RESUMO: Este artigo objetiva analisar a possibilidade das agências reguladoras brasileiras editarem atos de natureza normativa para a regulação da atividade econômica. A questão fundamental do poder normativo das agências reguladoras brasileiras é analisada à luz do Direito Constitucional vigente, examinando uma das teorias que busca legitimar o instituto no país, enfrentando-se a problemática de definir até onde podem as agências reguladoras normatizar, sem estarem, com isso, invadindo a esfera legislativa ou ultrapassando os limites de intervenção na liberdade de particulares, delineados pelo princípio da reserva legal.
INTRODUÇÃO
O presente artigo visa realizar um estudo das agências reguladoras, dando enfoque à análise do poder normativo conferido a estes entes e os limites desse poder regulador.
O surgimento das agências reguladoras está diretamente relacionado com as mudanças no cenário político-econômico-social mundial. A história mostra que nem o Estado liberal, com a sua política do laissez-fairez laisse-passer e a defesa de um Estado Mínimo, que não interfere nas relações do mercado, nem o Estado intervencionista, com atuação empresarial e forte interferência nas atividades econômicas, mostraram-se capazes de satisfazer os anseios da sociedade.
É fato que a ampliação das funções do Estado sobrecarrega o aparelho administrativo estatal, que acaba por não conseguir investir suficientemente para se modernizar e, assim, passa a não prestar os serviços públicos com a eficiência e qualidade desejada pela população. Por outro lado, o Estado não pode passar para a iniciativa privada o desempenho de serviços essenciais à sociedade, deixando a regulação dos mesmos a cargo do próprio mercado, pois geraria profundas injustiças sociais, visto que a busca por lucros cada vez maiores pelo particular, poderia vir a relegar a preocupação com os serviços prestados à coletividade.
O Estado brasileiro, nas últimas décadas do século XX, por ter se revelado lento e ineficiente para enfrentar os desafios advindos da globalização econômica, teve que reestruturar suas bases, redefinir seu papel e remodelar seu modelo administrativo. É nesse contexto que surgem as agências reguladoras no Brasil.
O cumprimento das atribuições das agências reguladoras é possível em razão da sua especialização técnica. A complexidade das diversas atividades reguladas pelo Estado exige conhecimentos específicos que o legislados não possuem, razão pela qual deixou às próprias agências, com seus técnicos, a tarefa de organizar seus ordenamentos setoriais. Foram conferidos, portanto, poderes normativos às agências reguladoras para que a regulação fosse eficaz.
Até hoje, não se tem noção exata dos limites deste poder de normatizar conferido às agências reguladoras e até onde podem as mesmas regular, sem estar, com isso, invadindo a esfera legislativa ou ultrapassando os limites de intervenção na liberdade de particulares, delineados pelo princípio da reserva legal.
1. DOS PRIVILÉGIOS DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Para o desenvolvimento eficaz da atividade regulatória do Estado, é imprescindível que as agências reguladoras detenham autonomia e independência. A instituição de um regime especial objetivou que as decisões no âmbito dos diversos setores regulados pelo Estado ocorressem baseadas, predominantemente, em juízos técnicos, e não pautadas por valorações políticas. Para tanto, foram-lhes outorgados privilégios, de forma a garantir o exercício satisfatório de suas atribuições, quais sejam:
a) Autonomia - Baseia-se em quatro pilares:
Independência política dos gestores – o provimento dos cargos de direção das agências reguladoras sofrem limitações. Os dirigentes, indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado Federal, possuem mandato fixo, não podendo ser exonerados ad nutum, nos termos do art. 9º da Lei n.º 9.986/2000, estabelecendo-se uma restrição legal à exoneração arbitrária.
Independência técnica decisional – o caráter técnico deve predominar na escolha dos dirigentes, visto que os atos e normas a serem elaborados pelas agências reguladoras demandam conhecimento especializado.
Independência gerencial financeira e orçamentária – a autonomia financeira é requisito essencial para que a autonomia se efetive na prática. As leis instituidoras das agências reguladoras lhes asseguram autonomia financeira, estabelecendo taxas de fiscalização ou regulação do serviço público objeto de delegação, que consistem em uma das importantes fontes de receita dessas autarquias especiais.
Independência normativa – imprescindível para que a regulação ocorra de forma satisfatória. Não seria possível que as agências reguladoras cumprissem com efetividade as atividades regulatórias, se não lhes tivessem sido conferidos poderes de criar normas técnicas, definindo procedimentos, parâmetros de qualidade de serviços, mecanismos de proteção aos usuários, com o fim de estabelecer regras para serem seguidas pelos entes regulados.
b) Atividade normativa
O poder normativo é inerente à própria definição da função regulatória. Todas as leis que instituíram as agências reguladoras no Brasil lhes conferiram o poder de editar normas aplicáveis aos entes regulados.
Essa atribuição suscita profundas inquietações em face do princípio de legalidade estrita a que está submetida a Administração Pública e em face do princípio da reserva legal a que se sujeitam os particulares. A dificuldade está em conciliar esses importantes princípios que regem a Administração Pública com o amplo poder normativo conferido às agências reguladoras.
c) Atividade fiscalizadora
Objetiva verificar se a prestação de serviços está ocorrendo de forma adequada, eficiente, com qualidade e por um preço razoável, a fim de garantir que a finalidade essencial dos serviços seja atingida em prol da população.
d) Atividade sancionatória
É decorrente da competência de fiscalização, visto que as agências reguladoras podem aplicar sanções em razão de descumprimento de preceitos legais, regulamentares ou contratuais pelos entes regulados.
2. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E DA RESERVA LEGAL
O art. 5º, II, da Constituição Federal preceitua que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Trata-se de uma importante garantia individual, determinante para a segurança jurídica que deve estar presente em toda e qualquer sociedade.
Esse princípio, acima de tudo, visa impedir a atuação arbitrária do Estado, visto que, conforme leciona o Doutrinador Alexandre de Moraes “só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras do processo legislativo constitucional, podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressões da vontade geral.” O texto constitucional não estendeu a todos os atos normativos a possibilidade de impor obrigações aos particulares, exigiu que fosse por meio de lei. Essa exigência decorre da lei representar a vontade geral dos cidadãos, uma vez que o Poder Legislativo, que é quem possui a competência legal de elaborá-la, é composto pelos representantes da nação.
É importante ressaltar a clássica lição consagrada acerca do Princípio da Legalidade, que consiste em que os particulares podem fazer tudo aquilo que a lei não lhes proíbe, enquanto a Administração Pública somente pode agir de acordo com o que a lei expressamente autoriza.
A doutrina vem fazendo uma diferenciação entre o Princípio da Legalidade e o Princípio da Reserva Legal. O primeiro é de abrangência mais ampla e abstrata, enquanto o Princípio da Reserva Legal é concreto, incidindo em campos materiais especificados pela Constituição, no qual se exige tratamento de determinada matéria exclusivamente pelo Legislativo, sem participação normativa do Executivo.
Ocorre que o papel do Executivo vem crescendo, em razão da necessidade de uma maior agilidade e de mais especialização e técnica nas ações estatais. Dessa forma, foi preciso fazer uma releitura do Princípio da Reserva Legal, criando uma distinção entre reserva absoluta e reserva relativa de lei. Fala-se em reserva legal absoluta quando se exige do legislador que esgote o tratamento da matéria, sem deixar espaço remanescente para a atuação discricionária dos agentes públicos que vão aplicá-la. Por outro lado, será relativa quando a Constituição, apesar de exigir lei formal para tratar a matéria, permitir que esta fixe apenas parâmetros de atuação para o órgão administrativo, podendo ser a lei complementada por ato infralegal, desde que respeitados os limites estabelecidos na legislação.
Também se observa uma flexibilização do Princípio da Reserva Legal por parte do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 264289/CE, que admitiu a possibilidade de delegação pelo Legislativo da função normativa para o Executivo, desde que com a fixação de parâmetros.
3. TEORIA DA DELEGIFICAÇÃO OU DESLEGALIZAÇÃO
Diversas teorias foram criadas para explicar o poder normativo das agências reguladoras, sendo que a Teoria da Deslegalização vem ganhando força na doutrina, cada vez com mais adeptos.
Trata-se de uma tendência mais moderna, que consiste, como ensina o Doutrinador Diogo de Figueiredo Moreira Neto na “retirada, pelo legislador, de certas matérias do domínio da lei (domaine de la loi) passando-as ao domínio do regulamento (domaine de l´ordonnance)”.
Fundamenta-se no fato de que em função da complexidade, dinamismo e tecnização da sociedade, o Poder Legislativo tem diferenciado os aspectos políticos, daqueles preponderantemente técnicos. Ciente de suas limitações, permite que a normatização destes últimos seja transferida a outros órgãos ou entidades.
Nesse sentido, Caio Tácito dispõe, conforme cita o doutrinador Alexandre Santos de Aragão em sua obra, que:
“Não é inconstitucional, mesmo nos países contrários à delegação de poderes, a participação do Executivo na criação do direito objetivo. Regulamentar não é somente reproduzir analiticamente a lei, mas ampliá-la e contemplá-la segundo seu espírito e conteúdo, sobretudo nos aspectos que a própria lei expressa ou implicitamente, outorga à esfera regulamentar.”
Os defensores dessa teoria não interpretam o art. 84, IV, in fine, da Constituição Federal de forma literal, afirmando que muitas vezes se faz necessário que a lei confira poder regulamentar a titular de órgão ou entidade da Administração Pública distinta da Chefia do Poder Executivo, por ter estes maiores condições técnicas de normatizar a matéria. Consideram ser o poder regulamentar, em princípio, do Presidente da República, em razão da competência constitucional, porém, nada impede que a lei habilite outras autoridades à prática do poder normativo. De forma que, para estes, o artigo em questão é enumerativo, não excluindo outra fórmula de ação normativa que a discricionariedade do Legislativo considere conveniente.
A lei de deslegalização surge não para regular determinada matéria, mas para degradar formalmente o grau hierárquico da mesma, ou seja, a partir de então aquela matéria que antes era tratada por lei, passará a ser regulada por regulamentos.
Cabe frisar que a teoria em questão também defende que o poder normativo das agências reguladoras tem que respeitar limites. Primeiramente, os referidos atos normativos têm que ser compatíveis com as demais disposições legais e com os princípios constitucionais, sob pena de invalidade da norma reguladora. Quanto ao seu conteúdo, o mesmo deve se restringir a seara das atribuições específicas de cada agência reguladora.
CONCLUSÃO
Nas últimas décadas, o Estado passou por uma profunda crise por ter se mostrado ineficiente, inoperante e incapaz de atender aos interesses da coletividade. Fez-se necessária a reformulação do papel do Estado, que passou a ser um agente normativo e regulador da ordem econômica. Nesse contexto, nasceram as agências reguladoras.
O Estado percebeu que, apesar de ter deixado de desempenhar determinados serviços públicos essenciais à população, ainda lhe cabia proteger os usuários, fiscalizando a qualidade dos serviços prestados e regulamentando o setor, de forma a impedir abusos da iniciativa privada.
As agências reguladoras trouxeram uma importante solução para melhoria da fiscalização dos serviços públicos, que não poderia ser desenvolvida, se negada a possibilidade dos referidos entes instituírem atos normativos para regular determinadas atividades econômicas, visto que estas entidades necessitam de autonomia normativa para desempenharem sua atribuição de regulação. Foi preciso que a doutrina buscasse meios de compatibilizar o instituto com o ordenamento jurídico brasileiro, que se fundamenta em um Estado Democrático de Direito, regido pelos princípios da legalidade e da separação dos poderes.
A teoria da Deslegalização se destaca por apresentar uma solução para a questão, sendo, inclusive, adotada pelo Supremo Tribunal em alguns julgados. A referida teoria trouxe uma nova fundamentação para a aparente restrição ao princípio da legalidade, admitindo que a lei degrade uma disciplina legal para nível hierárquico regulamentar, de forma a permitir que a regulação ocorra via atos administrativos normativos.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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CAL, Arianne Brito Rodrigues. As agências reguladoras no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2001.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Cristiane Barbosa dos Santos. Os limites do poder normativo das Agências Reguladoras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jan 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42842/os-limites-do-poder-normativo-das-agencias-reguladoras. Acesso em: 10 out 2024.
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