RESUMO: Este trabalho intenta analisar o regime possessório na estrutura contratual da alienação fiduciária de bens imóveis. O trabalho justifica-se teoricamente pela fragilidade técnica da redação da lei 9514/97. Por sua vez, a justificativa social do escrito reside no papel significativo do instituto da alienação fiduciária como expediente de securitização no ciclo de expansão de crédito que se desenvolveu no Brasil na última década. A despeito de toda a utilidade econômica do instituto da alienação fiduciária, seus contornos jurídico-positivos são caracterizados por certa plurivocidade, mormente no que diz respeito à situação possessória do credor fiduciário e do devedor fiduciante. Sugerimos que o legislador, de modo a adequar o sistema de posse e propriedade do Código Civil de 2002 à lei de alienação fiduciária, com as modificações introduzidas pela lei 10931/04, unifique a terminologia dos dispositivos 30 e 37-A, utilizando a expressão “reintegração de posse” em ambos.
Palavras-chave: alienação fiduciária de bens imóveis; regime possessório; plurivocidade dos arts. 30 e 37-a da lei 9514/97; imissão de posse; reintegração de posse;
1 INTRODUÇÃO
A expansão de crédito dos bancos ao setor privado no Brasil é fenômeno que vem se desenvolvendo desde 2003. As instituições financeiras, estimuladas pela expectativa de redução nas taxas básicos de juros, sentiram a necessidade de mudar de direção, vislumbrando a oportunidade de aumentar sua participação no mercado e incrementar seu lucro. Para tanto, aproveitaram: a estabilidade da política econômica durante a última década; a menor volatilidade macroeconômica alcançada pelo país no contexto internacional favorável da época; e a política de geração de empregos e distribuição de renda desenvolvida no país. Este último elemento incrementou a demanda por crédito às pessoas físicas, cuja avaliação pelas instituições financeiras é realizada mais facilmente do que no que diz respeito à concessão de créditos às sociedades empresárias, dada a complexidade deste tipo de atividade. Ademais, as taxas de juros para pessoas físicas são mais altas, o que torna tais negócios bastante rentáveis para as financeiras. A aposta dos bancos deu certo, mormente ao considerarmos que antes mesmo do aumento do poder aquisitivo dos consumidores a procura por crédito, ainda que com taxas de juros muito altas, se tornou bastante alta, como um espelho das expectativas da população em relação à melhora da economica, bem como da necessidade de atualização da compra de bens duráveis. O ciclo de expansão do crédito teve como principais modalidades de concessão o crédito pessoal, a aquisição de veículos e o cartão de crédito. Especificamente no que diz respeito aos veículos, a modalidade fiduciária de garantia teve destaque, visto proporcionar uma rápida retomada dos bens, de modo a reduzir o risco do crédito e, consequentemente, a diminuição do prêmio de risco cobrado pelas financeiras (FREITAS, 2015).
A alienação fiduciária é instituto fundado na ideia romana de fiducia (confiança). Consiste no contrato bilateral mediante o qual o credor fiduciário torna-se titular da propriedade resolúvel (fiduciária) da coisa e seu possuidor indireto, enquanto o devedor é investido na condição de possuidor direto e depositário (arts, 1361, §2º, e 1363). Pode atingir bens imóveis, bens móveis fungíveis (posse do credor) ou infungíveis (posse do devedor). A propriedade fiduciária de bens móveis encontra regramento geral no Código Civil de 2002, enquanto a propriedade fiduciária de bens imóveis é regulada por diploma normativo específico, a lei 9514/97. Segundo Fábio Ulhoa Coelho (2014), não é contrato exclusivo de instituição financeira e é contrato de garantia, meramente instrumental (negócio-meio) em relação a qualquer tipo de mútuo (bancário ou não).
A fiducia encontra espaço, na estrutura do contrato, na constituição de direito real sobre coisa própria de propriedade transitória do credor fiduciário, direito este submetido à condição resolutiva de pagamento do débito garantido. Quitada a dívida garantida, o devedor fiduciante será considerado, ex tunc, proprietário pleno. Na visão de André Carvalho Nogueira (2008, p. 70-1), temos, em verdade, um sistema dicotômico de propriedade, em que, em moldes análogos ao do common law, há um direito de propriedade legal (legal ownership), titularizado pelo credor fiduciário, e um direito de propriedade por equidade (equitable ownership), presente na esfera jurídica do devedor fiduciante. A propriedade legal existe especificamente para o fim do cumprimento da função de garantia, enquanto a propriedade por equidade existe para todos os demais efeitos legais.
A despeito de toda a utilidade econômica do instituto da alienação fiduciária, seus contornos jurídico-positivos são caracterizados por certa plurivocidade, mormente no que diz respeito à situação possessória do credor fiduciário e do devedor fiduciante, conforme veremos a partir de agora.
2 ESTRUTURA POSSESSÓRIA DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
A alienação fiduciária em garantia pressupõe a transferência não apenas da propriedade resolúvel, mas também da posse indireta da coisa, ao credor fiduciário. Tal movimento jurídico torna o alienante (devedor fiduciante) possuidor direto a título de depositário, cuja posse é desdobrada em relação à posse indireta do fiduciário (art. 1361, par.2., do CC/02). De tal modo, durante o período da pendência de condições, o devedor pode usar e gozar do bem segundo sua destinação e às suas expensas e riscos, mas responde por eventual prejuízo em relação à coisa na qualidade de depositário, nos moldes do art. 1363 do CC/02. Ou seja, o bem é tratado como destacado do patrimônio do alienante, visto que está reservado para satisfazer o seu débito, enquanto o credor, titular de uma modalidade específica de propriedade resolúvel (propriedade fiduciária, na terminologia de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald), será desprovido das faculdades de uso e fruição.
Nesses moldes, aquilo que André Nogueira chamou de propriedade por equidade é traduzido, na terminologia de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2011, p. 449), como um direito eventual (direito concebido e ainda não nascido), cuja aquisição é dependente do próprio interessado, quem seja, in casu, o devedor fiduciante, que pode optar por pagar o valor da dívida e, assim, tornar-se proprietário do bem. Por tal motivo, o devedor fiduciante pode manejar não apenas ações possessórias (inclusive contra o credor fiduciário), mas também ações reais contra terceiros, dado que seu direito eventual tem natureza real.
Chaves e Rosenvald (2011, p. 449), explicando a estrutura possessória do negócio de alienação fiduciária, consideram que é inerente ao tipo contratual a figura do constituto possessório, modo simultâneo de aquisição e perda da posse pela via da tradição ficta, consistente na inserção de cláusula contratual fundada no art. 1267, par. único, do CC/02. Ora, é nuclear na figura da alienação fiduciária que o devedor fiduciante, o qual tinha o bem em suas mãos a título de proprietário, sofre uma inversão no título de sua posse em relação ao objeto, visto que, com o negócio, se torna possuidor em nome alheio. Assim, com o desdobramento da posse, o devedor fiduciante adquire a posse indireta por tradição ficta, já que não há qualquer ato de entrega material, nem mesmo simbólica, do bem. Do mesmo modo, nova inversão do título da posse acontecerá caso o devedor quite a dívida, hipótese em que, por meio da figura da traditio brevi manu, modalidade de tradição ficta em que o possuidor do bem a título de depositário se torna possuidor em nome próprio (proprietário), desfazendo-se o desdobramento da posse (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 450).
3 CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE DO CREDOR FIDUCIÁRIO X DIREITO DE POSSE DO DEVEDOR FIDUCIANTE
O aperfeiçoamento da garantia fiduciária de bem imóvel é efetivado por meio do registro do instrumento contratual no cartório do registro de imóveis do foro do bem. Em caso de inadimplemento do débito garantido, o credor fiduciário poderá exercer o seu direito/dever de, consolidada a propriedade em seu nome, providenciar a sua venda, de modo a utilizar o valor respectivo para satisfazer o crédito, reservando-se, obviamente, eventual excedente ao devedor fiduciante. Falamos em direito/dever pela peculiaridade de que, por vedação à usura, o bem permaneça no patrimônio do credor fiduciário. Ora, este tem o direito de utilizá-lo apenas como elemento de garantia real, tendo o dever de vendê-lo para satisfazer seu crédito, não podendo retê-lo para si, conforme dispõe o art. 1365 do CC/02, salvo nas situações excepcionais previstas pelo art. 27, pars. 5 e 6, da Lei 9514/97.
Diferentemente do regime da alienação fiduciária de bens móveis, em que, conforme disposto na Lei 10931/04, a propriedade do credor fiduciário se consolida automaticamente, a alienação fiduciária em garantia de bens imóveis exige que a excussão siga os ritos previstos nos artigos 26 e 27 da Lei 9514/97, nos quais são encontradas regras sobre a consolidação da propriedade em nome do credor, bem como a respeito do leilão para a venda do bem respectivo.
O art. 26, caput, da Lei 9514/97 estabelece que a propriedade se consolida em nome do fiduciário com a constituição do fiduciante em mora, mesmo que a falta de pagamento seja referente apenas a uma parte da dívida. Tal consolidação exige a satisfação do procedimento cartorário previsto no par. 1 do mesmo artigo, pelo qual o credor requer ao oficial do registro de imóveis a intimação do devedor para realizar o pagamento da prestação vencida e das que se vencerem até a data do pagamento, bem como de seus acessórios, no prazo de quinze dias. É apenas após tal prazo que o oficial do registro de imóveis promoverá a averbação de consolidação da propriedade em nome do fiduciário na matrícula do imóvel, desde que este pague o ITIV e, se for o caso, o laudêmio, nos termos do par. 7 do artigo 26. A seguir, nos termos do art. 27, o fiduciário terá o prazo de trinta dias, contados da referida averbação, para promover o leilão público de alienação do imóvel.
A consolidação da propriedade proporciona ao fiduciário, seu cessionário ou seus sucessores, inclusive o eventual arrematante, a legitimidade para pleitear reintegração na posse do imóvel liminarmente, com prazo de desocupação de sessenta dias, nos termos do art. 30., desde que comprovada a consolidação da propriedade em nome daquele que maneja o interdito possessório. Entretanto, o art. 37-A, introduzido pela Lei 10931/04, dispõe sobre imissão da posse no imóvel por parte do fiduciário ou seus sucessores, e não em reintegração de posse, o que gera um problema terminológico.
A solução da questão terminológica acima disposta exige a realização de uma distinção entre reintegração de posse, espécie de interdito possessório, e imissão de posse, modalidade de ação petitória cujo interesse-adequação é titularizado, na maior parte dos casos, pelo adquirente de propriedade via título registrado que é obstado de se investir na posse pela primeira vez devido à resistência do alienante ou de um terceiro (detentor) em entregar o bem. Ora, o manejo de reintegração de posse pressupõe a titularidade de jus posessionis (direito de posse), enquanto o ajuizamento de imissão de posse tem fundamento no jus possidendi (direito à posse). Em outras palavras, tem legitimidade para a reintegração de posse aquele que, sendo possuidor, sofre esbulho, enquanto a legitimidade para a imissão de posse existe para quem, nunca tendo sido possuidor, tem fundamento em título jurídico para exigir que lhe seja transmitida (e não devolvida) a posse do bem (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 181-3). Diante do exposto, Chaves e Rosenvald (2011, p. 184) explicam que o constituto possessório é situação que exclui a possibilidade de manejo de imissão de posse, visto que aquele que procura a via judicial, por já ser possuidor indireto devido à tradição ficta, já é possuidor, de modo que a recusa em restituir o bem consiste em esbulho por via de precariedade. É caso, portanto, de reintegração de posse, como, corretamente, dispõe o art. 30 da Lei 9514/97.
A explicação acima não nos desincumbe do ônus de explicar o motivo de o legislador ter utilizado, no art. 37-A, a expressão “imitido”. Parece-nos possível imaginar duas possibilidades: 1) o legislador, de modo atécnico, tratou reintegração e imissão de posse como sinônimos; ou 2) o legislador, ainda que de forma confusa, tentou distinguir a situação do credor fiduciário, o qual seria legitimado para manejar reintegração de posse, e a de seus sucessores ou cessionários, cuja legitimação seria a de manejar imissão de posse. Esta última interpretação parece-nos mais razoável, por ser menos grosseira tecnicamente. Ainda assim, constitui um equívoco (talvez explicado pelo fato de que o art. 37-A foi concebido posteriormente à redação original da lei, como uma espécie de emenda), pois, como explicam Chaves e Rosenvald (2011, p. 182), a situação em que o adquirente de um imóvel encontra um antigo possuidor direto na qualidade de possuidor precário enseja, pelo novo proprietário, manejo de reintegração de posse. O exemplo dos autores diz respeito à situação em que A, comodante de um imóvel, o vende para B, o qual é impedido de utilizar o bem por C, comodatário. Ora, na estrutura do comodato, A era possuidor indireto e B era possuidor direto. Com a venda do bem, não subsistindo o contrato de comodato, A se torna possuidor precário. Visto que a aquisição da propriedade sub-roga o adquirente em todos os direitos e ações do primitivo proprietário, B se tornou, com a venda, possuidor indireto, cabendo-lhe o manejo da reintegração para extinguir o desdobramento da posse e concentrá-la totalmente consigo. O mesmo raciocínio pode ser transposto à hipótese de aquisição do imóvel por terceiro pela via da arrematação: o devedor fiduciante se torna possuidor precário quando não devolve o bem no prazo legal, de modo que o arrematante, ao adquirir o imóvel, sub-roga-se na situação de possuidor indireto anteriormente titularizada pelo credor fiduciário, o que confere ao adquirente a legitimidade para manejar reintegração de posse, e não imissão de posse.
4 CONCLUSÃO
A dimensão garantidora da propriedade fiduciária facilita a consolidação da propriedade do imóvel pelo credor fiduciário em caso de inadimplemento, tendo a vantagem de dispensa do processo comparativamente com a garantia hipotecária. De tal modo, o instituto da alienação fiduciária estimula o financiador a buscar a atividade, visto que o risco a ela inerente é mitigado pela estrutura jurídica contratual de rápida recuperação do crédito conferida pela legislação brasileira, o que, com a correspondente redução da taxa de juros, implica um estímulo às construções imobiliárias no país. Ademais, os investidores podem negociar os valores mobiliários, em uma combinação de garantia e liquidez, devido à estabilidade na captação de recursos conferida pela lei. Ora, o título de crédito lastreado em crédito imobiliário e a formação de um mercado secundário de tais créditos constituem um processo de securitização, em que uma empresa adquire créditos, emite os títulos respectivos e os insere no mercado financeiro, o que demonstra a relevância financeira do instituto na economia brasileira (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 469-70). Entretanto, a compreensão de seu regime legal requer conhecimentos profundos nos campos dos direitos dos contratos e dos direitos reais, mormente diante da fragilidade técnica da redação da lei 9514/97. Sugerimos, portanto, que o legislador, de modo a adequar o sistema de posse e propriedade do Código Civil de 2002 à lei de alienação fiduciária, com as modificações introduzidas pela lei 10931/04, unifique a terminologia dos dispositivos 30 e 37-A, utilizando a expressão “reintegração de posse” em ambos.
REFERÊNCIAS
CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: direito das coisas e direito autoral. São Paulo: Saraiva, 2014.
FREITAS, Maria Cristina de. Os efeitos da crise global no Brasil: aversão ao risco e preferência pela liquidez no mercado de crédito. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142009000200011. Acesso em: 16 de jan. de 2015.
NOGUEIRA, André Carvalho. Propriedade fiduciária em garantia: o sistema dicotômico da propriedade no Brasil. In: Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, ano 11, n. 39, jan-mar, 2008. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, p. 70-71.
Advogado graduado pela UFBa, Doutor em Ciências Sociais pela UFBa, Doutorando em Direito Público pela UFBa, Mestre em Direito Público pela UFBA, especialista em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito pela PUC-MG, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP, professor de Hermenêutica/Filosofia do Direito/Argumentação da Faculdade Baiana de Direito, Aprovado em primeiro lugar em concurso para professor adjunto de Teoria Política e Instituições Políticas da UFBa.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MIGUEL, Daniel Oitaven Pamponet. O regime possessório na estrutura contratual da alienação fiduciária de bens imóveis Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jan 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43092/o-regime-possessorio-na-estrutura-contratual-da-alienacao-fiduciaria-de-bens-imoveis. Acesso em: 23 dez 2024.
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