sujeitem aos efeitos específicos decorrentes do tombamento de bens públicos.
3. CONCLUSÃO
Assim, pela leitura interpretativa acima encadeada, pode-se concluir no sentido de se compreender o caput do artigo 11 do Decreto-Lei nº 25, de 1937, como sendo norma de caráter nacional, que vincula a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e que alcança não somente as referidas pessoas políticas, mas também as demais pessoas jurídicas de direito público interno – caso das autarquias e fundações públicas.
Trata-se de uma leitura possível, mas que de toda forma não deixa de suscitar certas perplexidades, mormente quando se pensa em termos de federação ou de autonomia dos entes políticos. Afinal, uma tal norma, restritiva da alienação de bens públicos dominicais, termina por gerar potencialmente dificuldades na gestão dos bens públicos pelas próprias pessoas jurídicas de direito público interno.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 15 dez. 2014.
BRASIL. Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del0025.htm>. Acesso em: 15 dez. 2014.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
[1] A partir desse quadro normativo constitucional, o Superior Tribunal de Justiça - STJ já decidiu que o Município pode tombar bem de propriedade do Estado. Confira-se a ementa do julgado: “ADMINISTRATIVO – TOMBAMENTO – COMPETÊNCIA MUNICIPAL. 1. A Constituição Federal de 88 outorga a todas as pessoas jurídicas de Direito Público a competência para o tombamento de bens de valor histórico e artístico nacional. 2. Tombar significa preservar, acautelar, preservar, sem que importe o ato em transferência da propriedade, como ocorre na desapropriação. 3. O Município, por competência constitucional comum – art. 23, III –, deve proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos. 4. Como o tombamento não implica em transferência da propriedade, inexiste a limitação constante no art. 1º, § 2º, do DL 3.365/1941, que proíbe o Município de desapropriar bem do Estado. 5. Recurso improvido. (RMS 18952/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/04/2005, DJ 30/05/2005, p. 266)”. Itálico nosso.
[2] Destaque-se que, entendimento contrário, no sentido de se prestigiar apenas a literalidade do art. 11 do Decreto-Lei nº 25, de 1937, levaria à desarrazoada conclusão de que não só as autarquias estariam fora de seu âmbito de incidência, mas o próprio Distrito Federal, já que também não mencionado expressamente...
[3] Carvalho Filho (In: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011), faz o seguinte resumo histórico-jurídico: “Ao caracterizar a autarquia, consignou o referido Decreto-lei nº 200/67 ser ela: ‘o serviço autônomo criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da administração pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada’. Veja-se que o legislador não qualificou o tipo de personalidade jurídica que deveria ser atribuído à categoria, e nesse ponto se encontra uma das falhas da conceituação legal. Limitou-se apenas a dizer que o serviço teria personalidade jurídica, o que não seria, de fato, nenhuma novidade. Mais preciso foi o Decreto-lei nº 6.016, de 22/11/1943, que, dispondo sobre a imunidade dos bens, rendas e serviços das autarquias, deixou expressa a menção de que tais entidades eram pessoas de direito público. Entretanto, nenhuma dúvida há, em tempos atuais, a despeito da omissão do Decr.-lei nº 200/67, de que as autarquias são realmente pessoas jurídicas de direito público. A qualificação, aliás, foi confirmada pelo novo Código Civil que, relacionando as pessoas jurídicas de direito público, inseriu expressamente as autarquias (art. 41, IV). Apesar de dotadas de função exclusivamente administrativa (o que as coloca em plano diverso das pessoas de direito público integrantes da federação brasileira, estas possuidoras de capacidade política), sua personalidade jurídica de direito público lhes atribui todas as pertinentes prerrogativas contidas no ordenamento jurídico vigente” (p. 429; grifos do original). Mais à frente, destaca ainda: “A questão do patrimônio diz respeito à caracterização dos bens em públicos e privados. A classificação se encontrava no art. 65 do antigo Código Civil, que dispunha: ‘São públicos os bens do domínio nacional pertencentes à União, aos Estados ou aos Municípios. Todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem’. O legislador, ao criar a norma, teve o evidente intuito de classificar como públicos apenas os bens pertencentes às pessoas integrantes da federação, qualificando os demais como privados. Ocorre que a norma datava de 1916, e a partir de então o sistema jurídico-administrativo sofreu profundas mudanças. Uma delas foi a criação desse tipo especial de pessoas jurídicas – as autarquias, que, embora sem integrar a organização política do Estado, estão a ele vinculadas, ostentando personalidade jurídica de direito público. Adaptando-se a norma do Código Civil a essas alterações, considerou a doutrina, a nosso ver com razão, que o intuito da lei, mais do que proteger os bens das pessoas federativas, foi o de qualificar como bens públicos aqueles integrantes do patrimônio das pessoas administrativas de direito público. Assim, pacificou-se o entendimento de que os bens das autarquias são considerados como bens públicos. O novo Código Civil, no entanto, dirimiu qualquer dúvida que ainda pudesse haver quanto à natureza dos bens de autarquias. Alterando os termos da classificação do Código de 1916, passou a dispor no art. 98: ‘São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem’. Observa-se, assim, que o critério para a qualificação de bem público deixou de ser o fato de pertencer a pessoa da federação para ser aquele que pertence a qualquer pessoa de direito público. Por via de consequência, a natureza dos bens de autarquias é a de bens públicos. Em decorrência dessa qualificação, os bens das autarquias abrigam os mesmos meios de proteção atribuídos aos bens públicos em geral, destacando-se entre eles a impenhorabilidade e a imprescritibilidade, como, aliás, já decidiu a mais alta Corte. Por outro lado, não é livre para o administrador autárquico a sua alienação; como ocorre com os bens públicos em geral, é necessário que o administrador obedeça às regras legais reguladoras dessa especial atividade administrativa, qual seja, a alienabilidade dos bens públicos” (p. 440-441; grifos do original).
PROCURADOR FEDERAL. GRADUADO EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Igor Chagas de. Apontamentos sobre o alcance interpretativo do caput do Artigo 11 do Decreto-Lei nº 25, DE 1937 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42772/apontamentos-sobre-o-alcance-interpretativo-do-caput-do-artigo-11-do-decreto-lei-no-25-de-1937. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.