Conforme dispõe o art. 610 do Código de Processo Penal, nos recursos em sentido estrito e nas apelações, os autos irão imediatamente com vista ao Ministério Público pelo prazo de cinco dias e, em seguida, passarão, por igual prazo, ao relator, que pedirá designação de dia para o julgamento.
Tal dispositivo, após a Constituição Federal que consagrou o Sistema Acusatório e o Postulado do Devido Processo Legal (e como consectário o contraditório), não foi recepcionado pela nova ordem constitucional.
Por óbvio, não há devido processo legal sem o contraditório, que vem a ser, em linhas gerais, a garantia de que para toda ação haja uma correspondente reação, garantindo-se, assim, a plena igualdade de oportunidades processuais. A respeito do contraditório, Willis Santiago Guerra Filho afirma:
“Daí podermos afirmar que não há processo sem respeito efetivo do contraditório, o que nos faz associar o princípio a um princípio informativo, precisamente aquele político, que garante a plenitude do acesso ao Judiciário (cf. Nery Jr., 1995, p. 25). Importante, também, é perceber no princípio do contraditório mais do que um princípio (objetivo) de organização do processo, judicial ou administrativo – e, logo, um princípio de organização de um instrumento de atuação do Estado, ou seja, um princípio de organização do Estado, um direito. Trata-se de um verdadeiro direito fundamental processual, donde se poder falar, com propriedade em direito ao contraditório, ou Anspruch auf rechliches Gehör, como fazem os alemães.” (grifos no original).[1]
O contraditório, por exemplo, obriga que a defesa fale sempre depois da acusação. Assim, no Processo Penal as testemunhas arroladas na peça acusatória são inquiridas em primeiro lugar, as alegações finais do réu são oferecidas também anteriormente as do acusador, e assim por diante...
Segundo Étienne Vergès, a Corte Européia dos Direitos do Homem (CEDH) “en donne une définition synthétique en considérant que ce principe ´implique la faculté, pour les parties à un procés penal ou civil, de prendre connaissance de toutes pièces ou observations présentées au juge, même par un magistrat indépendant, en vue d´influencer sa décision et de la discuter` (CEDH, 20 févr. 1996, Vermeulen c/ Belgique, D. 1997, som. com. P. 208).”[2]
Ora, como se sabe, na segunda instância o Ministério Público, por intermédio de um Procurador de Justiça, exara um parecer escrito antes do respectivo processo criminal ser encaminhado para julgamento. É um privilégio que parece ferir alguns princípios basilares e algumas regras orientadoras do processo penal, como tentaremos mostrar a seguir.
Com efeito, sempre nos pareceu que este pronunciamento do Procurador de Justiça na segunda instância, ainda que na condição de custos legis, soava estranho, mesmo porque fiscal da lei também é o Promotor de Justiça atuante junto à primeira instância e, no entanto, nunca se dispensou a ouvida da defesa... Para nós, este privilégio fere o contraditório (ação versus reação), a isonomia (paridade de armas), o devido processo legal (a defesa fala por último) e a ampla defesa (direito do acusado de ser informado também por último).
Relembremos que “não se pode interpretar a Constituição conforme a lei ordinária (gesetzeskonformen Verfassunsinterpretation). O contrário é que se faz.”[3]
A propósito, Frederico Marques:
“Bem de ver é, porém, que na Justiça criminal, se apresenta algo esdrúxula essa função consultiva do procurador-geral, uma vez que o Ministério Público está constituído, precipuamente, como órgão da ação penal e da pretensão punitiva do Estado. Além disso, não se compadece muito com a estrutura contraditória do processo penal pátrio, e com as garantias de defesa plena do réu, que fale em último lugar um órgão investido de funções nitidamente persecutórias. Daí se nos afigurar errônea e infeliz a disposição contida no art. 610 do CPP, sobre a abertura de vista ao procurador-geral.”[4]
Vejamos agora Tourinho Filho:
“Mal saídos de uma fatigante atividade combativa, assumem função completamente imparcial, própria dos fiscais da lei e, muitas vezes, com várias e honrosas exceções, o custos legis é traído pelo Acusador, quebrando, assim, uma regra decorrente do devido processo legal, segundo a qual a Defesa fala por último... Ademais, o Procurador de Justiça, membro que é do Ministério Público, não pode ficar eqüidistante das partes. Entranhada e psicologicamente tem laços com uma delas. É difícil o corte desse cordão umbilical. E, para evitar essas traições, a nosso ver, deveria o Ministério Público, na segunda instância, limitar-se à análise dos processos sob o aspecto formal, deixando a apreciação do mérito aos Tribunais.”[5]
Então, pergunta-se: “no processo penal, quando o processo atinge o grau recursal qual das partes fala por último? O réu ou o Ministério Público? Os arts. 610 e 613 do Código de Processo Penal nos dão a resposta: o Ministério Público manifesta-se depois da defesa e, ordinariamente, a defesa sequer tem vista do que foi oficiado pelo MP – a não ser que requeira vista dos autos e se lhe for concedida. Alguns autores fundamentam tais incompreensíveis dispositivos legais com a função de fiscal da lei que o MP desempenharia nos recursos criminais. Ora, não se pode confundir a função de parte com a de fiscal da lei. No processo criminal por ação de iniciativa pública é o MP, uno e indivisível, quem oferece denúncia; é ele quem postula a aplicação da sanção penal; e é ele quem, mesmo em grau de recurso, tem legitimidade para sustentar oralmente o recurso do promotor, visando, até, à majoração da pena. Então, não se pode falar que o mesmo órgão publico, o mesmo órgão do Estado, possa ser, ao mesmo tempo, fiscal da lei e parte, ao ponto de, na instância recursal, desaparecer a parte, permanecendo apenas o fiscal da lei, em uma estranha ação penal sem autor.”[6]
Veja-se este recente julgado do Superior Tribunal de Justiça:
“Ministério Público. Atuação. Parte. A Turma, por maioria, concedeu a ordem para anular o processo a partir do julgamento, por entender que, na hipótese, o Ministério Público, além de atuar como fiscal da lei, era também parte, e como tal, à luz da Constituição vigente, não pode proferir sustentação oral depois da defesa. (HC 18.166-SP, Rel. originário Min. Fernando Gonçalves, Rel. para o acórdão Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 19/02/2002).
Em decisões posteriores, porém, o mesmo Superior Tribunal de Justiça entendeu de forma diferente:
“HABEAS CORPUS N.º 41.667-SP - Rel.: Min. Gilson Dipp/5.ª Turma - R.P/Acórdão: Min. Laurita Vaz - EMENTA - Habeas corpus. Processual penal. Crimes contra o sistema financeiro. Denúncia rejeitada. Recurso em sentido estrito. Provimento. Sustentação oral perante o tribunal. Ordem. art. 610, parágrafo único, e art. 618, ambos do CPP. Órgão ministerial, na função precípua de custus legis fala por último. Ausência de ofensa à ampla defesa e ao contraditório. Prejuízo indemonstrado. 1. A ordem estabelecida pela lei processual para a sustentação oral em sede de recurso em sentido estrito, diferentemente do que estatui o art. 500 do CPP, deixa o representante do Ministério Público por último. Inteligência dos arts. 610, parágrafo único, e 618, do CPP. 2. De um lado, resta claro o papel de parte do órgão ministerial que recorre, como no caso, buscando o recebimento da denúncia; de outro lado, o representante do Parquet que atua em segundo grau e nas instâncias extraordinárias exerce o papel precípuo de custos legis. E, inclusive, não está ele vinculado às razões recursais, podendo tranqüilamente, por ocasião do julgamento, opinar em sentido diverso, em favor do réu. É o que acontece também neste Superior Tribunal de Justiça, em que o Regimento Interno dispõe no seu art. 159, § 2.º, que, nessa condição de fiscal da lei, o Ministério Público Federal “fala após o recorrente e o recorrido”. 3. Ainda que assim não fosse, “ne pas de nulitté sans grief”, ou seja, não há nulidade sem prejuízo (art. 563, CPP), que deve ser demonstrado. O simples fato de ter sido dado provimento ao recurso ministerial não implica, necessariamente, ter havido prejuízo à defesa. É evidente que a decisão lhe foi desfavorável, mas o prejuízo a ser demonstrado para a nulificação do ato deve estar ligado aos fundamentos utilizados como razão de decidir, ou quaisquer outras circunstâncias que, sem ter podido reagir a defesa, foram decisivas no resultado. Seria o caso, por exemplo, de demonstrar o réu que sua defesa ficou prejudicada porque tal ou qual argumento deduzido pela acusação não pôde ser, na oportunidade, contraditado. Se não houve qualquer relevância na ordem de apresentação dos respectivos argumentos, tendo sido todos contrapostos, não há falar em ofensa ao contraditório ou à ampla defesa. Cumpre destacar, nesse ponto, que a impetração se limitou a argüir a nulidade, sem demonstrar efetivo prejuízo. Precedente. 4. Ordem denegada.” (STJ/DJU de 19/12/05, pág. 447).
“Quando ausente a hipótese de competência originária ou na falta de específica previsão legal em sentido contrário, a função do MP que atua em segundo grau é de custos legis. Dessarte, após sua manifestação, não há contraditório, pois o parecer não possui natureza de ato de parte, não estando sequer vinculado às contrarrazões ofertadas pelo promotor de Justiça, esse sim parte na ação penal. Desse modo, não há ofensa aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal se não há intimação da defesa para manifestar-se acerca do parecer elaborado pelo Parquet. Anote-se que o CPP não prevê qualquer intimação da defesa quanto ao parecer ministerial (art. 610 daquele código), o que reforça ainda mais o caráter imparcial da função exercida pela Procuradoria Geral de Justiça nessa hipótese. Ademais, no caso em tela, a Turma Recursal sequer acolheu o parecer, pois deu provimento parcial ao apelo para diminuir a pena, enquanto o prévio parecer escrito sugeria o não provimento do apelo. Daí evidenciada a ausência de prejuízo que justifique a anulação do ato, pois se mostra o julgamento favorável ao réu. Precedentes citados do STF: MC na ADI 758, DJ 8/4/1994; HC 81.436-MG, DJ 22/2/2002; do STJ: HC 57.019-SE, DJe 3/3/2008; HC 58.587-RJ, DJ 20/11/2006; HC 97.217-GO, DJe 29/9/2008, e RHC 12.720-BA, DJ 18/8/2003.” (HC 134.275-GO, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 18/8/2009).
“O parecer do Ministério Público oferecido em segundo grau de jurisdição, quando este está atuando somente como fiscal da lei, e não como parte na ação, não dá direito a contraditório. A decisão foi adotada pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, durante julgamento de habeas corpus impetrado por homem condenado por furto em Minas Gerais. A defesa do acusado, ao interpor o recurso, tentou levantar a nulidade do julgamento, alegando que o Ministério Público estadual não poderia oferecer parecer, em segunda instância, sob pena de nulidade, por violação ao contraditório. O tribunal de origem manteve a condenação do acusado, por entender legal a manifestação do Ministério Público como custos legis no âmbito recursal, por meio de parecer, já que essa atuação está prevista no artigo 610, caput, do Código de Processo Penal (CPP). O dispositivo legal assevera que, nos recursos em sentido estrito – à exceção do habeas corpus – e nas apelações interpostas das sentenças em processo de contravenção ou de crime punível com detenção, os autos serão remetidos de imediato ao procurador-geral pelo prazo de cinco dias e, em seguida, passarão por igual prazo ao relator, que pedirá a designação de dia para julgamento. A defesa impetrou habeas corpus no STJ, insistindo na nulidade do processo a partir da manifestação do MP em segundo grau, porque, de acordo com suas alegações, o parecer do MP durante a tramitação do recurso em segunda instância, ainda que na condição de custos legis, violaria o contraditório, tendo em vista a parcialidade do órgão em matéria penal. A relatora do habeas corpus, ministra Maria Thereza de Assis Moura, entendeu que a emissão de parecer pelo MP como custos legis em segundo grau de jurisdição não dá ensejo a contraditório, não causando nulidade a falta de manifestação da defesa, já que, nesses casos, o MP atua como fiscal da lei e não como parte. “O artigo 610 do Código de Processo Penal é expresso em prever a atuação do Ministério Público, não havendo falar em nulidade, por violação ao contraditório, pois não atua como parte, mas como fiscal da lei”, concluiu. A ministra mencionou em seu voto que o MP “ora atua [...] propondo, privativamente, a ação penal pública, ora atua como fiscal e, neste mister, não faz oposição à defesa, ainda que, eventualmente, traga posição antagônica ao réu no processo”. A relatora votou pela denegação da ordem, citando em seu voto diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do próprio STJ no mesmo sentido. A decisão da Sexta Turma foi unânime.” Fonte: STJ.
Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal concedeu Habeas Corpus (HC 87926) e anulou o julgamento de um recurso, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, do Ministério Público contra um ex-diretor do Banco Mercantil de São Paulo. Vejamos um trecho do voto do relator, Ministro Cezar Peluso:
“(...) A questão última desta causa está em saber se, em sessão de julgamento de recurso exclusivo da acusação, pode o representante do Ministério Público manifestar-se somente depois da sustentação oral da defesa. Penso que não.2. Ainda que invoque a qualidade de custos legis, o representante do Ministério Público deve sempre pronunciar-se, na sessão de julgamento de recurso, antes da sustentação oral da defesa. As partes têm direito à estrita observância do procedimento tipificado na lei, como concretização do princípio do devido processo legal, a cujo âmbito pertencem as garantias específicas do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da Constituição da República).O exercício do contraditório deve, assim, permear todo o processo, garantindo sempre, como ônus, a possibilidade de manifestações oportunas e eficazes da defesa, desde a de arrazoar e contra-arrazoar recursos, até a de se fazer ouvir no próprio julgamento destes.Em recurso em sentido estrito, interposto contra decisão de rejeição da denúncia, o denunciado, que, como é óbvio, ainda não foi citado, deve ter assegurado o exercício do ônus de se manifestar nos autos, pois seu interesse primordial reside em não ser réu, ou seja, em não lhe ser instaurada ação penal. Foi tal entendimento que levou esta Casa a editar a súmula 707, a qual enuncia que “constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo”.Estou em que fere, igualmente, as garantias da defesa todo expediente que impeça o acusado de, por meio do defensor, usar da palavra por último, em sustentação oral, sobretudo nos casos de julgamento de recurso exclusivo da acusação. Invocar, para negá-lo, a qualidade de custos legis do Ministério Público perante os tribunais, em sede recursal, parece-me caracterizar um desses artifícios linguísticos que tendem a fraudar as garantias essenciais a sistema penal verdadeiramente acusatório ou de partes.Em excelente estudo sobre o tema, o ex-Procurador-Geral do Distrito Federal, ROGÉRIO SCHIETTI, anota:“É, pois, superficial e simplista a distinção entre Ministério Público agente (parte) e Ministério Público consulente (fiscal), eis que, na ação penal condenatória, por mais que uma dessas funções se esconda por trás da roupagem verbal ou escrita da manifestação do membro do Parquet, estará ela presente”.[1]De fato, na ação penal de iniciativa pública, condicionada ou não, o Ministério Público é parte, se não em sentido material – porque o poder-dever de acusar e punir não é dele, mas do Estado[2] —, é-o, ao menos formalmente, parte acusadora:“O Ministério Público atua no pólo ativo de toda ação penal por ele iniciada, formulando a acusação, recolhendo provas e promovendo a ação penal rumo à obtenção de uma decisão judicial. Logo, não é de negar-se-lhe a qualidade de ‘parte’ na relação processual penal. [...] O Ministério Público, por conseguinte, é uma parte diferenciada, sui generis, e em virtude dessa peculiaridade em seu modo de agir diz-se que o Ministério Público é ‘parte formal’, ‘parte instrumental’, ou mesmo, paradoxalmente, ‘parte imparcial’”.[3]Desse modo, entendo difícil, senão ilógico, cindir a atuação do Ministério Público no campo recursal, em processo-crime: não há excogitar que, em primeira instância, seu representante atue apenas como parte formal e, em grau de recurso — que, frise-se, constitui mera fase do mesmo processo —, se dispa dessa função para entrar a agir como simples fiscal da lei.Órgão uno e indivisível, na dicção do art. 127, § 1o, da Constituição da República, não há como admitir que o Ministério Público opere tão-só como custos legis no curso de processo onde, em fase diversa, já tenha funcionado, mediante outro órgão, como encarregado da acusação, sob pena de se violentar a própria sintaxe acusatória do processo penal. O conteúdo da opinião legal, de fundo, exposto no parecer ou na sustentação oral, é de pouco relevo neste tema. Ou seja, ainda que, no mérito, o Ministério Público postule a absolvição do acusado, continua sempre órgão incumbido da acusação e não deixa de agir ou de poder agir como parte que é. Conclusão diversa levaria à concepção de processo de parte única parte, o acusado, o que parece absurdo diante de um sistema garantista, acusatório, agônico, marcado pela garantia de contraditoriedade.[4]Permitir, pois, que o representante do Ministério Público promova sustentação oral depois da defesa, ainda mais no caso de ser ele o recorrente, comprometeria o pleno exercício do contraditório, que pressupõe o direito de a defesa falar por último, a fim de poder, querendo, reagir à opinião do Parquet. Afinal, na lição velha e clássica de JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, contraditório é a “ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los”,[5] ou seja, ordem que implica possibilidade estrutural de realizar ações lingüísticas ou reais de contradição, a título de reação regrada a ações da outra parte.Visando, pois, a dar-lhe plena eficácia, pugna a doutrina pelo reconhecimento e garantia do direito ou poder de o acusado falar por último, notadamente nas sessões de julgamento de recursos interpostos apenas pela acusação:“Podendo ser a manifestação do Ministério Público, como parte ou fiscal da lei, ‘carga contra o réu’, já que em tese pode se colocar ao lado do colega acusador de primeira instância, é evidente, por força do contraditório, da garantia do devido processo legal e do princípio da ampla defesa, que não pode ser a última. [...] A inversão processual consagrada pela intelecção que prestigia a manifestação do Procurador (de Justiça ou da República) por último, ocasiona um sério prejuízo ao recorrido, que não pode se manifestar repelindo os argumentos eventualmente incriminadores ou mesmo para ampliar e melhor trabalhar os que lhe forem favoráveis. Nessa ordem de idéias, torna-se irrefutável a conclusão de que, sob pena de nulidade, o representante do Ministério Público em segunda instância não pode se manifestar por último quando o órgão recorrente for seu colega de primeira instância”.[6]“O acusado, independentemente da sua posição contingencial (recorrente ou recorrido) durante o processamento do recurso, deve ter sempre assegurada a palavra por último, ou, ao menos, após a intervenção oral do acusador, enquanto exteriorização concreta do princípio do favor defensionis. Isso porque, considerando-se a ação penal em sua inteireza, e não apenas em suas fases procedimentais estanques, o acusado estará sempre na posição defensiva, rebatendo a imputação que lhe foi endereçada pelo órgão de acusação, já que, sendo uma a relação processual penal, o conflito entre o direito de punir do Estado e o direito à liberdade do acusado permanece íntegro no segundo grau de jurisdição. [...] Ainda que, portanto, o acusado venha a ser o autor do recurso, continuará sendo ele o réu da ação penal, com todo o interesse em perseverar na tentativa de expor suas razões fático-jurídicas e de mostrar ao tribunal ad quem o desacerto da tese acusatória e da sentença que lhe foi desfavorável”.[7]Comungo da idéia de que, no julgamento de recursos exclusivos da acusação, o princípio do contraditório assegura o uso da palavra ao acusado, por intermédio do defensor, sempre depois da intervenção oral do Ministério Público que oficie no tribunal:“Mesmo que, gratia argumentandi, se adote o entendimento de que o Ministério Público não exerce qualquer função acusatória no juízo de segundo grau [...] ou mesmo quando se trate de ação penal privada (onde o Parquet é, aí sim, apenas fiscal da lei), o tribunal deverá conceder a palavra à defesa após a sustentação oral do Parquet”.[8]O direito de a defesa falar por último decorre, aliás, do próprio sistema normativo como se vê, sem esforço, a diversos preceitos do Código de Processo Penal. As testemunhas da acusação são ouvidas antes das arroladas pela defesa (art. 396, caput). É conferida vista dos autos ao Ministério Público e, só depois, à defesa, para requerer diligências complementares (art. 499), bem como para apresentação de alegações finais (art. 500, incs. I e III). A defesa manifesta-se depois do Ministério Público ainda quando funcione este apenas como custos legis, o que ocorre nas ações penais de conhecimento, de natureza condenatória, de iniciativa privada: determina o art. 500, § 2O, que o Ministério Público, nesses casos, tenha vista dos autos depois do querelante – e, portanto, antes do querelado. O próprio RISTF, no art. 132, § 5o, tem previsão análoga à do art. 500, § 2o, do CPP. Neste ponto, aliás, andou bem o Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao prever, no art. 470, inc. VI, que, nas ações penais onde houver recurso do Ministério Público, falará em primeiro lugar o seu representante em segunda instância.Daí, a inadmissibilidade de interpretação estrita ou dita literal do art. 610, § único, do Código de Processo Penal, no sentido de que o Ministério Público poderia, na sessão de julgamento relativo a recurso, fazer sustentação oral após a defesa, ainda quando se trate de recurso interposto pela própria acusação.Na verdade, leitura atenta do art. 610, § único, não induz sequer à conclusão de que, nele, teria o Código estabelecido alguma ordem invariável de manifestação, pois é regra que contém mera referência à necessidade de o Ministério Público manifestar-se, donde a pressuposição, esta, sim, de toda a lógica e coerência com os princípios, de que deva fazê-lo, quando menos, segundo a ordem decorrente da sua posição processual perante o recurso, senão oriunda da sua contraposição teórica à condição do réu.De igual modo merece releitura constitucional o disposto no § 2o do art. 143 do Regimento Interno do Tribunal Regional Federal da 3a Região, que dispõe que o Ministério Público Federal fará uso da palavra após o recorrente (que, no casos dos autos, é ele próprio, por meio do órgão de primeiro grau) e o recorrido.3. Ademais, é claro, aqui, o prejuízo da inversão na ordem das sustentações orais:“O parecer (ou qualquer nome que se dê à manifestação escrita ou oral do Parquet), mesmo despido de roupagem acusatória, pode, como já ressaltado linhas atrás, ser determinante do resultado desfavorável do julgamento em relação ao acusado, o que legitima este, por conseguinte, a merecer a oportunidade de exercitar o contraditório”.[9]O fato de ter sido dado provimento ao recurso do Ministério Público indica, desde logo e com clareza, gravame suficiente ao reconhecimento da nulidade, embora não se negue que defesa eficiente — aquela que, em tese, garantiria resultado absolutório ou, de outra forma, favorável ao acusado — não se confunde com defesa efetiva, esta, sim, exigível à vista da garantia constitucional.Quando, porém, se impõe ao réu que promova sustentação oral antes da intervenção do representante do Ministério Público, sobretudo no caso de ser este o recorrente, cria-se manifesta restrição à defesa, com afronta ao art. 5o, LV, da Constituição da República, o que conduz à nulidade do julgamento. A defesa aí já não é plena, como deve sê-lo, e, por sustentar a invalidez, prejuízo virtual bastaria, porque é, a rigor, impossível sua demonstração em ato, como tem a Corte reconhecido:“1. Defesa: Defensoria Pública: ausência de intimação pessoal da pauta de julgamento do recurso em sentido estrito: nulidade absoluta: precedentes. 2. Sustentação oral frustrada pela ausência de intimação da pauta de julgamento: demonstração de prejuízo: prova impossível (v.g., HC 69.142, 1ª T., 11.2.92, Pertence, RTJ 140/926). Frustrado o direito da parte à sustentação oral, nulo o julgamento, não cabendo reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada aquela oportunidade legal de defesa, outra teria sido a decisão do recurso” (RHC nº 85.443, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 13.05.2005. No mesmo sentido, cf. HC nº 83.835, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 26.08.2005).Senhora Presidente, quero fazer, aqui, um adendo a meu voto escrito, para insistir nesse ponto, que merece consideração particular.Alegou-se — e, em casos análogos, se alega sempre - não ter sido demonstrado o prejuízo da defesa. Mas o dano, esse resulta do teor mesmo do julgamento contrário ao réu e, como tal, é certo e induvidoso. Tenho relevado este fato intransponível. O prejuízo da defesa, em casos semelhantes, é sempre certo. Presumida é apenas a relação jurídico-causal entre o vício do processo e o teor gravoso do julgamento. E tal relação não pode deixar de presumir-se ante a impossibilidade absoluta de se atribuir o resultado injurioso ao réu a causa jurídica independente.Só se poderia, deveras, afastar, quando menos, esse nexo entre o defeito processual e a certeza do prejuízo da defesa, se o resultado concreto do julgamento, caso em que qualquer recurso seria absolutamente anódino e infrutífero, lhe tivesse sido favorável. Todas as vezes em que, sob argüição de vício processual na sessão de julgamento ou na decisão, a defesa saia de algum modo prejudicada, não é lícito opor argumentação baseada na hipótese de que, fosse outro o procedimento adotado, segundo a lei, o resultado teria sido o mesmo. É simplesmente impossível saber como se comportariam os julgadores, ou o prolator da decisão, se houvera sido observada a ordem legal do processo garantido pela Constituição!Noutras palavras, não há como nem por onde argumentar com o fato de que a defesa não seria capaz de demonstrar outro prejuízo, senão com resultado danoso do caso concreto, porque não se pode predizer, ou melhor, não se pode adivinhar que, se tivesse sido outra a ordem observada, o resultado do julgamento teria sido o mesmo.Por isso, esta Corte, não poucas vezes, aludiu à impossibilidade de o réu provar prejuízo, que eu nem diria mais concreto, porque não há nada mais concreto que ato de todo em todo contrário aos interesses da defesa, como é o juízo condenatório.A mim me parece, dessarte, que tal objeção, aliás acolhida no acórdão ora impugnado, não tem, com o devido respeito, consistência alguma, porque parte de lucubração, qual seja, a de que, eventualmente, o mesmo resultado seria obtido, se a defesa, no caso, por exemplo, se tivesse manifestado depois do representante do Ministério Público. Não sabemos se o seria. Podemos até imaginar que, se se repetir o julgamento, o resultado da causa será o mesmo. Mas isso fora puro exercício de imaginação, que nada tem a ver com a necessidade de resguardar a ordem do justo processo da lei (due process of law), garantido como direito fundamental pela Constituição da República. Até porque, doutro modo, se introduz este princípio incomentável: a ordem legal do processo pode ser sempre violada, desde que o resultado seja esse ou aquele! Isto é, outorga-se ao arbítrio do julgador, ao arbítrio de quem deve controlar a legalidade e a justiça do processo, o poder de decidir se deve, ou não, observar a Constituição da República, secundum eventum litis!A ordem estrita de ações na particular estrutura dialética do processo penal – primeiro acusação, depois defesa – é imperativa e independe do teor do parecer do órgão acusatório, que também vela pela correta aplicação da lei.Nesse sentido, é lapidar acórdão de lavra do Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, e cuja ementa reza:“Julgamento de apelações criminais. Inversão na ordem das sustentações orais, das quais a da acusação sucedeu à da defesa. Inobservância dos princípios constitucionais de ampla defesa e contrariedade no processo penal. Nulidade reconhecida. Recurso extraordinário conhecido e provido” (RE nº 91.661, rel. Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, DJ de 14.12.1979).No voto do Relator, lê-se:“Penso que a prerrogativa de falar por último constitui, para a defesa, manifestação natural da amplitude com que a Constituição a garante, do mesmo passo que traduz aplicação do princípio, também constitucional, da contrariedade no processo criminal”.E abro mais um parêntese, para notar que, se, por especulação, entendermos que eventual repetição do julgamento terá ou teria, no caso, por conseqüência o mesmo resultado, em razão dos dados constantes dos autos - que não examino, nem me parece estaria autorizado a fazê-lo aqui -, então é razão a mais por que se repita, agora de acordo com a Constituição!
[1] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias processuais nos recursos criminais. São Paulo: Atlas, 2002, p. 94-95.
[2] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 146-159; MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução do ministério público. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 259.
[3] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias..., op. cit., p. 80-81.
[4] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias..., op. cit., p. 89.
[5] Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 82. Grifei.
[6] TORON, Alberto Zacharias. O contraditório nos tribunais e o Ministério Público. In: Estudos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 99-100.
[7] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias..., op. e loc. cit..
[8] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias..., op. cit, p. 192-193.
[9] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias..., op. cit,, p. 193.”
Observa-se que é possível, ainda que em grau de recurso, haja a feitura de diligências ordenadas pelo relator, por força do art. 616 do Código de Processo Penal. Nesta hipótese, perguntamos quem estaria representando o Ministério Público nesta nova instrução. Evidentemente que se a diligência (uma acareação, por exemplo) fosse realizada no próprio Tribunal somente um Procurador de Justiça poderia atuar, o que vem a corroborar o fato de que, além de fiscal da lei[7], continua ele como representante da parte acusadora. Neste aspecto, veja-se a lição de Ada, Scarance e Gomes Filho: “o tribunal poderá livremente apreciar, no recurso, aspectos que não foram suscitados pelas partes. Se o entender conveniente, converterá o julgamento em diligência para a produção de novas provas, destinadas à formação do convencimento de seus membros e poderá excluir as que considerar ilícitas do material probatório; se o considerar oportuno, poderá reinquirir o réu e será livre para levantar novas teses jurídicas. Apenas, deverá garantir que tudo isso seja feito em contraditório, na presença das partes, dando a estas a oportunidade de contradizer, inclusive provando. O contraditório, na melhor doutrina, não se limita às questões de fato, devendo abranger as questões de direito que o juiz levantar de ofício (Tarzia).”[8]
Por outro lado, simplesmente suprimir o parecer ministerial não é possível, sob pena de se incorrer em nulidade absoluta, tendo em vista o disposto no art. 564, III, d do Código de Processo Penal.[9] Ademais, como afirma Rogério Schietti Machado Cruz, “não se há de questionar a conveniência e utilidade da emissão de parecer escrito pelo Ministério Público, desde que – e aqui reside o ponto nodal da questão – se promova o contraditório sobre tão importante peça processual, promovendo a igualdade entre as partes e otimizando a ampla defesa.”[10]
Esta nossa posição, sem sombra de dúvidas, sofre forte contestação; de toda maneira, valhemo-nos da lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, segundo a qual “autores sofrem o peso da falta de respeito pela diferença (o novo é a maior ameaça às verdades consolidadas e produz resistência, não raro invencível), mas têm o direito de produzir um Direito Processual Penal rompendo com o saber tradicional, em muitos setores vesgo e defasado (...).”[11]
[1] Introdução ao Direito Processual Constitucional, São Paulo: Síntese, 1999, p. 27.
[2] Procédure Pénale, Paris: LexisNexis Litec, 2005, p. 35.
[3] STJ, Rel. Min. ADEMAR MACIEL, DJU 3.4.95, p.8.149.
[4] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. IV, 1ª. ed., 2ª. tiragem, Campinas: Bookseller, 1998, p. 213.
[5] Código de Processo Penal comentado, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 4a. ed., 1998, p. 351.
[6] Castanho de Carvalho, Luis Gustavo Grandinetti, O Processo Penal em face da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 2ª. ed., 1998, p. 85. Nesta obra, em carta dirigida ao autor, Tourinho Filho reafirma a sua posição acima transcrita, nos seguintes termos: “Todos sabemos que os Procuradores eram Promotores. Como podem eles, da noite para o dia, perder a agressividade acusatória para adquirir a serenidade da toga? Com raríssimas exceções, os Procuradores quando se manifestam nas apelações e nos recursos em sentido estrito deixam entrever, com clareza, que o cordão umbilical que os liga à parte acusadora não foi cortado... Sendo assim, como podem atuar com imparcialidade? Ademais, como a defesa deve falar por último, a rigor, os autos deveriam sair da Procuradoria e ser encaminhados à OAB...” (p. 1).
[7] Mesmo porque, como diz Rogério Schietti Machado Cruz, “a emissão de parecer não modifica a natureza da atuação do órgão ministerial em determinada fase da persecução penal. Trata-se de uma simples peça processual, que exterioriza a convicção de uma das partes, em linguagem aparentemente mais imparcial em relação à alegações finais ou às próprias razões do recurso, mas que, ressalte-se, provém de membro da mesma Instituição que, até então, promovera a ação penal, deduzindo a acusação contra o réu.” (Garantias Processuais nos Recursos Criminais, São Paulo: Atlas, 2002, p. 91).
[8] Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª., ed, 2001, p. 52.
[9] Sobre o assunto, conferir Dóro, Tereza Nascimento Rocha / Grecco, Leonardo. O parecer acusatório do Procurador de Justiça nos autos da apelação criminal (Da notória desigualdade de armas no duelo entre promotor de justiça e advogado). Disponível na internet: http://direitocriminal.com.br , 05/10/2001.
[10] Garantias Processuais nos Recursos Criminais, São Paulo: Atlas, 2002, p. 93.
[11] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Rômulo de Andrade. O Art. 610 do Código de Processo Penal não foi recepcionado pela Constituição Federal! Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 fev 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43222/o-art-610-do-codigo-de-processo-penal-nao-foi-recepcionado-pela-constituicao-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
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