Resumo: A nossa sociedade se diz evoluída. Há milhares de anos o hominídeo vivia em cavernas, até dominar a arte da agricultura e pecuária. Depois disso, o homem passou a construir pequenas vilas e mais tarde vieram as cidades. O século XVIII deu origem a um movimento frenético de produção de produtos industrializados, transportes, novas formas de energia, etc. Enfim, por conta de grandes transformações culturais, sociais, econômicas, a sociedade atual se vê bem distante dos seus ancestrais.
No entanto, a humanidade atual parece não ter se livrado das amarras que os nossos ancestrais usavam para sobreviver no seu tempo. Desigualar os sexos é mais que retroagir no tempo é uma forma de continuar a legitimar o poder estabelecido, no caso o homem frente à mulher.
Não há como destinar tarefas e determinar meios específicos à mulher frente ao contexto atual que vivemos. A mulher quer poder optar entre ter filhos ou não, fazer um curso em licenciatura ou bacharel, ser uma cozinheira profissional ou uma policial. Dessa forma, pensamos que uma sociedade evoluída tem de conceber a igualdade dos sexos.
Embora saibamos que exista um número expressivo de mulheres que denunciam seus agressores e, esse número tem aumentado no Brasil, ainda há mulheres que não enfrentam seu agressor.
Nosso referencial teórico está calçado na proposta de Pierre Bouidieu no que diz respeito à violência simbólica, habitus e dominação masculina. Além disso, nos serviremos de Helleieth Saffioti acerca da violência de gênero para entender como as mulheres, às vezes, não se percebem como vítimas.
Esse referencial nos permitirá entender elementos sociais e culturais, que já se estruturaram em nossa sociedade, continuam a serem reproduzidos e vão sendo reafirmados através do tempo até que resolvamos reorganizar as estruturas sociais para que não se assentem na diferenciação dos sexos ou na hierarquização de algum deles.
Nesse texto, veremos que essas estruturas contêm a figura de uma mulher desenhada sob os moldes cristãos. Mulheres são feitas para reproduzir, cuidar dos filhos e da casa. E, por isso, quando elas passam a ocupar altos cargos públicos, como o da presidência da República, ou simplesmente se recusam ser mães e priorizam a carreira profissional, há uma grande estranheza por parte da sociedade.
Se a nossa sociedade continuar a reforçar esse modelo de mulher, ainda que cresça o número de denúncia de mulheres contra seus agressores, sempre existirá aquela que pensa que é natural apanhar, é normal ser julgada inferior e que é melhor se calar. E assim a sociedade continuará alimentando esse ciclo. A menos que seja capaz de reconhecer essas amarras e romper com esse habitus criando uma sociedade em que as relações não estejam calcadas na dominação masculina.
1. Introdução
O Senso publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, a partir de uma interpretação de Cecília Ritto, da Revista Veja, estima que 86,8% dos brasileiros são cristãos. A nosso ver isso pode explicar muito o modelo de mulher que a nossa sociedade já internalizou.
Percebe-se na nossa sociedade uma hierarquia entre homens e mulheres, em que a mulher está na parte inferior. Ao homem é reservado o espaço público, domínio e agressividade. Já à mulher são destinadas as tarefas domésticas. E é através dessa diferença e dessa hierarquia, onde o homem é visto pela sociedade como superior à mulher, que resultam ações de violência contra o sexo feminino (AZEVEDO, 1985).
Consideramos que a violência contra as mulheres vai muito mais além daquela que prevista na Lei Maria da Penha. Segundo Bourdieu (1999) A violência também acontece quando se impõe de maneira imperceptível os valores e a dominação através de instrumentos de conhecimento e dominação. Com a palavra o autor e sua definição sobre violência:
“Violência simbólica, violência suave, insensível, invisível à suas próprias vítimas, que se exerce, essencialmente, pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, o ‘sentimento’.” (BOURDIEU, 1999, p. 8)
Pensamos que durante muito tempo comportamentos e valores de hierarquização foram reproduzidos e tornados naturais, cultural e ideologicamente. Por vezes, são ignorados. Todos esses valores e comportamentos, que podem estar contidos na Bíblia, reforçaram a ideia de superioridade masculina e contribuem para uma cultura de dominação masculina e, consequentemente, na manutenção da violência. Acreditamos que não só a sociedade, mas, também, a mulher reproduz esse modelo feminino apresentado nas histórias e ensinamentos bíblicos. Isso não quer dizer que ela seja passiva e inanimada, mas:
“...Trata-se de fenômeno aquém da consciência o que se exclui a possibilidade de pensar em cumplicidade feminina com homem no que tange ao recurso à violência para realização do projeto masculino de dominação exploração das mulheres. Como o poder masculino atravessa todas as relações sociais, transforma-se em algo objetivo, traduzindo-se em estruturas hierarquizadas, em objetos , em senso comum (SAFFIOTI (ano) apud ROCHA 2007, P.16)
Com base nisso, mostraremos que existem elementos muito fortes na Bíblia Sagrada usada pelos cristãos que compõe as bases em que a sociedade brasileira está assentada hoje. Essa doutrina é reafirmada todos os dias, em grande parte dos lares brasileiros através de uma educação diferenciada.
Embora consideremos que a violência contra a mulher vai além da sexual, psicológica, física, patrimonial e moral, queremos propor uma discussão sobre a violência sexual, física e psicológica. Essa será uma forma de enriquecer nosso trabalho já que pensamos que, muitas vezes os três tipos de violência podem estar associados e refletem o modelo de mulher assimilado pela nossa sociedade.
Em uma reportagem da BBC Brasil (2013), por Luis Kawaguti, é apresentado um número de 600 por cento de aumento nas denúncias pelo 180 (Central de Atendimento à Mulher) após a criação da Lei Maria da Penha em 2006. Por outro lado, seria muita ingenuidade acreditarmos que todas as mulheres denunciam. Ainda há um número expressivo de mulheres brasileiras, que desconhecemos, que mesmo com um aparato legal destinado à elas pela Lei Maria da Penha, se negam a delatar seu agressor.
É esse nosso principal objetivo, levantar qual possibilidade leva essas mulheres que tem seus direitos humanos violados, se calarem. Para tanto, fizemos uma possível relação que pode ter entre esse comportamento ao de uma doutrina cristã de hierarquização. Dessa forma apresentaremos algumas histórias e doutrinas da Bíblia cristã que nos ajudará a expor nossa ideia de que o livro sagrado usado pelos cristãos ajuda a compor uma estrutura que submete a mulher ao homem, fazendo com que a violência contra ela seja reforçada geração após geração.
2. Como a sociedade vê a violência contra as mulheres
“Homem não chora”! Há muito ouvimos isso e, às vezes, nem percebemos como uma forma de dominação. Mas estímulos como esse faz com que se perpetue a dominação masculina sobre a feminina. Meninos são ensinados desde muito pequenos que não devem deixar aflorar seus sentimentos, não podem fazer serviços domésticos, não podem brincar com bonecas. Esses meninos estão sendo ensinados a serem o provedor da casa e da família, a estarem à frente de seus lares, a executarem tarefas que exijam força, dominação, e não mostre sensibilidade.
Estar convicto de pertencer a um sexo forma a identidade de gênero. No entanto, com o tempo outros significados que derivam das possibilidades físicas e sociais de homens e mulheres passam a compor a identidade de cada sexo. Isso gera a desigualdade entre os sexos, que é vista pela sociedade, como naturais (BADINTER, 1993 apud PASSOS, 1999).
No mesmo sentido, segundo Almeida (1998):
“As mulheres não denunciam por considerar um fenômeno natural, por sentir vergonha, culpa, depender emocional e economicamente do agressor, por não vislumbrar formas de romper com a cadeia de violência (falta e ineficácia de equipamentos de consumo coletivo que possibilitem a limitação da mulher da esfera doméstica) (ALMEIDA, 1998, P.79)”.
O conceito de habitus, usado por Bourdieu, pode nos ajudar a entender que a mulher e a própria sociedade assimilaram práticas sociais baseadas na dominação masculina. O indivíduo externaliza o seu mundo objetivo para o mundo em que ele vive. Essa é a forma com que a violência simbólica se manifesta.
A sociedade como um todo já internalizou a concepção de que a mulher é naturalmente inferior ao homem e, às vezes, até a própria mulher não consegue reconhecer essa situação. No entanto, Saffioti (1999) diz:
“(...) a desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais. A diferença nas relações entre homens e mulheres é que essa desigualdade de gênero não é colocada previamente mas pode ser construída e o é com frequência” (SAFFIOTI, 1999, p.2).
É importante salientarmos que não vemos a mulher com um ser que contribua para manter essa relação de inferioridade, no sentido em que ela seja um ser inanimado e incapaz de reagir. Algumas correntes teóricas defendem que a mulher contribui para a continuidade e fortalecimento da sua relação inferior frente ao homem á medida em que aceita a sua situação de submissa. A nosso ver existe uma situação de submissão por parte da mulher, no entanto, isso não constitui uma forma de representação da sua passividade.
Segundo Saffioti (2003) não há como a mulher assumir um papel de cumplicidade, pois ela não tem a mesma parcela de poder que os homens na sociedade. Por estar inserida de forma desigual na relação de poder são obrigadas a ceder fazendo com que essa violência simbólica se repita, mas isso não a torna cúmplice[1]. Também concordamos com Saffioti (2003) que as mulheres não podem ser vistas como santas, pois, às vezes, são elas mesmas responsáveis por desencadear situações de violência.
Embora entendamos que a diferenciação dos sexos não deva ser vista como natural, é assim que ela é vista e é construída ao logo da história. Mas há esperanças, pois homens e mulheres são capazes de mudar, são sujeitos que mudam o meio e, por isso, podem quebrar esse ciclo de hierarquização que concebem homens como superiores, guias, e as mulheres como santas e obedientes à vontade dos maridos.
3. Violência sexual, psicológica e física
A Lei Nº 11.340 de agosto de 2006, mais conhecida por “Lei Maria da Penha”, foi um avanço monumental no ordenamento jurídico brasileiro. Em 1983 Maria Maia da Penha Fernandes sofreu duas tentativas de assassinato pelo seu ex-marido. A primeira foi com arma de fogo que a deixou tetraplégica. Na segunda, o ex-marido tentou eletrocutá-la e afogá-la, sem sucesso. O caso repercutiu e a Comissão dos Direitos Humanos, coordenada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), resolveu intervir. Depois de quase 20 anos o ex-marido foi preso durante dois anos (COELHO, 2010).
Somente em 2006 foi criada a Lei 11340 que leva o nome de Lei Maria da Penha. A lei criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Para isso, foi mudado o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal. Essa lei foi criada especialmente para proteger a mulher. E, diferentemente do pensamento comum, a lei não trata somente da violência física contra as mulheres, todavia de violência doméstica e familiar que lhe cause: “morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
Os efeitos da violência sexual nas vítimas estão relacionados à sua integridade sexual, física e psicológica. São tipificados como delitos sexuais: estupro, atentado violento ao pudor, sequestro, tráfico, exploração e abusos sexuais. Atualmente os casos de morbidade e mortalidade feminina estão relacionados à violência sexual, por exemplo. (VENTURA, 2004, P.89).
A violência sexual contra a mulher também envolve outros tipos de violência, como a psicológica, que fere diretamente os Direitos Humanos da mulher disposto no Art. 7º da Lei nº 11.340/2006:
“A violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação ameaça, coação ou uso da força, que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.”
Segundo o Estudo do Banco Mundial, de 1994, por nome “Violência contra a mulher: a carga oculta da saúde”, publicado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), os principais elementos resultantes da violência sexual contra as mulheres em várias situações são: doenças sexualmente transmissíveis (inclusive a aids), as lesões físicas, a gravidez indesejada, o aborto forçado, o aborto clandestino e inseguro, o sofrimento psíquico e transtornos mentais.
Segundo Berquó (2003) adolescentes e mulheres em idade reprodutiva são as mais vulneráveis às relações sexuais forçadas, agressões, estupros, à prostituição forçada, ao assédio sexual e ao abuso sexual.
Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) apontam que cerca de 13% a 61% das mulheres em todo o mundo já sofreram algum tipo de mau trato físico por seus parceiros masculinos. No que toca à violência sexual no âmbito doméstico é possível que não tenha como acertar esse número com precisão, pois Adesse afirma que é: “pouco denunciada, dificultado seu registro estatístico e a pesquisa nesta área” (2005,p. 13).
As ameaças contra a mulher e/ou seus filhos, que são feitas por meio de gestos que intimidam ou promessas de agressão, são consideradas como violência psicológica. Mas ela também pode vir associada à violência sexual. Mulheres que são ameaçadas pelo companheiro, caso não tenham relações sexuais com ele; mulheres que sofrem qualquer outro tipo de ameaça para realizar fantasias sexuais masculinas das quais elas não queiram. Enfim, percebe-se que nem sempre a violência sexual está isolada. Às vezes ela pode estar associada a outros tipos de violência, como a psicológica.
Diferente da violência física, que é mais visível aos olhos de qualquer pessoa, os resultados da violência psicológica podem ser um pouco mais difíceis de serem notados. Os sintomas podem ser: insônia, pesadelos, falta de concentração, irritabilidade, falta de apetite e até problemas mentais como síndrome do pânico, estresse pós-traumático, depressão, ansiedade, além de comportamentos autodestrutivos, como o uso de álcool e drogas e, até mesmo, tentativa de suicídio (KASHANI; ALLAN, 1998).
Muitas vezes, a mulher não entende como violência a relação sexual forçada, situações que a obrigue ver imagens pornográficas ou ter relações que lhe cause desconforto ou asco, já que o agressor é seu companheiro. Há um quadro simbólico que a envolve e diz como ela deve se comportar no casamento e na sociedade. E como a sociedade vê que essa superioridade masculina é natural, a dominação masculina é reafirmada e reproduzida.
4. A Bílibia como um instrumento de dominação masculina
Sabe-se que há muitas passagens bíblicas que mostram essa ideia de dominação masculina que queremos falar. O livro do Gênesis, por exemplo, quando fala da criação do homem deixa claro uma hierarquização em que o homem está no topo. Observa-se que o homem foi criado primeiro. Depois Deus vê a tristeza de Adão e cria a mulher. Nesse sentido, podemos notar que a mulher foi criada depois do homem e também para servi-lo.
Além disso, ainda em Gênesis, na passagem com o título “A tentação de Eva e queda do homem” nota-se que a responsabilidade do castigo que Deus deu ao homem, por conta da sua desobediência, recaiu sobre a mulher. Embora no capítulo que leva esse título Deus tenha castigado os dois, percebe-se uma responsabilização pelo pecado, cometido pelos dois, à mulher. Vejamos o castigo dado ao homem em Gênesis (3:17-19):
“Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher e comeste da árvore de que ordenei, dizendo: Não comerás dela: maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias de tua vida. Espinhos, e cardo também, te produzirá e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão”.
Esse trecho da Bíblia sugere que um dos erros de Adão foi ter ouvido sua mulher. Ou seja, não foi somente o ato de comer o fruto proibido, mas o de acatar o que Eva disse. Ora, nota-se nessa passagem uma ideia de que homens não devem ouvir suas mulheres. É o homem quem determina e ele não deve seguir, mas ser seguido. Caso contrário ele pode perecer.
Por conta da desobediência feminina o homem foi expulso do paraíso e obrigado a trabalhar para garantir o seu sustento. Por outro lado, a serpente é condenada a se rastejar eternamente. Já à mulher Deus disse: “Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará” (GENESIS, 3:16).
Mais uma vez, percebe-se uma ideia de dominação masculina. Ela é tratada como um ser desprovido de saber, que pertence ao homem e, como tal, não pode ter liberdade nem prazer, mas viver para atender às vontades do marido e comanda pelo mesmo.
Não só no Gênesis, mas espalhado pelo Velho Testamento percebe-se a construção de uma figura feminina responsável, pela queda, pela desgraça e pela ruína do homem.
A história da profetisa Jezabel ilustra bem a vida de uma mulher que se mostrou poderosa, mas foi morta. Tornada rainha, ao se casar com Acab, rei de Israel, Jezabel teve grande influência no reino do seu marido. A rainha assumiu grande autoridade política e religiosa sobre Acab, a medida que passou a ditar regras e a dominar o reino com suas crenças religiosas. Seu poder cresceu tanto que ela obrigava os sacerdotes a adorarem deuses fenícios. Além disso, a rainha perseguiu todos os seguidores de Deus. Por se deixar levar pela influência de Jezabel, Acab passou a irritar Deus, segundo o livro dos Reis. Ter se deixado levar pelo poderio de uma mulher, custou à Acab a ira de Deus “...Acabe fez muito mais para irritar ao Senhor Deus de Israel do que todos os reis de Israel que foram antes dele” (I REIS, 16: 33).
Outra história bíblica que repete e reafirma o domínio masculino é a história de Sansão e Dalila. O capítulo que conta essa história tem por nome “A traição de Dalila”. Depois de várias tentativas para descobrir a origem da força de Sansão, Dalila obtém resultados e o entrega aos filisteus. Sansão, por ouvir a voz de sua mulher, foi levado à ruína. Vê-se que esse é um “exemplo”, mostrado pela Bíblia, de que as mulheres são traiçoeiras e os homens não podem confiar nelas.
Outro exemplo da fraqueza das mulheres está representado, também no livro do Gênesis, quando é contada a história da destruição de Sodoma e Gomorra. Segundo o livro, Deus se agradou de Ló e antes de destruir as duas cidades deixou que ele convidasse toda a sua família para fugir do local. Sem conseguir convencer aos seus familiares e a de sua esposa, Ló leva apenas a mulher e suas filhas. Antes de saírem Deus teria orientado que não olhassem para trás, porém, “...a mulher de Ló olhou para trás e ficou convertida numa estátua de sal” (GÊNESIS, 9:26). Nessa passagem fica bem explícita a situação de fraqueza e fragilidade da mulher.
A ideia de superioridade masculina não se encontra somente nas histórias do povo israelita contada no Antigo Testamento. No Novo Testamento essa noção hierarquizada dos gêneros aparece em forma de conselho, como o Livro de Coríntios.
No livro escrito por Paulo ao povo de Corinto, especialmente no capítulo 11, podemos ver de forma bem explícita o entendimento de uma superioridade masculina frente à feminina quando ele diz: “Mas quero que saibais que Cristo é a cabeça de todo o varão, e o varão a cabeça da mulher, e Deus a cabeça de Cristo” (11:3). Um pouco mais à frente a carta vai sendo escrita em torno do comportamento de homens e mulheres na igreja:
“Todo o homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua própria cabeça. Mas toda a mulher que hora ou profetiza tendo a cabeça descoberta, desonra sua própria cabeça. Porque é como se tivesse a cabeça rapada (...). O varão pois não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus, mas a mulher é a glória do varão. Porque o varão não provém da mulher, mas a mulher do varão. Porque também o varão não foi criado por casa da mulher, mas a mulher por causa do varão (Coríntios, 11: 7-9).
Em pelo menos dois momentos desses versículos podemos perceber uma hierarquização. Isso está bem claro quando Paulo diz que a mulher foi criada para o homem, ou seja, para servi-lo. No entanto, queremos chamar atenção par a ideia geral desses versículos, que aparece ligeiramente implícita. O que esses versículos querem dizer é que para a mulher estar no mesmo patamar do homem, ela deve ter sua cabeça coberta. Dessa maneira ela pode alcançar, dentro da igreja, uma situação de igualdade com o sexo oposto. Aqui o véu não tem o papel de castidade ou pureza, mas o de igualá-la ao sexo oposto.
Em suma, a Bíblia ensina que a mulher está em um patamar inferior, tanto no Velho Testamento, quanto no Novo Testamento. Em toda a Bíblia há sinais que mostram isso. Por um lado, essas histórias mostram mulheres com características, às vezes opostas, mas que levam o homem ao mesmo destino, à sua ruína. Por isso, a interpretação que mais nos parece plausível é que esses textos indicam que o homem deve guiar a mulher, deve estar à sua frente porque não é fraco e é naturalmente superior.
5.Conclusão
Conforme apresentamos anteriormente a nossa sociedade vive sob uma ideologia que vê a mulher como um ser inferior, fraco, traidor, podendo gerar grandes prejuízos aos homens e, por isso, devem ser guiadas por um ser superior, o homem.
A nosso ver a doutrina cristã contribui grandemente para que os lares brasileiros pautem suas relações na desigualdade. Com isso, não queremos atacar qualquer religião, apenas sugerir que o livro sagrado usado pelos cristãos está impregnado por passagens com conteúdo de “superiorização” do homem. E mesmo que muitos não percebam, essas histórias e esses ensinamentos são capazes de formar opinião, de moldar comportamentos. Enfim, de compor uma sociedade baseada na dominação masculina.
Vimos que essas personagens bíblicas, como Eva, Jezabel e Dalila, tinham algo em comum, influenciaram seus maridos e isso os desgraçou, segundo a Bíblia. Eva, por exemplo, foi fraca e desprovida de saber já que não soube julgar que a intenção da serpente era fazê-los desobedecer a Deus; Jezabel foi poderosa e isso fez mal ao povo israelita e até ao seu marido, que passou a ser o rei de Israel que mais desagradou Deus; Dalila foi traiçoeira, influenciou Sansão que revelou a origem de seu poder e isso fez com que ele fosse preso pelos filisteus; já a mulher de Ló, embora não tenha tentado estabelecer qualquer controle sobre o marido, foi fraca a ponto de desobedecer as ordens recebidas.
Até então, a sociedade como um todo tem alimentado esse ciclo de superioridade masculina todos os dias porque acreditam que esse é melhor modelo de mulher. Acreditam ainda, que esse seja o modelo de mulher que mais agrade a Deus. Uma mulher que ceda às vontade do marido, que obedeça e se cale frente aos momentos de fúria e sua externalização sobre ela e seus filhos. Enfim, deve obedecer a todas as ordens do seu guia. Essas mulheres se vêem assim, não é só a sociedade. Ela absorve os símbolos da dominação masculina e passa a se comportar como uma “santa”, ou seja, não contrariando o marido, ouvindo seus conselhos porque ele é seu superior e maior sabedor. É assim, com esse modelo de mulher, que homens podem continuar a usar sua força para intimidar ou machucar, e continuar sendo o dominador.
Portanto, vimos os valores e comportamentos cristãos que são impostos à nossa sociedade, muitas vezes de forma invisível, em outras escancaradas. É assim que as mulheres têm vivido ao longo da nossa história. Mas há como superar esse habitus de dominação masculina, criando novas práticas sociais, como defende Bourdieu. Essas novas práticas sociais estão pautadas na igualdade dos sexos e é a nossa proposta para a criação de um novo habitus. Só assim seremos capazes de entender o dinamismo da História e formar uma sociedade que seja capaz de superar antigas práticas sociais baseadas na discriminação e na desigualdade de sexos, de raça, de gênero, etc. Porém, esse trabalho deve ser em conjunto para ser eficiente.
E aí está! Depois de reconhecermos um dos instrumentos que reforçam a ideia de dominação masculina e entendermos que combatê-lo não se trata de um trabalho individualizado, somos capazes de mudar e deixar de lado o “véu” da desigualdade como parâmetro para a todos os tipos de relação social.
Referências
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[1] Para saber mais sobre a mulher como um ser cúmplice da violência masculina leia: CHAUÍ, Marilena. Participando do debate sobre mulher e violência. In: Várias autoras. Perspectivas Antropológicas da Mulher. nº. 4. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985.
Professora de História, formada em História pela Universidade Estadual do Paraná.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Ana Paula Alves. Para combater a violência contra as mulheres, um novo "habitus" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jan 2015, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43188/para-combater-a-violencia-contra-as-mulheres-um-novo-quot-habitus-quot. Acesso em: 23 dez 2024.
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