RESUMO: Este texto consiste em uma abordagem do instituto da representação no campo do direito privado à luz das lições de Emilio Betti. Estabelecemos, inicialmente, uma distinção entre os conceitos de representação, mandato e nunciação. Em seguida, caracterizamos hermeneuticamente o instituto da representação e extraímos das premissas assentadas uma perspectiva sobre o fenômeno da representação dos absolutamente incapazes. Mais à frente, adentramos a distinção entre representação e presentação no contexto das pessoas jurídicas. Por fim, discorremos sobre a falta de representação por abuso de poderes.
Palavras-chave: representação; Emilio Betti; núncio; mandato; presentação; abuso de poderes.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo, assumindo como matriz teórica o pensamento de Emilio Betti, pretende estabelecer uma caracterização geral do instituto da representação no direito privado. Utilizar-se-á, para o cumprimento de tal desiderato, um procedimento de distinções conceituais, o que possibilitará uma diferenciação entre o instituto da representação e figuras próximas, como as da nunciação e do mandato. Fixadas tais premissas, serão tecidos comentários sobre situações-tipo peculiares, como a presentação da pessoa jurídica, a representação dos absolutamente incapazes e a falta de representação por abuso de poderes.
2 REPRESENTAÇÃO: DISTINÇÕES CONCEITUAIS E SITUAÇÕES-TIPO PECULIARES
Emilio Betti coteja duas modalidades distintas do que ele chama de substituição no contexto da manifestação e transmissão da vontade formadora de um negócio jurídico: o núncio e o representante.
A figura do núncio não está relacionada à totalidade da formação negocial, mas apenas ao seu elemento de forma, necessário, mas não suficiente, para a configuração estrutural do negócio jurídico. O núncio exerce a função de um mensageiro, um intermediário que transmite a outrem o regulamento de interesses concebido e querido pela parte do negócio que o designa para tal mister. Tal colaboração está subordinada ao interessado e tem como elemento fundamental uma rigorosa coincidência com a consciência e a vontade por ele indicadas quando da designação do mensageiro para o exercício da função. Trata-se de tarefa simples, na qual o núncio não tem qualquer liberdade de apreciação acerca da oportunidade e dos termos de celebração do negócio (BETTI, 2008, p. 779-81).
A representação, segunda figura de substituição trabalhada por Betti (2008, p. 779 e ss.), caracteriza-se por uma atuação do substituto perante terceiro em que o dominus é substituído em seu querer, cabendo ao representante a manifestação da vontade na formação do negócio de interesse do representado. O substituto age em nome alheio, e não em seu próprio nome, mas não se restringe a um simples órgão de transmissão da vontade do dominus, caso do núncio. Em outras palavras, o núncio, como mero mensageiro, não pode inovar, limitando-se à função de circular mensagens entre as partes do negócio, cujos elementos são pré-determinados pelo substituído; enquanto o representante tem poder de determinação referente à forma de estruturação do negócio, salvo em relação a pontos que tenham sido especificamente pré-determinados pelo representado. Na nunciação, a pré-determinação é total; na representação, a pré-determinação é exceção.
Faz-se essencial a diferenciação entre as noções de representação e mandato. Como bem explica Betti, nem todo contrato de mandato vem acompanhado pelas atribuições de poderes representativos ao mandatário, ainda que esta seja a hipótese mais comum. No mandato sem representação, o mandatário assume o dever de realizar negociações por conta do mandante, circunstância na qual as negociações não vinculam a esfera jurídica do mandatário, já que este não tem autorização para vincular o mandante juridicamente perante terceiro. Nesse caso, há duas relações jurídicas contratuais: 1) o contrato de mandato; e 2) o contrato entre o mandatário, em nome próprio, e um terceiro, que está ciente da atuação da contraparte por conta de um mandante (tal situação é diferenciada por Betti em relação à noção de interposição gestora, em que o mandatário não informa ao terceiro sobre a realização de negócios por conta do mandante, o qual permanece “oculto”). Podemos dizer, pois, que a essencialidade do mandato reside na contratação da prática de atos jurídicos por um sujeito, o mandatário, por conta de outrem, o mandante, seja a referida prestação adimplida pela via de uma contratação em nome próprio (mandato sem representação), seja por meio de uma contratação em nome do mandante (mandato com representação).
Nos mandatos com representação, o mandatário manifesta perante terceiro a vontade do mandante, anteriormente veiculada por este perante seu representante com maior ou menor grau de pré-determinação. Este ato de representar seria uma espécie de (re)vivência da vontade do mandante pelo mandatário (especialmente, mas não apenas, no caso das procurações outorgadas com fins genéricos), donde o termo “representação” – uma apresentação de uma vontade já presentada. A vontade transmitida não é mero ato mecânico, como no caso do núncio, mas, sim, uma reconstrução inexoravelmente valorativa da vontade do mandante, capaz de vinculá-lo juridicamente perante o terceiro. Ora, toda interpretação, inclusive a jurídica, pressupõe a realização, a partir da contemplação do substrato material da forma representativa (texto), de uma inversão do processo criativo, na qual os intérpretes devem exercer um papel de atualização da intenção originária. Tal tarefa não pode desrespeitar o propósito original do criador da obra, mas o objeto também não deve ser compreendido na parcialidade de seu criador (BETTI, 2008, p. LXVII e ss.)
Aqui, até Gadamer (1998, p. 229), rival de Betti no que diz respeito a suas concepções hermenêuticas, poderia vir em auxílio. O filósofo alemão realiza uma revisão da concepção de representação cunhada por Leibniz, por quem o conceito é empregado matematicamente em sua teoria metafísica da repraesentatio universi existente em cada mônada. A mudança subjetiva natural do conceito de representação como Vorstellung origina-se na subjetivação do conceito de “ideia” no século XVII. Representação, nos termos de Leibniz, é a expressão matemática de algo, a referência univocamente subordinada a alguma outra coisa. Gadamer critica tal postura representacionista, estranhando que Leibniz não se tenha deixado influenciar pela concepção sacral-jurídica de representação (Vertretung) cunhada na tradição do direito canônico a partir da doutrina cristã da incarnação e posteriormente transposta para o direito laico. Desenvolvida por Nicolau de Cusa, a representação em sentido jurídico, segundo Gadamer, não pode ser vista como cópia, tendo como elemento essencial a circunstância de o representante estar a exercer os direitos da persona repraesentata de forma dependente em relação a esta. Não se trata ainda, no entanto, de Darstellung, no sentido da representação do divino na forma litúrgica durante o século XIV. A partir do século XVII, Darstellung torna-se representação performática, o que abre espaço para Gadamer fugir da distinção entre as percepções sensível e conceitual e sua concepção de representação como cópia (GUY, 2010, p. 31-4). Ora, o termo “representação” em Gadamer (1998, p. 255-6) só faz sentido caso seja compreendido como uma apresentação sempre renovada da determinação original, e não como um evento da experiência que se dá no momento da criação textual e é meramente repetido na mente do intérprete. A representação, pois, não significa a substituição, como mero replicar, de uma realidade previamente existente. O filósofo alemão, então, revisa o que se entende por “mímesis”, como explica Oñate y Zubia (2005, p. 515):
Estamos acostumados a traduzir mímesis por “imitação” e não por “representação” ou, menos ainda, por “apresentação”; essa acepção é mais precisa pois reflete que a realidade apresentada [...] é, ao mesmo tempo, reconhecida e construída, descoberta e inventada, e que a mímesis [...] incorpora uma referência produtiva, interpretativa; portanto cria fazendo surgir algo da realidade que antes não era visível, desse modo abre sua essência. A mímesis, assim entendida, é reprodução da essência; trata-se de um acontecimento ontológico, entanto não copia o que há, mas antes faz ser.
Diante do exposto, podemos indagar: e no caso da representação dos absolutamente incapazes? O absolutamente incapaz não é faticamente desprovido de vontade. O que ocorre é uma invalidação de declarações de vontade de pessoas físicas com o fulcro de preservar supostos valores relacionados à ordem pública e ao bem-estar social e individual, inclusive o do próprio incapaz. De tal forma, a representação dos incapazes nada mais é do que uma revivência de sua vontade, como no caso de um pai que, conhecendo bem seu filho de 14 anos, poderia manifestar fidedignamente seus desejos. E nos casos em que o incapaz o for por razões que o tenham inabilitado por completo? Ainda assim, poderíamos dizer que o representante (curador) deve fazer aquilo que seria o melhor para o representado e que, razoavelmente, ele faria se manifestasse sua vontade. Nesse caso seria cabível, inclusive, o recurso ao histórico de vida do representado e a sua família, de maneira a proporcionar a máxima aproximação em relação à vontade do incapaz – ainda que, obviamente, por estarmos a tratar de um ato valorativo de representação, ou seja, de revivência, nunca seja possível alcançar de forma plena a vontade do representado.
De forma paradoxal, o pensamento ficcional da ciência jurídica moderna criou o conceito de capacidade de fato para designar a falta de autodeterminação de certas pessoas físicas, mas também personificou estruturas organizacionais inanimadas, às quais denominou pessoas jurídicas. Resta, então, a abordagem da substituição de tais entes em suas manifestações de vontade, o que exige a diferenciação entre duas situações. A primeira delas diz respeito à manifestação de um órgão da pessoa jurídica, como no caso de uma assembléia geral de sociedade por ações. Nesse caso, como a assembleia é um órgão interno da pessoa jurídica, desprovido de personalidade jurídica própria, a manifestação do órgão em nome do ente personalizado é chamada por Pontes de Miranda de “presentação”, como podemos depreender do seguinte excerto:
Quanto ao exercício de presentação da pessoa jurídica (= como órgão da vida exterior), a sua posição é a de órgão — não a de representante legal, ou voluntário. O seu ato, como órgão, é ato da pessoa jurídica. A ele hão de se dirigir os atos jurídicos que se devem dirigir à pessoa jurídica. Os atos jurídicos que a pessoa jurídica haja de praticar pratica-os ele, como atos da pessoa jurídica. […]. O órgão da pessoa jurídica não é representante legal. A pessoa jurídica não é incapaz. O poder de representação, que ele tem, provém da capacidade mesma da pessoa jurídica; por isso mesmo, é dentro e segundo o que se determinou no ato constitutivo, ou nas deliberações posteriores. (MIRANDA, 1974, t.1, p. 286-7)
Presentar, pois, significa tornar presente, e, no caso de uma pessoa jurídica, a despeito da ficção tecnicista de sua titularidade de vontade jurídica, o órgão que veicula a declaração não torna presente uma vontade anteriormente presentada, pois não podemos falar que haja aí uma distinção entre dois sujeitos de direito (BETTI, 2008, p. 797-8). Diferentemente, a situação da pessoa física responsável pela manifestação atribuída à esfera jurídica do ente ideal diz respeito ao instituto da representação, dada a existência de dois sujeitos dotados de personalidade jurídica: a pessoa física representante e a pessoa jurídica representada (o administrador e a sociedade empresária, por exemplo). O administrador, de forma distinta do que ocorre com um órgão de uma pessoa jurídica, não pode ser tratado como uma longa manus, uma parte incídivel de seu organismo. Conforme explica Betti (2008, p. 817):
[…] é de negar que ela possa se qualificar como “representação orgânica” de caráter necessário, visto ter a sua fonte na concessão de poderes por parte da assembléia dos interessados. Como pessoa, o administrador é um sujeito perfeitamente distinto do ente, ainda que as funções de que esteja investido sejam, dentro do ente, não ocasionais, mas estáveis. Existe, portanto, aquela suficiente separação entre o sujeito atuante e o sujeito interessado, que permite qualificar a ação do primeiro no quadro da representação.
Por fim, precisamos abordar as situações em que há ilegitimidade do conteúdo do ato, de maneira a configurar uma representação sem poderes, definida por Betti nos seguintes termos:
Pode haver representação sem poderes quando quem age em representação excede os limites (de conteúdo) do poder conferido, ou usa do poder em oposição com o fim de tutela do interesse alheio, em vista do qual ele lhe foi atribuído, estando em conflito de interesses com o representado (conflito que também pode haver no caso de dupla representação), ou age para além dos limites de tempo, tendo já cessado a representação [...], ou se comporta como representante sem nunca o ter sido (falsus procurator), ou, finalmente, no caso de representação necessária, age sem observar as necessárias formas de habilitação (autorizações etc.). Conservam-se distintos a falta e o abuso do poder de representação.
Trata-se, nos termos de Betti, de uma dissociação entre o poder de autonomia e o interesse a regular, com a não-coincidência entre o sujeito deste interesse e o investido naquele poder. É o caso de insubordinação funcional e teleológica ao interesse do representado, no qual deveriam ser buscados os limites e diretivas respectivos. O que assegura concretamente aos administradores a realização da destinação do ato é a legitimação do representante para agir em nome do interessado, justamente o elemento que vem a faltar em caso de abuso (BETTI, 2008, p. 829-830). Obviamente, a determinação do interesse do representado pressupõe, para fins de estabelecimento da adequada legitimação, o abandono do dogma da vontade.
A falta de representação por abuso de poderes pode ser caracterizada como o
exercício da representação de um modo formalmente respeitador dos limites do conferimento, mas substancialmente contrário à destinação da representação, que é a tutela do interesse do representado. A teoria do abuso da representação refere-se à hipótese, adiante referida, de um conflito de interesses entre o representante e o representado. O representante exerce o seu poder de autonomia em sentido contrastante com as razões pelas quais foi investido na representação, quando, intervertendo-o, para si ou para outros, pratica, em nome do representado, negócios que aproveitem diretamente a ele mesmo ou a um terceiro: o que, na valoração do direito, exclui e paralisa a legitimação para a representação, que, na sua figura normal, tem caráter essencialmente derivado e subordinado (BETTI, 832-3)
Há abuso de representação quando o representante ou um terceiro tira vantagem, não apenas econômica (e, por isso, imediata), mas também jurídica, do negócio celebrado, ou seja, quando do negócio celebrado derivam imediatamente direitos titularizados pelo representante. Trata-se de uma desconexão entre o input, como autorização do representado para a tomada de decisões, e o output, como exigência de correção de um resultado consentâneo com o propósito do representado.
3 CONCLUSÃO
Apresentamos as conclusões deste texto, formuladas à luz do pensamento de Emilio Betti, de forma itemizada:
1) O núncio exerce a função de um mensageiro que transmite a terceiro o regulamento de interesses querido pela parte do negócio que lhe atribui tal função, motivo pelo qual não tem liberdade de apreciação acerca da oportunidade e dos termos de celebração do negócio; enquanto a representação consiste em uma atuação do representante perante terceiro em nome do representado, de maneira a titularizar um poder de determinação referente à forma de estruturação do negócio, salvo em relação a pontos que tenham sido especificamente pré-determinados pelo representado.
2) A essencialidade do mandato reside na contratação da prática de atos jurídicos por um sujeito, o mandatário, por conta de outrem, o mandante, seja a referida prestação adimplida pela via de uma contratação em nome próprio (mandato sem representação), seja por meio de uma contratação em nome do mandante (mandato com representação).
3) Nos mandatos com representação, o mandatário manifesta perante terceiro a vontade do mandante, anteriormente veiculada por este perante seu representante com maior ou menor grau de pré-determinação. Este ato de representar é uma (re)vivência da vontade do mandante pelo mandatário.
4) O absolutamente incapaz não é faticamente desprovido de vontade, mas está sujeito a uma invalidação de suas declarações de vontade com o fulcro de preservar supostos valores relacionados à ordem pública e ao bem-estar social e individual, inclusive o do próprio incapaz. A representação dos incapazes é uma revivência de sua vontade, o que, no caso inabilitação completa, deve ser realizado de acordo com o que seria o melhor para o representado e que, razoavelmente, ele faria se manifestasse sua vontade.
5) A presentação da pessoa jurídica é praticada por um órgão seu, o qual, ao veicular a declaração respectiva, não torna presente uma vontade anteriormente presentada, pois não podemos falar que haja aí uma distinção entre dois sujeitos de direito. Diferentemente, a pessoa física responsável pela manifestação atribuída à esfera jurídica da pessoa jurídica atua como representante, dada a existência de dois sujeitos dotados de personalidade jurídica.
6) A representação sem poderes consiste em uma dissociação entre o poder de autonomia e o interesse a regular, com a não-coincidência entre o sujeito deste interesse e o investido naquele poder. A modalidade específica “representação por abuso de poderes” acontece quando o representante ou um terceiro tira vantagem, não apenas econômica, mas também jurídica, do negócio celebrado, o que configura uma incompatibilidade entre o input, como autorização do representado para a tomada de decisões, e o output, como exigência de correção de um resultado consentâneo com o propósito do representado.
REFERÊNCIAS
BETTI, Emilio. Interpretação das leis e dos atos jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
______. Teoria do negócio jurídico. Servanda, 2008.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Trad. Flávio P.Meurer. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
GUY, Maria Eugenia. Estou de altos! As possibilidades do jogo para a história. Rio de
Janeiro: Dissertação de mestrado da Faculdade de Direito da PUC-RJ, 2010.
OÑATE Y ZUBIA, Teresa (et. al). Hans-Georg Gadamer: ontologia estética y hermenêutica. Dikinson SL, 2005.
Advogado graduado pela UFBa, Doutor em Ciências Sociais pela UFBa, Doutorando em Direito Público pela UFBa, Mestre em Direito Público pela UFBA, especialista em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito pela PUC-MG, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP, professor de Hermenêutica/Filosofia do Direito/Argumentação da Faculdade Baiana de Direito, Aprovado em primeiro lugar em concurso para professor adjunto de Teoria Política e Instituições Políticas da UFBa.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MIGUEL, Daniel Oitaven Pamponet. O instituto da representação no direito privado à luz do pensamento de Emilio Betti Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jan 2015, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43189/o-instituto-da-representacao-no-direito-privado-a-luz-do-pensamento-de-emilio-betti. Acesso em: 23 dez 2024.
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