RESUMO - Destaca-se nesse estudo considerações acerca do discurso de um Direito Penal opressor como medida eficaz de pacificação social. Trata-se da análise de justificação de um Direito Penal do Inimigo em razão da crescente criminalidade e a aparente ineficácia do sistema penal atual. Para tanto, utilizamos, sobretudo, materiais que favoreceram a assimilação do conteúdo abordado, tais como livros e artigos. Dentro desse diapasão, será analisado a compatibilidade e adequação dessa teoria no âmbito do atual Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Cidadão. Direito Penal. Inimigo. Dignidade humana.
INTRODUÇÃO
No cenário político-social em que se vivemos hoje, não há dúvida de que um dos grandes desafios enfrentados pela sociedade diz respeito a questão da Segurança Pública. Muito tem se discutido nessa área, sobretudo, em razão do aumento exacerbado da criminalidade como podemos constatar todos os dias nos jornais e meios de comunicação em geral.
De fato, o Brasil parece está passando por um momento truculento em que se exige das autoridades estatais um posicionamento mais contundente em relação ao tratamento ao agente infrator, uma vez que há na população o sentimento de que dentre os fatos geradores da crescente criminalidade está a impunidade e a ausência de penalidades mais severas. Como reflexo desse contexto, temos ai o PLS de n º 236/2012, que prevê a reforma do atual Código Penal que, entre outras matérias controvertidas, tais como a redução da maioridade penal, a liberação da maconha, etc. aumenta a pena de determinados crimes.
Dentro desse cenário e, muitas vezes, influenciada pela pressão exercida pelos setores midiáticos aliada à ineficácia das penas aplicadas, a sociedade, com o intuito de punir com mais severidade os agentes infratores, acaba elencando normas que vão de encontro a princípios que a própria Constituição estabeleceu. É dentro desse espaço que surge a figura do Direito Penal do Inimigo e, como consequência, o desaparecimento do Estado minimalista.
Dessa forma, a ideia de um Direito Penal do Inimigo, que é marcado pelo discurso da punição por punição, já que não enxerga o infrator como pessoa, começa a ganhar espaço e, desse modo, pondo em xeque a nossa segurança jurídica. Assim, constitui objeto de estudo desse trabalho as implicações sociais da adoção da Teoria do Direito Penal do Inimigo frente ao Estado Democrático de Direito.
DIREITO PENAL DO INIMIGO
Assunto de grande relevância e que se encontra em constantes discussões, naturalmente, em virtude de sua complexidade, diz respeito às questões relativas ao tratamento a ser dispensado à aqueles que cometem delitos, sobretudo, aqueles que costumam causar nas pessoas, um sentimento de repulsa por conta da forma com que é cometido. É tanto, que um dos motivos que levaram a propositura de um novo Código Penal foi justamente a questão das penas e da forma com que estas são aplicadas. É natural que haja esse sentimento na população em razão da aparente falência do sistema prisional que apresenta um alto índice de reincidência criminal, já que não existe uma política eficaz de reinserção social de ex-detentos.
Em matéria Penal, é sabido que não se pode agir baseando-se em clamores sociais. É necessário que qualquer alteração referente a essa matéria seja amplamente discutida a fim de preservar a segurança jurídica estatal. Nesse sentido, embora a sociedade exija uma maior reprimenda ao agente infrator, em razão da atrocidade noticiadas frequentemente, é fundamental que antes de qualquer mudança haja o debate.
Porém, esse sentimento de insegurança acaba se transformando em um terreno fértil para o surgimento de uma política criminal pautada na repressão. É que fundada na ideologia da Defesa Social entra em cena o discurso dos defensores da doutrina do Direito Penal do Inimigo, a fim de justificar uma atuação mais firme do Estado frente a ineficácia atual das penas aplicadas aos infratores.
Como pai dessa teoria temos o catedrático de Direito Penal e Filosofia do Direito da Universidade de Bonn, na Alemanha Gunther Jakobs, havido como um dos mais brilhantes discípulos de Welzel e considerado o representante mais importante da corrente jus-filosófica que defende a existência de um Direito Penal do inimigo.
Dos escritos Jakobs, podemos inferir que através da denominação Direito Penal do Inimigo, ele estabelece uma diferenciação entre cidadãos e inimigos. No prefácio da edição brasileira de seu livro, Gunther Jakobs conceitua Direito Penal do Inimigo da seguinte forma:
São regras jurídico-penais que, como suas correlatas, as regras do Direito Penal do Cidadão, somente são concebíveis enquanto tipos ideais. O Direito Penal do Inimigo é essencialmente, violência silenciosa; o Direito Penal do Cidadão é, sobretudo, comunicação sobre a vigência da norma.
Dado o conceito acima, fica evidente que todo o discurso de Jakobs está voltado à ideia de uma divisão no Direito Penal.
Isso significa que, para Jakobs, há dois tipos de Direito Penal. Um aplicável aos ditos cidadãos e um outro destinado a combater aqueles “seres” (pois, essa corrente não entende o inimigo como pessoa) que em razão da sua periculosidade, se tornaram uma ameaça à ordem social. Ou seja, na doutrina de Jakobs existem duas figuras muito bem delineadas: o cidadão e o inimigo.
O cidadão, para fins de aplicação da Lei Penal, consiste naquele que comete crimes, no entanto, oferece condições cognitivas de voltar a ser fiel às normas de Direito Penal. Por sua vez, o inimigo seria alguém que não oferece tal condição. O inimigo em Jakobs, é conhecido também como uma não-pessoa, o Estado quer contestar e torná-lo nulo, onde nele não são calculados direitos e garantias processuais.
Sobre o assunto é de clareza solar os ensinamentos de Rogério Greco que enxerga o Direito Penal do cidadão como modelo tradicional, garantista, com a observância de todos os princípios fundamentais que lhe são pertinentes, sendo o Direito Penal do Inimigo despreocupado com princípios fundamentais já que não estaríamos lidando com um cidadão, mas sim de inimigos do Estado. Essa ideia de diferenciação é fundamental para que entendamos como funciona a teoria em questão.
O DIREITO PENAL OPRESSOR COMO AFRONTA AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Uma vez situada a problemática na qual se insere a discussão acerca do tratamento a ser dispensado á aqueles que cometem delitos, começamos a compreender o quanto é complexa e que representa o discurso daqueles que acreditam que a severidade do Estado na punição dos infratores, seria um mecanismo que viabilizaria a redução da criminalidade.
É necessário que entendamos que o discurso de que se reveste o Direito Penal do Inimigo significa a flexibilização de direitos e garantias fundamentais, uma vez que no momento em que se estabelece uma diferenciação de tratamento pautada em uma subjetividade estatal, já que o Estado agiria como agente seletor das condutas havidas como ensejadoras da identificação do agente infrator como inimigo, estaríamos atribuindo legitimidade ao Estado, para que este, em nome da garantia da ordem social, passe por cima de princípios que constituem verdadeiros sustentáculos do Estado Democrático de Direito.
Considerando a essa teoria, determinadas condutas delituosas, em virtude de causar na sociedade um maior sentimento de repulsa, deveriam ser punidas com mais severidade. Contudo, a severidade aqui entendida, não se confunde com rigorosidade. O que queremos dizer é que em crimes que, em razão da crueldade, ou mesmo aquelas figuras típica que, por sua natureza, acarretem na população uma maior comoção social, tais como homicídios banais, pedofilia, tráfico de entorpecentes, estupro, etc., estariam desprovidas de garantias constitucionais e processuais.
É bem verdade que tais crimes merecem ser rigorosamente punidos. Não estamos aqui advogando uma política de abrandamento na aplicação da sanção penal. Afinal, tratam-se de condutas incompatíveis com a ordem social. O que não podemos aceitar é que haja essa dicotomia no Direito Penal, atribuindo ao Estado, de maneira subjetiva, a legitimidade para que viole direitos e garantia constitucionalmente previstos.
Outro ponto que merece destaque dada a conexão que existe entre as figuras e, na realidade, há quem sustente que constitui fundamento da doutrina do Direito Penal do Inimigo é a questão da relação que esta guarda com a teoria da culpabilidade do autor. A compreensão desse ponto é de suma importância para que possamos entender de que parâmetros parte a doutrina de Jakobs.
No Direito brasileiro, aplica-se a teoria da culpabilidade do fato para a caracterização do delito, isto é, busca-se punir o fato isoladamente, não importando o grau de periculosidade do autor. O Estado, volta-se, tão somente, para a infração cometida, no sentido de combater o comportamento (ação ou omissão) do agente em realizar um fato crime.
Contrapondo-se a essa teoria, há uma segunda corrente que se posiciona em atribuir a pena ao agente infrator, individualmente considerado. Sobre o assunto, com a maestria que lhe é peculiar, assevera Assis Toledo:
Partindo da premissa de que em certos casos a faculdade de compreensão do injusto – portanto a possibilidade de escolha - está comprometida pela conduta de vida do agente, e, ainda, partindo da suposição de que não há meios de se verificar no agente concreto o aludido poder-agir-de-outro-modo, concluem estes penalistas que a única solução; para se salvar o juízo de culpabilidade seria desfoca-lo do “fato” para a “pessoa do agente”. Censurável não seria já o agente pelo seu comportamento, pelo injusto típico, mas sim pela sua conduta de vida, pelo seu caráter, pela sua personalidade; numa palavra: pelo seu modo de ser e de viver.
Ou seja, aqui a pena está vinculada à personalidade do autor. Julga-se o agente que praticou o fato criminoso e não o fato praticado pelo agente. Perceba que o Direito Penal do Inimigo parte justamente dessa perspectiva, uma vez que o autor do fato criminoso terá a dosagem de sua pena, não pelo que fez, mas pelo que é, ou pelo perigo que sua pessoa representa ao Estado.
O Direito Penal brasileiro, embora tenha adotado a teoria da culpabilidade do fato, existe a manifestação da culpabilidade do autor no tocante a fixação da pena como se infere da leitura do art. 59 do Código Penal, in verbis:
Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I – as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;
IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.
No que se refere à adoção de uma teoria ou de outra, geralmente se busca compatibiliza-las. O que não pode haver é a adoção de um Direito Penal exclusivamente do autor, haja vista a sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito.
Assim, sob a ótica da doutrina de Jakobs, o Estado agiria levando em consideração as características individuais do agente. Isto é, o delinquente seria condenado não em face de ter cometido um delito, mas sim em razão da sua periculosidade. Da ameaça que ele (agora havido como inimigo) representaria a sociedade.
Perceba que, dentro dessa perspectiva, o Estado não enxerga no inimigo um sujeito de direitos. O que há agora é tão somente um objeto de coação. Uma ameaça que deve ser extinta.
Além da notória ofensa ao princípio da humanidade que tem como escopo a proibição de excessos e arbitrariedades na aplicação e execução das penas pelo Estado, a adoção do Direito Penal do Inimigo ofende os princípios norteadores da sanção penal. Ora, é sabido que quando da aplicação da pena, o magistrado deve observar uma série de princípios, tais como a legalidade, isonomia, proporcionalidade, responsabilidade pessoal, culpabilidade e, especialmente, o da individualização da pena.
Dessa forma, considerando a ideia de inimigo aqui discutida, inviabilizar-se-ia a correta aplicação de alguns desses princípios, pois aqui o tratamento não se daria de maneira isonômica, já que cada agente teria um tratamento diferente dependendo da sua personalidade. Também acabaríamos por ferir o princípio da culpabilidade, já que o infrator responderia não só pela prática de um fato tipificado em uma lei penal, mas também por apresentar certas características que fazem presumir que o mesmo representa um perigo maior para a sociedade e assim inevitavelmente também não teríamos uma pena proporcional. Em síntese, a adoção de um sistema como esse vai de encontro a um dos sustentáculos da ordem jurídica contemporânea: a dignidade da pessoa humana.
Em um artigo publicado, o professor Luiz Flávio Gomes nos apresenta outras características da tese defendida por Jakobs:
Síntese das características que distinguem o “Direito penal” do inimigo: (a) flexibilização do princípio da legalidade (descrição vaga dos crimes e das penas); (b) inobservância de princípios básicos como o da ofensividade, da exteriorização do fato, da imputação objetiva etc.; (c) aumento desproporcional de penas; (d) criação artificial de novos delitos (delitos sem bens jurídicos definidos); (e) endurecimento sem causa da execução penal; (f) exagerada antecipação da tutela penal; (g) corte de direitos e garantias processuais e fundamentais; (h) infiltração descontrolada de agentes policiais; (i) uso e abuso de medidas preventivas ou cautelares (interceptação telefônica sem justa causa, quebra de sigilos não fundamentados ou contra a lei); (j) medidas penais dirigidas contra quem exerce atividade lícita (bancos, advogados, joalheiros, leiloeiros etc.).
Diante da explanação feita acima, fica claro que todo o discurso dessa teoria está voltado à flexibilização dos direitos e garantias fundamentais e, por via de consequência, é incompatível com a ideia de Estado Democrático de Direito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi discutido, entendemos que a adoção de uma política criminal pautada na severidade das punições, no sentido de declarar guerra aos “inimigos,” é algo inerente à flexibilização das garantias fundamentais. Ora, no momento em que se atribui legitimidade ao Estado para que aja desconsiderando princípios de natureza constitucional, estamos colocando em cheque a nossa segurança jurídica.
Muito embora a crescente criminalidade seja uma realidade, não pode o Estado, como resposta a esse aumento, passar por cima das garantias fundamentais, impondo sanções que violem a dignidade da pessoa humana, corolário de qualquer Estado Democrático de Direito.
Temos que ter em mente que a ideia de um Direito Penal do Inimigo, por mais que se fale nesta como meio de pacificação de conflitos, representa um retrocesso no que se refere à aplicabilidade de sanções pelo Estado, já que dentro da perspectiva de Jakobs, o Estado quer apenas excluir o delinquente, eliminando uma ameaça. Ou seja, não há qualquer preocupação em reinseri-lo na sociedade.
Portanto, à luz do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, entendemos ser incabível a utilização de métodos jurisdicionais que venham a contrariar e suprimir os princípios e direitos fundamentais conquistados ao longo da história.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Código Penal. Decreto-lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940.
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Direito Penal do Inimigo e os Inimigos do Direito Penal. Revista Eletrónica del Centro de Investigaciones Criminológicas de la UMSP-Péru. p. 5. Scribd Disponível em:<http://pt.scribd.com/doc/74638321/DIREITO-PENAL-DO-INIMIGO-segunda-edicion>. Acesso em 28 de abril de 2014.
GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.
JAKOBS, Gunther. Direito Penal do Inimigo. Org. Luiz Moreira. Eugênio Pacelle de Oliveira. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes: Rio de Janeiro: Lúmen júris, 2008.
TOLEDO. Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
Procurador Federal - PGF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOGUEIRA, Marden de Carvalho. O direito penal opressor como meio eficaz de pacificação social. Uma análise à luz da perspectiva Jakobiana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jan 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42938/o-direito-penal-opressor-como-meio-eficaz-de-pacificacao-social-uma-analise-a-luz-da-perspectiva-jakobiana. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
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