RESUMO: Relativamente novo, o tema do processamento da recuperação judicial de empresas em conformidade com a lei 11.101/2005, encontra ainda espaço para encontros e desencontros. Neste enredo, há quem decida sobre a destinação do patrimônio da empresa objeto da recuperação, podendo ora ser um determinado juízo e hora outro, a depender da situação concreta e observadas as proteções da lei, a fim de que não se inviabilize a recuperação efetiva, com vistas ao princípio da sobrevivência do empreendimento. Entretanto, não é possível impedir que o Juiz Federal exerça sua competência jurisdicional exclusiva, que é decidir nos processos de interesse da União, no ponto sobre os tributos federais, sem submeter-se a exceções que venham a ser criadas pela lei ordinária ou pela jurisprudência. Inexiste, contudo, conflito aparente de competências.
PALAVRAS-CHAVE: Recuperação Judicial. Competência. Patrimônio da Empresa. Lei 11.101/2005. STJ. Juiz Estadual. Juiz Federal. Juízo Universal. Fazenda Pública. Execução Fiscal. Conflito de Competência. Diversidade de Competências.
ANÁLISES
Relativamente novo, o tema do processamento da recuperação judicial de empresas em conformidade com a lei 11.101/2005, encontra ainda muito espaço para encontros e desencontros, ajustes e desajustes, avanços e retrocessos. Um dos importantes temas que no momento fervilha é o tema da competência exclusiva do Juiz Estadual da recuperação judicial para decidir sobre o patrimônio da empresa, a fim de que não se inviabilize a recuperação efetiva, com vistas ao princípio da sobrevivência do empreendimento.
Observou-se inicialmente o conflito prático que se estabelece quando o Juiz Estadual precisa atuar, juntamente com os sócios, credores e administrador judicial, com a finalidade comum de que a empresa tenha sua capacidade de sustentação e geração de empregos e impostos recuperada, mantida e com viabilidade de crescimento para o futuro, evitando-se a falência, com todos os malefícios que a quebra traz consigo; e a atividade do Juiz Federal que atua nas execuções fiscais da União Federal, que possui competência dada pela Constituição Republicana de 1988, competência esta jurisdicional e, portanto, absoluta, sendo que este que muitas vezes determina a penhora e a alienação de bens da empresa em recuperação de modo a ameaçar a viabilidade prática desta sobrevivência.
Com rapidez o Superior Tribunal de Justiça – STJ, tratou de fixar alguns entendimentos básicos para desamarrar tal conflito, dando solução aos problemas práticos que se apresentavam. Primeiro, com vista a atender ao princípio da sobrevivência da empresa, obtido no ambiente da lei que rege a matéria, Lei 11.101/2005, firmou que cabe ao juiz da recuperação judicial decidir sobre os bens da empresa em recuperação, algumas vezes afirmando até que tal se constituiria em “juízo universal”. Assim, ao menos, é o que pudemos interpretar de julgados que exemplificamos com as seguintes ementas:
AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DA RECUPERANDA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO.
1. O bloqueio da movimentação de todos os bens da empresa recuperanda inviabiliza a continuidade de suas atividades essenciais, interferindo no cumprimento do Plano de Recuperação, motivo pelo qual somente ao Juízo da Recuperação cabe decidir acerca da conveniência da manutenção do arresto e depósito no local onde se encontram dos referidos bens.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no CC 115.998/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/08/2014, DJe 18/08/2014)
AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DEFERIMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO UNIVERSAL PARA TODOS OS ATOS QUE ACARRETEM CONSTRIÇÃO PATRIMONIAL.
PRECEDENTES. AGRAVO DESPROVIDO.
1. Nos termos da pacífica jurisprudência da Segunda Seção desta Corte Superior, embora a execução fiscal não se suspenda em virtude do deferimento da recuperação judicial, os atos que importem em constrição do patrimônio da sociedade empresarial devem ser analisados pelo Juízo Universal, a fim de garantir o princípio da preservação da empresa.
2. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no CC 132.239/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/09/2014, DJe 16/09/2014)
Os julgados com que exemplificamos acima são extremamente representativos da primeira etapa de atuação do STJ nesta espécie de solução. Procurou viabilizar, na prática, a própria existência do instituto, uma vez que via de regra a empresa que requer a recuperação carrega consigo um passivo tributário bastante expressivo e, sendo assim, a livre atuação das Fazendas Públicas causaria inevitavelmente a quebra da empresa.
Para cumprir este objetivo, entretanto, arranhou a melhor técnica legal e jurídica. Primeiro, afirmou algumas vezes tratar-se o juízo da recuperação de um juízo “universal”, o que não é correto pois esta qualidade não consta das normas reguladoras. Depois, deixou a descoberto as Fazendas Públicas, fazendo com que na prática se suspendessem as execuções fiscais, contrariando direta e francamente o texto de dois diplomas de lei federal vigentes, que determinam que as execuções fiscais não se suspendem em casos de recuperação judicial. Os resultados destes equívocos são catastróficos.
Sobre a questão de ser ou não ser universal o Juízo da Recuperação, temos que a decisão sobre a aplicação ou não desta qualidade ao juízo da recuperação determina o rumo a ser seguido do ponto de vista da conformação do instituto da recuperação judicial. Ou bem ele é universal e todas as decisões sobre o patrimônio das empresas e sua destinação são submetidas a um juízo único e exclusivo; ou bem não é universal, cabendo ao juízo da recuperação tais decisões, mas sem excluir outros a quem a lei permitiria igualmente a intervenção sobre o patrimônio empresarial.
Ao contrário do que afirmaram alguns Ministros do STJ em suas decisões, entendemos que o juízo da recuperação não é um juízo universal.
Segundo Fabio Ulhoa Coelho, in Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, Ed. Saraiva, 8ª ed., 2011, “o juízo da falência é universal. Isso significa que todas as ações referentes aos bens, interesses e negócios da massa falida serão processadas e julgadas pelo juízo perante o qual tramita o processo de execução concursal por falência. É a chamada aptidão atrativa do juízo falimentar, ao qual conferiu a lei a competência para conhecer e julgar todas as medidas judiciais de conteúdo patrimonial referentes ao falido ou à massa falida”.
Portanto, seja pela leitura literal da norma, seja pela interpretação que lhe propõe o respeitado autor acima citado, é certo que a característica de atratividade que é inerente à ação especial é que causa a concentração nela das questões patrimoniais todas que envolvem o patrimônio a ser repartido. Há uma lógica, pois se decretada a quebra a pessoa jurídica em si, enquanto ativa no mercado, deixa de existir, restando apenas um patrimônio a ser destinado aos “herdeiros” (credores) conforme a ordem de importância do crédito estabelecida pela lei. Logo, se há um verdadeiro “espólio falimentar”, apenas um juiz pode decidir de forma unitária e coerente sobre sua correta destinação. Um espólio, um juiz.
As ações de conhecimento que discutem em juízo especializado a existência do direito, nestes juízos permanecem até que decidia se o direito (crédito, enfim) existe ou não. Em existindo, passa a ser de responsabilidade do juízo da falência (por penhora ou habilitação, conforme o caso). O mesmo se dá com as execuções fiscais, que prosseguem no juízo especial até que seja efetivada a penhora no rosto dos autos, sobrevivendo enquanto não vencidas, no juízo de conhecimento, por meio de embargos ou outra forma de impugnação.
Na recuperação judicial, todavia, não há “morte da pessoa jurídica” (quebra), nem composição de um espólio desta quebra resultante. A empresa continua existindo e funcionando (embora em condições especiais) e seu patrimônio continua disponível enquanto não for constrito por ato jurídico perfeito, judicial ou extrajudicial. Com o deferimento do processamento da recuperação, forma-se um “campo de força” protetivo do patrimônio, proteção esta que não é forte o suficiente para impedir a efetividade imediata dos créditos de certo grupo de credores especiais, não submetidos ao instituto da recuperação, sejam eles os credores de obrigações constituídas após o deferimento da recuperação, bancos credores de adiantamento de valores para exportação, detentores de créditos fiduciários, de arrendamento mercantil e, o que no caso é nosso foco, detentores de créditos tributários e não tributários inscritos em dívida ativa. Mais especialmente de nosso interesse momentâneo, os inscritos em Dívida Ativa da União.
Pois bem. Não há na norma determinação para que estes credores excluídos tenham foro no juízo da recuperação judicial para discutir e resolver (leia-se: executar) seus créditos não abrangidos pela recuperação judicial. Em assim sendo, inexiste atratividade no juízo da recuperação judicial. As próprias ações privadas patrimoniais, em sendo ilíquidas, continuam sua tramitação no juízo em que se encontram ao tempo do deferimento da quebra, podendo o juiz do conhecimento determinar a reserva, na recuperação judicial ou na falência, da importância que estimar devida na ação que lhe compete (art.6º, §3º, L.11.101/05). Somente para a efetiva execução é que se habilitará na recuperação ou na falência os respectivos créditos. Também, como exemplo, temos que após o período de suspensão de 180 dias das execuções em geral de que trata o § 4o deste mesmo artigo 6º, as execuções trabalhistas poderão ser normalmente concluídas, ainda que o crédito já esteja inscrito no quadro geral de credores. Ou seja, esta suspensão das execuções é temporária e, portanto, não enseja a jurisdição do juiz da recuperação.
Quanto às execuções fiscais tivemos já oportunidade de escrever sobre o fato de que nem se suspende, nem se modifica o juízo, nem se pode impedir por qualquer meio o seu prosseguimento, tudo como receitado pela Lei 11.101/05, art. 6º (§ 7o As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica) e art. 57 e pelo Código Tributário Nacional em seu artigo 155-A, §§ 3º e 4º, agora complementado pelo artigo 43 da Lei 13.043/14 (parcelamento especial). Resumindo, as execuções fiscais não se suspendem, SALVO pelo parcelamento na forma da Lei 13.043/14, art. 43, ocasião em que, deferido o parcelamento fica suspensa a exigibilidade do crédito e, portanto, suspensa a respectiva execução. Logo, ou a empresa obtém o parcelamento, ou se submete ao prosseguimento da execução fiscal que, sem o parcelamento, não se suspende.
CONCLUSÕES
Resulta da interpretação reta da norma algumas conclusões no que toca à submissão do patrimônio da empresa em recuperação judicial.
Se o crédito ainda não restou constituído, por estar em curso a ação de conhecimento (seja qual for a matéria), prossegue tal ação em seu juízo naturalmente competente, podendo este requisitar ao juiz da recuperação que lhe reserve patrimônio para o crédito potencial.
Constituído o crédito, por título judicial ou extrajudicial, estando exigível, pode ser executado normalmente, ficando a execução suspensa por 180 dias dias, após o que retoma seu curso, SALVO se o credor-exequente, nos autos da recuperação, tiver habilitado e negociado seu crédito, oportunidade em que deve a execução ser arquivada. Os créditos que não foram à recuperação judicial ou não tiveram nela solução, prosseguem sendo exigidos por via própria e autônoma.
Os créditos que não se submetem ao regime da recuperação, como é óbvio, não se submetem à recuperação judicial, seguindo assim o seu próprio destino. O seu “próprio destino” significa, em nosso entendimento, seu juiz natural, sua ação adequada com seu rito integral, o que inclui a execução de fato, ou seja, a excussão, a transformação de bens do devedor em dinheiro para a entrega ao credor, como regra.
Procurador da Fazenda Nacional na 4ª Região, Especialista em Direito Público pela Faculdade Projeção do DF, Acadêmico do curso de MBA em Gestão Empresarial da Escola da Administração da UFRGS e Pós-graduado em Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas - Rio de Janeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VITORIA, Flavio Machado. O Fisco e o patrimônio das empresas em recuperação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jan 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42857/o-fisco-e-o-patrimonio-das-empresas-em-recuperacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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