RESUMO: Desde tempos imemoriais, a intrigante relação entre direito e moral tem inspirado o trabalho científico de juristas e filósofos. Em sua maioria, embora admitam se tratar de objetos de estudo diferentes, os doutrinadores concebem uma algum relacionamento entre direito e moral. Nessa linha, a própria Constituição erige a moralidade como princípio jurídico. No presente trabalho, busca-se analisar as diversas correntes doutrinárias que tratam do princípio da moralidade administrativa, bem como o modo como vem sendo aplicado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Após análise detida das mais diversas concepções, chega-se à conclusão de que a melhor maneira de assegurar precisão, clareza e autonomia científica ao princípio da moralidade é concebê-lo como dever de respeito à boa-fé objetiva e, especialmente, os deveres anexos ou laterais que dela defluem.
Palavras-chave: Direito Administrativo. Princípios Constitucionais. Moralidade Administrativa.
Introdução
Desde tempos imemoriais, a relação entre direito e moral tem sido objeto de inspiração para a investigação científica de juristas e filósofos. Como ensina Miguel Reale, “desde os pré-socráticos até os estoicos, passando pelos ensinamentos de Platão e de Aristóteles, as relações entre a Moral e o Direito são focalizadas sob diversos ângulos.” (2001, p. 53).
No direito romano, já se dizia que non ominis quod licet honestum est (nem tudo que é lícito é honesto ou conforme a moral), o que já denotava que embora se trate de coisas diversas, direito e moral possuem inegavelmente alguma conexão.
Lastreado nos ensinamentos de Jeremias Bentham, anota Reale, Georg Jellinek desenvolveu sua teoria do mínimo ético, segundo a qual “o Direito representa apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver” (2001, p. 42). Tal teoria é representada pela ideia de dois círculos concêntricos, o maior compreendido como a moral e o menor, pelo direito, como se tudo que fosse direito estivesse contido dentro do círculo da moralidade. Sábios eram os romanos, que já vislumbravam a ausência dessa coincidência (entre direito e moral).
Mais precisas são as explicações do próprio Miguel Reale (2001), o qual concebe uma zona de intersecção entre direito e moral. Há uma coincidência de conteúdo apenas parcial entre o direito e moral, o que confirma o citado brocardo romano. Assim, nem tudo que é direito é moral e vice-versa. Essa coincidência parcial de conteúdo não impede ao autor de distinguir direito e moral. O direito é coercível (possibilidade de uso da força), heterônomo (imposto por terceiros) e bilateral atributivo (autoriza a formulação de pretensões de caráter obrigatório). Já a moral é incoercível (impossibilidade de uso da força), autônoma (exige uma convicção moral internalizada) e bilateral não atributiva (não autoriza a pretensão de que terceiros cumpram a norma moral).
Interessante que mesmo Kelsen, do alto de sua pretensão de purismo da ciência jurídica, admite a possibilidade de alguma influência da moral sobre o direito. Nesse sentido, anota o mestre vienense (1998, p. 249):
Na medida em que, na aplicação da lei, para além da necessária fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr, possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgão aplicador do Direito, não se tratará de um conhecimento do Direito positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo da criação jurídica, podem ter a sua incidência: normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum interesse do Estado, progresso, et. Do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer sobre a sua validade e verificabilidade. Deste ponto de vista, todas as determinações desta espécie apenas podem ser caracterizadas negativamente: são determinações que não resultam do próprio Direito positivo. Relativamente a este, a produção do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre, isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o ato Só assim não seria se o próprio Direito positivo delegasse em certas normas metajurídicas como a Moral, a Justiça, etc. Mas, neste caso, estas transformar-se-iam em normas de Direito positivo.
Portanto, para Kelsen, seja pela possibilidade de introdução de conteúdo moral no momento de criação da norma individual, seja por delegação do próprio direito positivo, é possível que a Moral influencie a própria configuração do direito.
Entre autores contemporâneos, vale destacar as lições de Habermas, o qual retira a legitimidade do direito do seu entrelaçamento com a moral. Senão vejamos (1997, p. 202):
As considerações que tecemos levam, ao invés disso, à conclusão de que a legitimidade da legalidade não pode ser explicada a partir de uma racionalidade autônoma inserida na forma jurídica isenta de moral; ela resulta, ao invés disso, de uma relação interna entre o direito e a moral.
O autor em questão vai trabalhar ainda com as ideias de moralidade pré-convencional, convencional e pós-convencional, temática que refoge aos objetivos deste trabalho.
Assentado que direito e moral não são objetos estanques e incomunicáveis, resta tentar desvendar (ou construir) o sentido do disposto no art. 37, caput, da Constituição, o qual erige a Moralidade como princípio jurídico que deve reger a Administração Pública. Se não há coincidência entre direito e moral, como visto acima, em que medida deve o intérprete se valer da moral para aferir a correção de determinada conduta ou ato administrativo? E mais, dada a multiplicidade de valores morais, seria possível dizer que há uma ou a Moral a ser utilizada como fonte de conteúdo do citado princípio? Esses são alguns dos questionamentos que precisam ficar claros após a identificação do conteúdo jurídico do princípio da moralidade administrativa.
Desenvolvimento
Origem do princípio da moralidade no Direito Administrativo
Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2002, p. 77), citando Antônio José Brandão, atribui ao Direito Civil o pioneirismo na introdução de regras morais no direito, mormente com o desenvolvimento da doutrina do abuso de direito, da obrigação natural e do dever de não locupletamento à custa alheia.
No âmbito do direito administrativo, a doutrina atribui aos estudos de Hauriou, primeiro em seu Princípios de Direito Público (obra publicada em 1910), e, posteriormente, de forma mais elaborada, na 10ª edição do seu Précis de Droit Administratif, os primeiros passos no desenvolvimento do princípio da moralidade administrativa. Num contexto em que predominava o marco teórico positivista e, especialmente, a concepção de que a Administração Pública estaria vinculada a uma legalidade estrita, o autor francês buscou uma espécie de saída que lhe permitisse corrigir iniquidades decorrentes da aplicação positivista da lei.
Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Hauriou partiu da distinção de Bergson entre moral aberta e moral fechada (p. 58):
A aberta é individual, ligada à consciência que cada um tem sobre o bem e o mal; a moral fechada é social, referida a um grupo determinado, na qual se desenvolveu para proteger a incolumidade de seus próprios fins grupais, contra o influxo perturbador das vontades estranhas.
Sob a perspectiva bergsoniana, fácil é observar-se que a moral administrativa é uma moral fechada, gerada dentro do círculo restrito dos atores investidos de poder público, voltados a executar a pública administração; um complexo institucional juspolítico regido por “um sistema de normas destinadas à realização de certos valores”.
Hauriou trabalha então com essa ideia de moral fechada, construída a partir da disciplina interna da administração pública, de modo a criar padrões de boa administração que não se limitariam à legalidade. Assim, para atestar a regularidade de determinada conduta administrativa, não bastaria a submissão dessa conduta às leis. Havia ainda o dever de observância dessa espécie de moralidade profissional ou administrativa.
Ainda que a conduta do Administrador pudesse ser formalmente subsumida à lei, seria imoral caso estivesse em desconformidade com uma finalidade pública agasalhada pela ideia de boa administração. Conforme assinala Di Pietro (2002, p. 78), “a imoralidade administrativa surgiu e se desenvolveu ligada à ideia de desvio de poder”.
Poder-se-ía objetar que o desvio de poder ou desvio de finalidade constitui problema atinente à própria noção de legalidade e de correta interpretação da lei. Todavia, é bom lembrar que Hauriou trabalhou essas questões num contexto científico de preponderância do positivismo e, especificamente, da ideia de submissão da Administração Pública à legalidade estrita. Também não estavam suficientemente desenvolvida a Hermenêutica Jurídica tal qual hoje a concebemos.
Panorama doutrinário acerca do princípio da moralidade administrativa
Em geral, a doutrina pátria ainda segue os ensinamentos de Hauriou, no sentido de identificar o princípio da moralidade administrativa com a ideia de boa administração ou de respeito a uma moralidade decorrente da disciplina interna da administração. Nesse sentido, atribui-se o pioneirismo do tratamento da matéria no Brasil ao monografista Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (1974).
Também aderem a esta corrente doutrinária, que poderíamos chama de mais tradicional ou clássica, Hely Lopes Meirelles (1990, p. 79-80), José dos Santos Carvalho Filho (2012, p. 21-22), Eros Roberto Grau (nesse sentido, ADI nº 3.026-DF) e Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2005, p. 49-118). Este último autor, ao aprofundar a explicitação de seu entendimento doutrinário, atribui grande destaque, para fins de configuração de eventual imoralidade administrativa, ao relacionamento entre o motivo e o objeto do ato administrativo “em direta relação com o interesse público específico identificado com o elemento finalidade.” (2005, p. 65). Note a proximidade com a teoria do desvio de poder ou desvio de finalidade.
José Afonso da Silva (2002, p. 648-649), embora também partilhe do mesmo entendimento de Hauriou (moralidade ligada à ideia de boa administração), procura associar a moralidade com a probidade administrativa. Afirma o autor que “a improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem.” (2002, p. 649).
Uma terceira corrente, defendida por Celso Antônio Bandeira de Mello, concebe a moralidade administrativa como “atuar na conformidade de princípios éticos” (2010, p. 119), especialmente, mas não exclusivamente, no que se refere à lealdade e boa-fé:
Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos. (2010, p. 119)
Explica ainda o autor que não seria qualquer violação da moral que significaria necessariamente uma violação ao princípio da moralidade administrativa. Haverá ofensa ao dito princípio somente “quando houver violação a uma norma de moral social que traga consigo menosprezo a um bem juridicamente valorado” (2010, p. 120). Concebe, assim, a moralidade também como um “reforço ao princípio da legalidade” (2010, p. 120).
De forma semelhante, Paulo Modesto e Seabra Fagundes concebem a Moralidade Administrativa como “comportamento adequado à isenção, ao zelo, à seriedade e ao espírito público, que hão de caracterizar o administrador como mandatário da coletividade” (2007, p.5).
Embora concorde que a boa-fé esteja contida no princípio da moralidade, assinala Paulo Modesto que esta (a boa-fé) “ocupa apenas parte limitada do âmbito de cobertura do princípio da moralidade administrativa” (2007, p. 6-7), pois a boa-fé traz um modelo de conduta “no plano da relação administração-administrados” (2007, p, 7) e a moralidade administrativa deve englobar também as “relações internas relativas ao funcionamento e estruturação do aparato administrativo” (2007, p. 7). Curioso que, apesar da preocupação também com as relações internas da administração, todos os exemplos citados pelo autor no artigo objeto de consulta estão relacionados a desdobramentos da boa-fé objetiva.
Uma quarta corrente, que segundo Fernando Couto Garcia (2003) é defendida por Fábio Medina Osório e Marçal Justen Fiho, “procura enxergar na moralidade administrativa a adoção dos princípios do interesse público, razoabilidade e/ou proporcionalidade” (2003, p. 4).
Por fim, Garcia (2003) cita o que seria uma quinta corrente doutrinária, defendida por José Guilherme Giacomuzzi e que “enxerga o princípio da moralidade administrativa como veiculador do dever de boa-fé para a Administração Pública” (2003, p. 4). Embora se trate de corrente semelhante à defendida por Celso Antônio Bandeira de Mello, restringe o conteúdo do princípio da moralidade à boa-fé. Bandeira de Mello, por sua vez, concebe apenas parte do princípio como identificada à lealdade e boa-fé, apesar de, em seu Curso de Direito Administrativo (2010), o autor não entrar em detalhes sobre qual seria o restante do conteúdo do princípio da moralidade administrativa.
Conteúdo jurídico do princípio da moralidade administrativa
Inicialmente, cabe esclarecer que, embora guardem relação entre si e, inclusive haja influência de um sobre o outro, direito e moral não se confundem. O direito, dado o seu caráter deontológico (exprime um dever ser, ou seja, uma obrigação, uma proibição ou uma adjudicação de competência), opera com o código binário lícito-ilícito. Por outro lado, a moral trabalha no campo do bom-ruim.
Da mesma forma, princípios e valores não se confundem, embora, por vezes, os primeiros tragam idêntico conteúdo dos últimos. Ocorre que quando falamos em princípios estamos nos referindo a normas e, portanto, sujeitas àquele código binário lícito-ilícito, e não simplesmente ao que é bom ou ruim.
Dessa forma, quando se fala em moralidade no direito, estamos diante de uma abertura do direito ao influxo de valores morais, mas que são por assim dizer juridicizados, na medida em que há verdadeira “importação” de conteúdo moral a ser revestido de juridicidade, ou seja, de modo a ganhar qualificações jurídicas (coercibilidade, alteridade e bilateralidade atributiva, segundo Reale, citado acima).
Assentadas tais premissas teóricas, vejamos o que dispõe o texto constitucional:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Note-se que a Constituição diz que a administração pública obedecerá ao princípio da moralidade. Trata-se de comando voltado precipuamente para os entes públicos. Há uma natureza marcadamente institucional no dever jurídico. Evidentemente que os ocupantes de cargos e empregos públicos também são indiretamente afetados, na medida em que devem conduzir a administração de modo a observar o dito princípio da moralidade.
Trata-se de observação sutil, mas de suma importância para delimitar os campos da imoralidade e da improbidade. Imoralidade é a qualificação do ato ou conduta da Administração Pública. Já a improbidade qualifica a conduta ou os atos dos gestores, servidores, comissionados, enfim, dos agentes públicos que agiram de modo contrário a determinadas disposições normativas, inclusive, pode ser qualificada de ímproba aquela conduta que levou a Administração Pública a desobedecer o princípio da moralidade. É por tal razão que nem todo ato de improbidade administrativa representa uma ofensa à moralidade administrativa.
Assim, com o devido respeito, não pode prosperar a coincidência entre improbidade e imoralidade preconizada por José Afonso da Silva. Nesse sentido, basta uma breve análise da Lei nº 8.429/92 para concluir não haver tal coincidência.
Também se afigura problemático identificar a moralidade com a ideia de boa administração.
Primeiro porque a ideia de bom ou mau, bem ou mal refletem conteúdo axiológico, próprio dos valores, e não deontológico, próprio do direito e das normas jurídicas.
Segundo, em razão da própria vagueza do conceito. Como identificar uma administração boa ou uma administração ruim?
Terceiro, porque, embora haja méritos enormes da doutrina tradicional quando da sistematização do princípio em questão, afinal, vivíamos na era do positivismo em sua versão mais extremada (vinculação estrita à lei), no paradigma científico- hermêutico atual, a configuração da moralidade tal qual concebida originalmente representa verdadeira confusão com a própria legalidade (ou juridicidade, como preferem os administrativistas mais recentes). Ora, se a moralidade é extraída da disciplina normativa interna da administração, a qual deve estar em conformidade com as leis e a constituição, a questão é de legalidade. Se o agente público, a pretexto de subsunção formal do ato à lei, pratica uma conduta imbuída de intenção escusa e que destoa da finalidade pública, mais uma vez estamos diante de um problema de legalidade e de como interpretar a lei.
Essa confusão entre moralidade e legalidade fica muito nítida na manifestação de Celso Antônio Bandeira de Mello. O autor, corretamente, inicia sua exposição de modo a defender a moralidade como expressão dos deveres de lealdade, boa-fé, atuação conforme padrões éticos etc. Todavia, talvez por excessivo respeito aos clássicos, identifica a moralidade como um “reforço ao princípio da legalidade” (2010, p. 120).
Da mesma forma, Paulo Modesto (2007) afirma não se restringir a moralidade ao dever de boa-fé, mas cita como exemplos de ofensa à moralidade a doutrina dos atos próprios e a retardação desleal, exemplos típicos de ofensa à boa-fé objetiva.
Por sua vez, identificar a moralidade administrativa com noções de interesse público, proporcionalidade, razoabilidade ou noções de justiça é negar autonomia científica ao princípio. Essa carência de autonomia faz com que a jurisprudência dificilmente aplique o princípio da moralidade de forma consistente e relevante. Geralmente, a invocação do princípio é feita juntamente com outro princípio jurídico que, por si só, e, portanto, independentemente de invocação da moralidade, seria bastante para a solução da controvérsia.
A publicação do Supremo Tribunal Federal - STF intitulada A Constituição e o Supremo (2011) é repleta de exemplos dessa situação de prejuízo à autonomia do princípio da moralidade. Trata-se de obra que traz, artigo por artigo da Constituição, vários precedentes do STF que tratam do tema. Relativamente ao art. 37, caput, a 4ª edição da referida obra traz 16 (dezesseis) precedentes que mencionam a aplicabilidade do princípio da moralidade. Ocorre que desse total, em 13 (treze) os julgadores invocam mais de um princípio que, por si só, seria suficiente para avaliar a constitucionalidade do dispositivo em análise. Geralmente, a moralidade vem associada à legalidade, impessoalidade, publicidade ou ao devido processo legal.
Apenas em três oportunidades a aplicabilidade do princípio é posta isoladamente. Na ADI nº 3.026 (Rel. Min. Eros Grau, DJ de 29-9-2006), discutia-se a necessidade de que a OAB – Ordem dos Advogados do Brasil se submetesse à exigência de promoção de concurso público previamente à contratação de qualquer empregado. O relator, Min. Eros Grau, decidiu pela inaplicabilidade do princípio da moralidade porque este se aplicaria em situações de desvio de poder, o que não seria o caso. Adotou, portanto, a visão clássica, que confunde legalidade com moralidade.
No segundo caso de aplicação do princípio da moralidade de forma isolada, o Min. Carlos Velloso (RE 199.088/SC) utiliza tal princípio como fundamento para a impossibilidade de que ocupante de cargo de assessor de desembargador exerça a advocacia. No caso, contudo, há expressa vedação no art. 28, inciso IV da Lei nº 8.906/94, motivo pelo qual bastaria a invocação do princípio da legalidade para a manutenção da vedação. Poder-se-ia, eventualmente, invocar ainda razões de impessoalidade.
O último precedente consiste na ADI-MC nº 2.661 (DJ 23-8-2002). Na ocasião, discutia-se a determinação constitucional (art. 164, §3º) no sentido de que as disponibilidades de caixa dos entes federados fossem depositadas em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei. Mais especificamente, a questão era saber qual a natureza dessa lei, se nacional ou estadual. Para justificar a ausência de competência do Estado membro para a edição de referida lei, o relator, Min. Celso de Mello, invoca o princípio da moralidade. Data venia, não se vislumbra qualquer relação entre obediência a normas éticas e definição de competência da União ou do Estado para tratar das instituições financeiras aptas ao recebimento dos depósitos de recursos públicos. Poder-se-ía cogitar de ofensa à igualdade, caso fosse liberado o depósito em instituições particulares. Ainda assim, os princípios constitucionais do art. 37 não oferecem elementos capazes de contribuir ao esclarecimento de qual espécie normativa deveria ser editada (Se lei nacional ou estadual).
A pequena digressão jurisprudencial acima revela que uma aplicabilidade muito ampla do princípio da moralidade retira-lhe a própria autonomia científica em face de outros princípios, como por exemplo os princípios da legalidade, da igualdade, da impessoalidade e da eficiência. Que o princípio da moralidade está intimamente relacionado à verdadeira “importação” de valores do campo ético para o direito não há dúvidas. Mas isso não é privilégio da moralidade. O valor igualdade, subjacente ao princípio da igualdade também tem conteúdo ético e nem por isso deve ser atribuído ao princípio da moralidade, pois já temos um princípio próprio que trata do tema, o princípio da igualdade.
Mais uma vez é preciso render reverências ao Direito Romano, que ao tratar da influência da moral no direito, mais precisamente no âmbito do direito privado, lançou as bases para a construção da boa-fé. Não se trata de boa-fé num sentido anímico, que constitui mera intenção do agente, e sim da boa-fé como padrão de conduta apto a ser erigido à condição de princípio jurídico. Nesse sentido, ensina Nelson Rosenvald:
“A boa-fé subjetiva não é um princípio, e sim um estado psicológico, em que a pessoa possui a crença de ser titular de um direito que em verdade só existe em aparência. O indivíduo se encontra em escusável situação de ignorância sobre a realidade dos fatos e da lesão a direito alheio” (2007, p. 79)
Portanto, corretas são as lições de Fernando do Couto Garcia, que, ao citar José Guilherme Giacomuzzi, “enxerga o princípio da moralidade administrativa como veiculador do dever de boa-fé para a Administração Pública” (2003, p. 4).
Feitas as devidas adequações à realidade do direito administrativo, vale citar a concepção de boa-fé adotada por Rosenvald:
Ele compreende um modelo de eticização de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de comportamento, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção, de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte. (2007, p.80)
Ao desenvolver as consequências da incidência da boa-fé objetiva, Rosenvald menciona a força criadora de “deveres anexos, instrumentais, laterais, acessórios, de proteção e de tutela” (2007, p. 94). Dentre esses deveres cita deveres de proteção, de lealdade, de esclarecimento e a vedação de atuar de forma contraditória a atos precedentes (venire contra factum proprium ou teoria dos atos próprios).
Em suma, a essência do princípio da moralidade administrativa reside no dever de a Administração Pública, tanto nas relações com particulares, quanto na relação com os próprios agentes públicos e outros entes também públicos, agir com a mais absoluta boa-fé (objetiva). Isso implica deveres de lealdade, honestidade e lisura em relação a todos aqueles que se relacionam com a Administração.
O dever de boa-fé veda, por exemplo, todas as condutas que Celso Antônio Bandeira de Mello (valendo-se da doutrina de Renato Alessi) define como perseguição de um interesse público secundário. É o que ocorre quando a administração cobra dívida prescrita ou ilegal simplesmente com interesse de melhorar o balanço das contas públicas. Da mesma forma, também seria imoral retardar a resolução de uma contenda judicial, mediante a interposição de recursos meramente protelatórios, entre outras várias situações.
Enfim, o princípio da moralidade constitui em abertura do direito administrativo à influência de valores morais, mas não é o único. Outros princípios jurídicos que regem a administração pública também podem ser alçados à condição de derivados de princípios morais, como é o caso da igualdade.
Assim, para que o princípio da moralidade tenha autonomia científica é necessário relacioná-lo à boa-fé objetiva e, sobretudo, aos deveres que dela resulta, deveres estes que serão observados pela Administração Pública em suas relações intestinas e exteriores, sob pena de nulidade dos atos administrativos que contrariem tais diretivas.
Conclusão.
Desde tempos imemorais a intrigante relação entre direito e moral vem inspirando a investigação científica de juristas e filósofos. Ora concebendo o direito como mínimo ético, ora prevendo uma coincidência parcial de conteúdo, fato é que a influência dos valores morais sobre o direito tem sido admitida pela maioria da doutrina. Prova disso é que a própria ordem jurídica, mais precisamente o artigo 37 da Constituição erige a moralidade como princípio jurídico a reger a Administração Pública.
Isso não significa coincidência entre direito e moral, pois cada ordem normativa tem suas características e seu próprio código. O direito é deontológico e, como tal, está submetido ao código binário lícito-ilícito. Já a moral é axiológica e está submetida ao código bom-ruim.
No âmbito administrativo, a sistematização do princípio da moralidade é atribuída a Hauriou, logo no início do século XX. Referido autor concebeu a moralidade como princípio a ser extraído da disciplina interna da administração e que deveria ser associado à ideia de boa administração. Tal concepção foi formulada num contexto de prevalência do positivismo jurídico e, por consequência, da ideia prevalecente de submissão da Administração Pública à legalidade estrita. A moralidade, tal qual a sistematizou Hauriou, cumpria uma função de corretivo à concepção positivista, de modo a permitir uma correção de situações em que, embora houvesse submissão formal à lei, havia algum desvio de poder ou de finalidade pública.
Até os dias atuais, a maioria da doutrina pátria concebe o princípio da moralidade nos moldes de Hauriou, ou seja, associado à ideia de boa administração e como instrumento apto a coibir o desvio de poder.
Outros autores associam moralidade à probidade, à boa-fé, ao interesse público, proporcionalidade e razoabilidade ou à atuação em conformidade com princípios éticos.
A mesma falta de clareza que muitas vezes se observa na doutrina é refletida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Associar a moralidade com boa administração ou finalidade pública acaba por causar uma superposição com o princípio da legalidade. Outras associações, tais como o relacionamento com o interesse público, proporcionalidade e razoabilidade enfraquecem a própria autonomia científica do princípio da moralidade.
Fato é que a posição mais condizente com a Constituição reside em conceber o princípio da moralidade como veiculador do dever de a Administração Pública, seja em suas relações intestinas ou exteriores, atuar com observância à boa-fé objetiva e, sobretudo, com observância dos deveres que dela defluem: a lealdade, deveres de proteção, de informação e proibição de ação contraditória (venire contra factum proprium). Só assim, o princípio da moralidade administrativa poderá gozar da autonomia científica que lhe conferiu o texto constitucional.
REFERÊNCIAS:
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 199.088/SC. Rel. Min. Carlos Velloso. Acórdão 25 nov. 1998. DJ, 18 maio 2001.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC nº 2.661. Rel. Min. Celso de Mello. Acórdão 05 jun. 2002. DJ, 23 agosto 2002.
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Procurador Federal. Graduado em Direito pela UFMG; Especialista em Direito Público pela PUC-Minas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: WANDERLEY, Paulo Roberto Magalhães de Castro. O conteúdo jurídico do princípio da moralidade administrativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jan 2015, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42905/o-conteudo-juridico-do-principio-da-moralidade-administrativa. Acesso em: 23 dez 2024.
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