Resumo: Trata-se de artigo que busca, através da análise das particularidades do instituto do abuso no âmbito do processo, em confronto com a má-fé e pautando-se pelos princípios constitucionais e processuais que guiam a matéria, explorar as hipóteses por meio das quais a Fazenda Pública poderá ser – e assim deverá ser reconhecida – agente de ato abusivo no processo tributário, bem como a aplicabilidade das penalidades prevista na legislação processual civilista diante de tais condutas por parte da Fazenda.
Palavras-chave: abuso processual; processo civil; processo tributário; Fazenda Pública; execução fiscal.
Introdução
O propósito do tema foi concebido como forma de estudar uma matéria de interesse que, entendemos, não se vê em muitas obras específicas.
De fato, a doutrina nacional não é farta com relação ao estudo do abuso no processo civil de modo geral, sendo ainda mais escassos os trabalhos que se detiveram sobre o ponto específico de sua aplicação ao direito tributário, mais especificamente quando tal abuso seja perpetrado pelo ente fazendário, por meio de suas procuradorias, já que a atuação abusiva das demais partes envolvidas, sejam contribuintes, terceiros ou mesmo julgadores já se encontra contemplada na doutrina processualista civil. De qualquer forma, o presente trabalho pretendeu focar no estudo da atuação das fazendas em juízo, e como sua movimentação processual pode ser encarada como abusiva, inquirindo sobre suas particularidades e consequências.
Temos que o assunto é por demais relevante, tendo em vista a posição favorecida que tem o ente público em seu embate processual com o contribuinte, ainda que por interpretação emocional do julgador, que tantas vezes parece aplicar uma presunção de culpabilidade sobre o particular, sobretudo o empresário, a despeito da conhecida voracidade e estrutura de nossa máquina arrecadatória em confronto com o cidadão.
A isonomia das partes, já questionável, sofre ainda mais quando se observa um sentimento de que a Fazenda Pública sente liberdade que se coaduna com o dever das partes em qualquer litígio processual, tratando a supremacia do interesse público ou a suposta falta de pessoal como justificativa onipresente, relevando um desejo perigoso e prejudicial de irresponsabilidade administrativa processual – um the king can do no wrong aplicado ao processo que, queremos crer, não se coaduna com o atual estágio evolutivo das garantias do cidadão, do aparelhamento estatal e da compreensão da responsabilidade e dos limites dos entes públicos, ainda que no exercício de suas nobres funções constitucionais.
Para esta finalidade, pretendemos analisar brevemente a teoria do abuso no processo civil para, posteriormente, verificar sua aplicação sobre a atuação da Fazenda Pública como parte da relação processual. Vale desde já a menção de que profundidade dos temas abarcados sofrerá com a limitação do escopo e tamanho do presente trabalho, o que não nos permitirá, por exemplo, analisar de modo preciso os diversos entendimentos e correntes da doutrina quanto ao abuso – levantaremos o tema apenas como premissa e ponto de vista para a devida análise da atuação da Fazenda.
Capítulo 1 – O abuso no processo civil
1.1 – O processo, o contraditório e a instrumentalidade
Neste trabalho, será importante a verificação de alguns atos específicos, já que a atuação abusiva da parte, veremos, se dará sempre no exercício de uma situação subjetiva processual, pontual, ainda que deva ser entendida dentro de um desencadear de atos, organizados dentro de um procedimento ou rito.
Contudo, temos especial interesse no prisma que compreende o processo como relação jurídica, formada entre as partes e órgão jurisdicional, que as vinculam ao provimento jurisdicional, norma individual e concreta (em regra), que será produzida ao final do feito, e que tem por objetivo por fim ao conflito – conflito este que figura como requisito elementar para a constituição da relação contenciosa. A relação jurídica em tela, neste ponto de vista, é o liame de direito público que coloca as partes em posições isonômicas diante do julgador, submetendo-as ao comando futuro em decorrência do exercício do direito de ação da parte autora (inércia da jurisdição).
Esta relação jurídica, importante frisar para os presentes fins, embora deva se desenvolver dentro das regras do direito positivo, não pode ser compreendido se não por meio de seus princípios informadores – ora derivados de disposição expressa, ora implícitos e extraídos da coletânea dos textos normativos. Estes servirão como norma de coerência, ajudando a compreender os fenômenos verificados e, sobretudo, nortearão a aplicação de todas as demais normas de conduta de cunho menos axiológico e de maior concretude, sob pena de contradição entre a interpretação ou construção de sentido normativa e o próprio sistema que concebeu este mecanismo analisado.
Neste sentido, em que pese os princípios processuais serem tema de vastidão oceânica, escolhemos assumir como mais elementares, para este estudo, o princípio do contraditório e o princípio da instrumentalidade[1].
O primeiro é de absoluta importância nesta ocasião porque será o fiel da balança sempre presente para se analisar toda e qualquer forma de abuso. Isto é, ainda que seja objetivo louvável coibir o abuso das partes no exercício de seus atos processuais, há de se tomar extremo cuidado para evitar que o rigor da punição não prejudique os direitos constitucionais mais basilares das partes envolvidas.
Constitui pressuposto do direito de defesa e de qualquer manifestação processual que esta seja sujeita ao julgamento por um terceiro, que poderá interpretar as colocações de forma diferente do que antecipado pelas partes. Assim, a aplicação de todos os artifícios legítimos para a tentativa de defesa do direito da parte não pode ser considerada como abuso, ainda que tenha levado ao insucesso de sua demanda, exceção feita ao mínimo respeito aos limites éticos e morais previstos na norma positiva.
Ou seja, há de se compreender o fenômeno do abuso como forma excepcional, demandando cautela do julgador para não desincentivar o exercício do direito subjetivo das partes em litigar por seus interesses. Em solução prática, se propõe que, em caso de dúvida quanto à existência do abuso, jamais deve o julgador aplicar penalidade.
Já quanto à instrumentalidade, esta tem a ver com a própria finalidade do processo, que nada mais é do que o mecanismo de viabilização da jurisdição, com a única função de efetivar o direito material da parte diante de sua ameaça ou violação (conflito).
Não se pretende inferir que o direito adjetivo será secundário ou menor, mas que a exegese da norma processual deverá sempre ter em mente a finalidade do próprio processo, de modo aos meios não se tornarem mais importantes do que os fins. Isto é, o processo não tem fim em si mesmo. Longe de ser um objeto de fetichismo, deve ser sempre interpretado em conjunto com os efeitos que implicarão na esfera concreta do direito material, e que consequências jurídicas extraprocessuais resultarão do desenvolvimento da lide.
Desta forma, tomando-se estes dois conceitos para a análise da matéria em questão, parte-se da premissa que o processo deve ser eficaz, como instrumento de atingimento do direito material da parte, sempre se atentando para que nenhuma parte atue com abuso de sua situação para lesar os demais envolvidos, ao mesmo tempo em que uma aplicação da teoria do abuso processual não poderá esbarrar em impedimento do exercício pleno do contraditório. Tais forças deverão colidir para formar a convicção do julgador para a aplicação no caso concreto não havendo, como restará demonstrado, uma solução ou fórmula objetiva que resolva todas as situações envolvendo esta forma de abuso.
1.2 – Terminologia, origem histórica e finalidade da figura do abuso processual
Optamos por empregar o termo “abuso” do processo por nos parecer a forma mais adequada, no lugar do termo má-fé processual, entre outros, pela expressão linguística em si já explicar bastante sobre o instituto.
Como afirmamos acima, o ordenamento jurídico é uno, não havendo que se falar numa separação entre direito material e processual para outros fins que não um corte epistemológico didático. Logo, não há porque ser inaplicável a doutrina que há mais tempo se construiu para o direito civil, ao direito processual civil, com relação ao abuso. Um ato processual, por exemplo, não deixa de estar, ainda que mais remotamente, tutelado pelo direito civil, penal, etc. O procedimento é apenas a concatenação de atos para que se desenvolva a relação processual, e não uma compartimentação absoluta de duas ordens jurídicas distintas.
O abuso de um direito subjetivo tampouco difere em demasia do abuso de um direito processual ou, melhor dizendo, de uma situação subjetiva processual, ao menos no que se refere à forma de compreensão deste abuso.
Não vemos, por isto, nenhum problema em adotar o entendimento já sedimentado quanto à compreensão do abuso no direito civil, ao direito processual.[2]
Ainda com relação ao termo abuso, o colocamos em confronto com a noção de ilicitude. Dada a brevidade deste trabalho, não aprofundaremos as complexas distinções e discussões terminológicas e as correntes antagônicas que divergem sobre os mesmos. Nos basta colocar que a ilicitude parte da concepção de que o comportamento per se é contrário ao direito, enquanto o abuso constitui no uso abusivo ou irregular de um efetivo direito subjetivo do indivíduo.
Assim, a teoria do abuso de direito não trabalha com um comportamento objetivamente vedado, mas na forma do exercício ou na finalidade pretendida na realização de um comportamento que não só é permitido, como garantido ao sujeito de direitos. Esta particularidade concede ao ato abusivo sua primeira característica – a aparência de regularidade.
A contradição que se poderia apontar na expressão abuso de direito[3] é, pois, apenas aparente. O termo abarca a noção de que há um mau uso ou excesso de determinada faculdade subjetiva, uma aplicação exorbitante de um direito que acaba por ser rechaçada pela forma ou finalidade pretendida com seu exercício. Outra expressão que se enquadraria no conceito seria a de desvio de direito.
Assim, o que vai transformar o ato regular em um ato abusivo, como se verá mais adiante, não é a vedação da conduta realizada, mas sua concretização ou uso com finalidade diferente daquele que pauta a constituição de determinado direito subjetivo. O ponto de toque para a compreensão do abuso é, logo, o desvio de finalidade do ato praticado.
Quanto à raiz histórica do abuso processual, ou mais largamente do abuso de direitos, notamos que há pouca menção no direito romano, embora seja digno de nota o brocardo summum jus, summa injuria, que remetia à ideia de que o excesso de “justiça”, ou excesso na execução da justiça – ou de qualquer direito – também poderia gerar novas injustiças, implicando em uma regra aberta orientadora da aplicação da norma com parcimônia, para evitar excessos danosos de exercício de direitos subjetivos. Havia também limitações ao ato emulativo, que se caracterizava no uso de um direito sem proveito algum ao agente, com o exclusivo propósito de lesar a outrem.
A origem deste conceito, nos parece, veio mesmo do direito francês da segunda metade do século XIX, conforme apura a professora Helena Najjar Abdo, a partir de estudo sobre as obras de Planiol, Josserand, Saleilles, entre outros[4].
A partir de então, muito se construiu com relação à compreensão dos direitos subjetivos como relativos, fugindo da concepção de garantias negativas individuais nascidas pela oposição burguesa ao Estado absolutista. A evolução para o Estado social levou a uma compreensão mais relativa, não podendo um direito subjetivo se sobrepor em todos os casos ao interesse público. Esta ótica permitiu melhor verificar que todos os direitos subjetivos são relativos, até porque o direito de um sujeito não poderá se sobrepor ao direito de outro sujeito, em alusão ao primado kantiano da liberdade[5].
A figura do abuso de direito surgiu para compreender e penalizar o uso de direito legítimo com finalidade diversa daquela prevista pela norma, a evitar o desvirtuamento das garantias e direitos subjetivos concedidos aos indivíduos, que os poderiam usar para prejudicar a outrem e, por consequência, atacar outros direitos subjetivos. Ao mesmo tempo, o abuso da forma processual deriva da aplicação deste entendimento à relação processual, visualizando, ainda, a função social do processo e da atividade jurisdicional, que não poderia ser empregado como ferramenta egoística da parte para atingir terceiros, muito além do intuito de simples defesa de interesse próprio.
Assim, o abuso no processo nada mais é do que o mau uso de um direito subjetivo no decorrer da relação jurídica processual, ou melhor, o desvio de finalidade de um instituto processual por uma das partes envolvidas.
1.3 – Critérios para a identificação do abuso processual
Uma das maiores dificuldades no trabalho com o abuso do processo é a identificação de critérios precisos para sua verificação prática, justamente em vista do alerta anterior para evitar que a coibição do excesso prejudique o exercício amplo das garantias de defesa das partes em juízo.
Basicamente, podemos dividir em três as correntes sobre o tema, segundo dividimos os critérios em elementos mais ou menos subjetivos.
Uma primeira corrente, subjetivista ou psicológica, é aquela que entende que o ato abusivo deve ser apurado de acordo com o elemento subjetivo do agente (dolo ou culpa). Ainda dentro desta corrente, se pode tomar como necessária ou não a intenção daquele que pratica o ato abusivo (dolo), que deliberadamente age para lesar a outra parte, ou mesmo a análise da falta de propósito ou benefício para o agente, decorrente de determinada conduta. Assemelha-se, de alguma forma, à doutrina da emulação do direito romano.
Mas a grande dificuldade na aplicação desta teoria, devido à limitação da prova de uma intenção determinada por parte do agente acabou por esvaziar sua aplicação, o que levou ao desenvolvimento da teoria objetivista ou finalista.
Abstraindo o elemento subjetivo, foram levantados diversos critérios para a identificação do ato abusivo, tais como (i) falta de utilidade ou benefício do ato para o agente; (ii) ausência de razões / motivação sérias para a prática do ato; (iii) o desatendimento à destinação econômica do direito subjetivo, entre outros. A variedade de critério pode, contudo, ser tomada por seu elemento comum, o mencionado desvio de finalidade no exercício do direito subjetivo.
Isto é, a busca da parte por atingimento de objetivo diverso do que fundamenta a previsão normativa do instituto empregado poderia indicar, objetivamente, a existência do abuso, ainda que em soma a outros elementos.
Por sua vez, a teoria mista ou eclética mesclou o aspecto subjetivo e objetivo do agente, buscando a verificação do espírito do direito subjetivo, por meio de dois critérios – o da função social (objetivo) e o da existência de motivo legítimo (subjetivo), perquirindo as razões que teriam levado o agente à realização do ato. Buscando sair da armadilha quanto à prova de elemento impossível, ou negativo (inexistência de motivo legítimo da parte), se buscaria a comprovação, pela parte que alega o abuso, da existência de um motivo ilegítimo da parte contrária, tal como a fraude, o dolo e o conluio.
No Brasil, o Código Civil de 1916 adotou a teoria objetivista em seu art. 160, I, que dispunha não constituir atos ilícitos “os praticados no exercício regular de um direito reconhecido”. A construção a contrario sensu indica que haveria a possibilidade de um exercício irregular de um direito subjetivo, que por sua forma irregular (abuso) levaria à ilicitude.
O Código Civil que o sucedeu, em 2003, seguiu com a mesma corrente, cujo art. 187 prescreve que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Ainda que se possa arguir pela necessidade de prova do elemento subjetivo no direito brasileiro, pela topografia da previsão do Código Civil relacionar o ato abusivo ao ato ilícito (que demanda a caracterização de culpa ou dolo), a interpretação não se sustenta, já que o abuso de um direito subjetivo se relaciona mais com o desvio já comentado quanto à finalidade do ato, do que com a ilegalidade ou ilicitude imediata da conduta, assumindo a necessidade de uma interpretação própria.
De qualquer forma, o que podemos consolidar desta análise superficial é que o abuso não pode ser apurado segundo alguma fórmula matemática, sendo o critério mais objetivo aquele que perquire se o ato realizado pela parte visa buscar o objetivo para o qual existe sua previsão normativa. O desvio de finalidade é, assim, o elemento mais seguro e do qual deve ser iniciada a apuração do ato abusivo.
A partir desta constatação, no entanto, há de se examinar outro(s) elemento(s) que possa(m) confirmar a existência do abuso, o que deverá variar bastante conforme o caso concreto, mas dentre os quais podemos citar a falta de seriedade do ato, ilicitude e ilegitimidade do fim pretendido pelo sujeito, prejuízo à administração da justiça, ou mesmo a existência de dolo ou culpa.
Cumpre ilustrar que a procedência ou improcedência da demanda requerida pela parte não constituirá, na maior parte dos casos, um critério válido para este estudo. Isto porque, por primeiro, a parte não pode ter medo de exercitar seu direito de ação ou defesa, ante o receio da punição exacerbada que decorreria da consideração do abuso. Em segundo, porque a improcedência das razões da parte é decorrência típica de toda lide que, forjada no conflito, terá sempre uma parte sucumbente. A improcedência não decorre do abuso ou uso impróprio dos mecanismos de defesa do interesse da parte, mas justamente o contrário, advém do insucesso na aplicação típica das garantias constitucionais, direito subjetivo da parte. O desvio de finalidade surge quando o expediente adotado pela parte visa objeto diferente do que o previsto pela norma, como, por exemplo, o recurso protelatório que se sabe evidentemente descabido, apenas para buscar o adiamento do provimento jurisdicional, independente de qual seja o resultado da lide.
1.4 – Elementos do abuso do processo – partes, dolo, dever de lealdade e verdade
Neste tópico nos cabe brevemente analisar alguns elementos para o estudo eficaz do abuso processual.
Partes da relação processual
Primeiramente, como mencionado, todas as partes da relação processual estão sujeitas a praticar atos com abuso, extrapolando suas funções ou direitos em razão do desvio de finalidade. Isto é, podem praticar abuso do processo tanto o juiz, que rejeita embargos de declaração sem motivação para não assumir erro de fato e ter que rever sua decisão, quanto o Ministério Público, que ajuíza ação que sabe carente de fundamentos apenas pelo efeito midiático de autopromoção.
Esta conclusão decorre do fato de que o abuso surge no desvio de finalidade no exercício de um direito subjetivo, como nascido no direito civil. Contudo, no processo, o direito subjetivo pode ser desdobrado mais especificamente em diversas formas, divergindo conforme o topo de ato praticado, tais como ônus, faculdades, poderes e deveres. Para todos estes atos, entendidos como posições ou situações jurídicas (oportunidades processuais), é guardada certa margem de liberdade para sua aplicação, e que poderá ensejar abuso da parte.
Certamente, fala-se em abuso sobre tais situações jurídicas, eis que a atuação fora destas seria tratada como ato ilícito – ou seja, o abuso vai nascer sempre do exercício a princípio legítimo, aparentemente regular. O que vai orientar o desvio de finalidade é, logo, o efeito atribuído ou buscado pela norma jurídica na construção de cada uma destas situações.
Não há abuso, portanto, quando uma parte escolhe recorrer ou não, ou quando atua mal dentro do processo, eis que o insucesso de sua demanda já tem consequências bastante danosas, como a improcedência de sua pretensão. O abuso, mais uma vez, não se encontra exatamente na forma ou no conteúdo do ato realizado, mas na escolha viciada da finalidade pretendida. Logo, sempre que uma parte no processo tiver uma oportunidade de atuação processual, haverá possibilidade de abuso.
Comprovação e existência de dano
Com respeito ao dano, ou melhor, à necessidade de haver ou não dano ou de ser este comprovado nos autos de modo a ensejar a punição da parte que agiu com abuso, poder-se-ia arguir pela essencialidade de sua prova já que, na esteira do direito material, não há que se falar em reparação de um dano inexistente ou não comprovado.
Mas, em vista da excepcionalidade do instituto em tela e da dificuldade de sua apuração prática, em realidade este abuso só será passível de análise quando efetivamente houver dano, já que na completa ausência de dano este comportamento seria irrelevante ao direito, ou mesmo seria inexistente o abuso, considerando que este se dá na exorbitância de uma situação processual garantida à parte.
Sob outro ponto de vista, sempre haverá dano uma vez apurado o abuso, diante da lesão causada pelo abuso ferir não só a parte contrária, economicamente, como a função social do processo ou administração da justiça, bens jurídicos relativamente amplos e cuja agressão se pode presumir pela simples constatação do ato lesivo. Assim, ainda que de forma mais mediata, o recurso protelatório causa dano quando implica na lentidão do processo, na contribuição ao atolamento da máquina judicial.
Na seara tributária, de fato, é comum o entendimento das fazendas pela inexistência de dano ao particular pela realização de atos supostamente simples ou inócuos, como o cancelamento da certidão de dívida antes da sentença, “mera” inclusão de partes no título executivo, entre outras que veremos mais adiante.
O dever de lealdade e verdade
Traz o atual Código de Processo Civil, em seu art. 14, menção ao dever das partes em agir com lealdade e de acordo com a verdade.
Efetivamente, em atenção ao contraditório e ampla defesa, não se trata de dizer que a parte não poderá se defender amplamente, ou de que terá de se incriminar fornecendo à parte contrária claramente os elementos que apontem para sua condenação.
Tampouco se faz alusão a um conceito de Verdade ontológica, inalcançável por definição, sob pena de ser incoerente qualquer produção de provas e discussão acerca dos fatos que rodeiam o conflito.
O que pretendeu trazer o dispositivo citado, pensamos, é mais um limitador pós-moderno a um radicalismo liberal quanto à defesa das partes, um laissez-faire não saudável à relação processual e que emana de um primado ético e moral, axioma positivado pela norma processual. Constitui, logo, em um não-incentivo à parte que declara deliberadamente inverdades nos autos, que tumultua a lide, em violação ao fair play do jogo processual. A interpretação se coaduna com a finalidade social que se admite ao processo, como forma de pacificação do conflito, de modo que toda a sociedade tem interesse, ainda que remoto, no desfecho da lide dentro de um mínimo limite ético, não podendo o processo se afastar, sob esta ótica, da constante busca pela verdade dos fatos.
Desta feita, ainda que se encare tal norma com certa razoabilidade, ante o atento cuidado de não dilapidar a garantia de defesa das partes, tampouco se pode entender o citado artigo como uma norma meramente programática e sugestiva, cabendo-lhe a punição do abuso. Assim, se não se pode obrigar a parte a não omitir elemento não citado pela parte contrária, por exemplo, tampouco se admitirá a menção indicativa a fatos inverídicos.
1.5 – Espécies de abuso processual
Em uma tentativa de sistematizar os atos abusivos, podemos classificá-los tomando como critério a abrangência deste abuso – se está vinculado à constituição da relação jurídica, de modo geral ou se está no exercício de ato singular no decorrer de seu desenvolvimento.
Assim, fala-se em abuso macroscópico quando há mau uso do pleito jurisdicional ou na definição dos contornos iniciais da lide, a exemplo do conluio das partes para o ajuizamento de ação simulada. Por outro lado, diz-se de manifestação microscópica do abuso quando se manifesta em outras oportunidades que não desde a exordial ou defesa inicial do réu, tal como a interposição de recurso meramente protelatório.
O Direito positivo brasileiro, por sua vez, também traz previsões quanto às formas de abuso. O Código de Processo Civil de 1939, em seu art. 3º e 63 tratava de casos genéricos, como a emulação e a realização de atos por “mero capricho”, quando a parte age apenas para lesar a outra, sem visar proveito próprio algum, ou mesmo o erro grosseiro, tal como a cobrança de dívida nitidamente paga.
O codex processual de 1973 já prefere listar casos mais determinados do abuso, em seus artigos 14 a 17, tais como a não atuação conforme a verdade e lealdade processuais, a produção de provas inúteis, o embaraço ao cumprimento de decisões, a atuação de forma temerária, manifestamente infundada, contra fato incontroverso ou mesmo o já citado uso de recurso com caráter meramente protelatório.
Como se pode observar, o CPC traz casos ora mais subjetivos (ex. art. 17, IV) ora objetivos (ex. art. 17, I), o que não significa dizer que se está demandando a efetiva prova do elemento subjetivo da parte nos autos, o que, como citado, esvaziaria a aplicabilidade do instituto e, entendemos, não é a melhor interpretação, à luz das correntes acima analisadas.
Por fim, verifica-se que a má-fé, expressão usada pelo Código de Processo Civil nos artigos 16 a 18, constitui subespécie de abuso processual, enquadrando-se todas as modalidades de má-fé citadas como efetivos casos em que há exercício abusivo e com desvio de finalidade de situações processuais das partes.
1.6 – Sanções previstas no Código de Processo Civil
Na norma processual civil há diversas menções a penalidades a serem aplicadas aos diversos casos de abuso do processo. De início, a reparação de danos citada nos artigos 16 a 18 do Código reportam a uma situação de efetiva indenização, ou mitigação dos efeitos do dano. Em alusão aos artigos 402 e 403 do diploma material civil, estes danos podem ser entendidos como lucros cessantes e danos emergentes, que serão devidos pela parte que perpetrou o abuso, para a prejudicada.
Tal condenação ainda pode se dar a requerimento da parte ou determinada de ofício pelo juiz[6]. O dano pode, ainda, ser indenizado mediante demanda autônoma, caso assim pretenda a parte lesada.
Por sua vez, a condenação da parte que agiu com abuso nas multas previstas na legislação não se confunde com a indenização e, logo, prescindem de comprovação de dano. Dentre as multas processuais previstas, podemos citar as seguintes, previstas todas no Código de Processo Civil: (i) litigância de má-fé, de no máximo 1% do valor da causa (arts. 16 a 18); (ii) ato atentatório à dignidade da justiça, de no máximo 20% do valor da causa (arts. 599 a 601); (iii) embargos de declaração com efeitos manifestamente protelatórios, de até 1% do valor da causa, a qual, em caso reiterado, poderá ser majorada para até 10% do valor da causa (art. 538); (iv) descumprimento ou embaraço ao cumprimento ou efetivação de ordem judicial, antecipatório ou final[7], de até 20% do valor da causa; e (v) interposição de agravo manifestamente inadmissível ou infundado, de 1% a 10% do valor da causa (art. 557, §2º).
O pagamento e condenação à indenização ou mesmo à multa, note-se, não depende do resultado da lide, eis que o abuso não está necessariamente ligado a parte ter ou não direito material que suporte sua pretensão no feito.
Além da indenização e multas, há também a restrição de possibilidade de interposição de novos recursos antes do recolhimento da multa (arts. 538 e 557, §2º do CPC), e as sanções decorrentes da própria autonomia do juiz, como o afastamento de alegações e documentos, a consideração da revelia, ou mesmo a aplicação de multas diárias para forçar o cumprimento de decisão judicial. Outras situações menos aplicáveis ao tema em debate vão desde a propositura de ação rescisória à aplicação de sanções penais, como no caso do crime de desobediência, que fogem algo mais do escopo deste trabalho.
Capítulo 2 – Particularidades da atuação processual do ente público
2.1 – Prerrogativas e privilégios processuais da Fazenda Pública
Saindo da doutrina do processo estritamente civil e antes de concluirmos com nossa aplicação da teoria do abuso à Fazenda Pública, cabe breve digressão a respeito das particularidades que cercam a administração pública e que a diferem dos particulares, com reflexos no processo tributário, ainda que, para todos os efeitos, seja o processo tributário o mesmo processo civil, à exceção de algumas normas especiais, tais como a Lei do mandado de segurança (Lei nº. 12.016/2009) e a Lei de execuções fiscais (Lei nº. 6.830/1980).
O primeiro elemento que logo salta à mente são as prerrogativas que decorrem da especial atribuição do ente público e do interesse público envolvido, à semelhança do dever-poder da administração (poder que decorre do dever que é atribuído ao ente público). Com exemplo, podemos citar o não recolhimento de custas judicias. Diz-se prerrogativa, em oposição ao termo privilégio, que seria a norma especialmente vantajosa ao ente público que não respaldada por uma finalidade ou justificativa que a legitime.
Este elemento poderia, inclusive, ser considerado como falha no conceito de isonomia das partes, à medida que se estaria beneficiando o ente público sem fundamento – ou melhor, sem critério válido para a discriminação diante do princípio da igualdade [8].
Sem adentrar em qual prerrogativa seria ou não justificável, o que fugiria ao escopo deste trabalho, basta consignarmos que estas prerrogativas, ao formar uma atmosfera algo favorecida em torno da Fazenda Pública em juízo, não poderão servir para afastar a aplicação das penalidades e consequências decorrentes da consideração da atuação abusiva no processo.
Antes de se imaginar que se trata de observação completamente descabida, por extrajurídica ou meramente decorrente de equívoco relevante apenas na esfera sociológica, voltamos à importância da análise deste tema, relativo à figura do abuso e da verificação de seu acolhimento e efetividade prática, não cabendo à análise acadêmica o autismo em relação à aplicabilidade de seus institutos.
Além disso, não raro há situações em que se confundem aspectos totalmente desconexos do ente público em juízo para justificar a não aplicação da teoria do abuso, em que se vê a desnecessidade de recolhimento de custas como uma autorização legal remota para a sua não condenação em multas processuais, por exemplo. Institutos, por óbvio, totalmente diferentes.
Por outro lado, importante ressalva há de se fazer com relação à evolução que tem havido em direção à flexibilização da irresponsabilidade processual da administração, como no caso da crescente afastamento, por magistrados, do dispositivo do art. 26 da Lei de execuções fiscais, no que tange à condenação da Fazenda ao pagamento de honorários ao contribuinte, nos casos em que o cancelamento da dívida se deu antes da sentença, mas depois (e em geral por causa) de manifestação da parte nos autos[9].
Ainda que não seja uma situação de condenação por abuso processual, trata-se de caso emblemático de evolução interpretativa (ainda não completa) em prol da aplicação da causalidade em face da administração, em oposição ao salvo conduto estabelecido pela anterior interpretação literal do dispositivo legal citado.
2.2 – Elementos do ato administrativo aplicáveis ao processo
Não há dúvidas de que a doutrina do ato administrativo não é inteiramente aplicável à conduta da administração no bojo de uma relação processual – para tanto, basta notar a impossibilidade da consideração da presunção de legalidade dos atos do ente público no processo, sob pena de desvirtuamento absoluto dos ônus probatórios e da completa ofensa que isto levaria às garantias do contraditório e ampla defesa – que se diria, então, da isonomia das partes.
Ainda assim, entende-se que a atuação do ente público no bojo de uma relação processual tampouco se verá completamente alheia aos demais princípios que regem a atividade da administração de modo geral, e que são especialmente importantes para o presente trabalho. Como visto acima, a regulação processual não é esfera apartada do direito, que é uno, não podendo implicar em cisão radical com as normas que regem todo o funcionamento da máquina pública, sob risco de mortal incoerência. Isto é, se a própria Constituição Federal se deteve, em seu art. 37, a ditar os princípios fundamentais que deverão reger todo o funcionamento da máquina estatal, não se concebe que, por estar um determinado ente público preso a uma relação processual, se sinta autorizado a agir contrariamente à Carta Magna.
Desde logo, um dos princípios essenciais de qualquer atuação administrativa é o da moralidade. Este, ainda que de farto conteúdo axiológico e aparente dificuldade de aplicação, vem logo à mente quando tratamos do abuso do processo pelo ente público. Ora, se a administração tem alguma dúvida para a aplicação do princípio da moralidade, esta zona cinzenta não é conforto no âmbito processual, em que as normas são muito mais claras quanto à conduta da parte que é considerada como abuso e má-fé, nos termos acima expostos.
Ademais, outros princípios também acabam por reafirmar a seriedade da prática do abuso de processo pelo Estado, tais como a impessoalidade (impedindo atuação vingativa ou beneficiada direcionada a determinado particular), e a eficiência (não cabendo à administração o desperdício de recursos, tanto das procuradorias quanto do Judiciário, seja com expedientes protelatórios ou com atuação temerária e desnecessária).
Outrossim, cabe registro do necessário atendimento ao princípio da motivação e da coibição ao desvio de finalidade em qualquer manifestação do dever-poder do Estado, de modo que, independente da verificação de abuso de processo, o mero desvio de finalidade é suficiente para implicar na nulidade de qualquer ato administrativo, como decorrência evidente da legalidade e dos demais princípios supramencionados. O desvio de finalidade também surge como critério para a identificação do desatendimento do interesse público, em especial quando o ato administrativo acaba por empregar as prerrogativas da administração para a consecução do interesse público secundário no lugar do primário.
Através deste prisma, um abuso de direito, quando cometido pelo próprio Estado em juízo, não deixa de ser um ato abusivo, por algum apelo medieval à irresponsabilidade do rei perante seus súditos. Muito pelo contrário, diante de nosso estágio constitucional, o abuso processual cometido pelo ente público não é apenas violação à norma processual, mas, muito pior, constitui agressão direta à Constituição Federal, aos princípios elementares que devem conduzir toda a administração e, antes de tudo, à própria finalidade da atuação do Estado democrático de direito[10].
Capítulo 3 – O abuso processual por parte da Fazenda Pública
3.1 – Aplicabilidade das formas de abuso previstas pela legislação processual civil
Tendo em vista a conclusão do tópico anterior, tem-se a total aplicabilidade da doutrina do abuso do processo à atuação processual dos entes públicos, eis que se submetem, como qualquer outra parte, às normas processuais que preveem e punem estas formas de abuso. As prerrogativas ou privilégios concedidos ao ente público em juízo, ainda, em nada se confundem e não podem ser vistos como autorizadores da irresponsabilidade da administração por seus atos. Mais que isso, o abuso coibido pelo Código de Processo Civil é igualmente atacado pelas normas que regem a conduta da administração fora da relação processual, de modo que, tomadas as peculiaridades da administração em relação aos demais particulares, encontram-se mais motivos, e não menos, para punir-lhes os abusos eventualmente cometidos.
Aliado a isto se encontra a própria finalidade do processo e das normas que visam desencorajar o abuso processual, que se destinam igualmente a todas as partes da relação, inclusive ao Ministério Público ou aos magistrados. Isto é, as normas processuais visam o atendimento à função social do processo como instrumento de resolução de conflitos, inclusive aqueles travados em face da própria administração, de modo que as normas processuais não se destinam, de modo algum, apenas aos particulares, sendo igualmente cogentes e aplicáveis aos entes públicos. Ao máximo, se demandaria uma dose extra de cuidado e razoabilidade por parte do julgador, que deve manter-se atento, também, à complexidade das relações e limitações de efetivo inerentes aos órgãos públicos, de modo a evitar prejuízo descabido aos cofres públicos mas sem que, repita-se, se justifique o abuso.
Neste exato sentido, inclusive, tem decidido o Supremo Tribunal Federal, que, em mais de um caso, entendeu pela aplicação das penalidades cabíveis ao abuso do processo[11].
3.2 – Hipóteses “macroscópicas” de abuso processual pela Fazenda
Neste tópico e no seguinte não pretenderemos comentar sobre todas as hipóteses possíveis de abuso processual por parte dos entes fazendários, em impossível esgotamento do tema, diante da infinidade de caminhos que pode seguir o mau uso de qualquer das posições processuais cabíveis à Fazenda como parte em uma relação processual. Impossibilidade esta que, inclusive, levou a legislação a empregar cláusulas relativamente abertas, visando abarcar remotamente as formas de abuso, mediante interpretação casuística.
Feita esta ressalva, tentaremos colocar situações que nos parecem especialmente relevantes, seja por serem mais recorrentes, seja por sua especialidade e aplicabilidade estrita em função da atividade da Fazenda em juízo.
Neste sentido, primeiramente examinando as formas de abuso tidas por macroscópicas, em tentativa de segregação orientando alguma sistematização do tema, temos que escassas serão as possibilidades de abuso no exercício do direito de ação ou defesa, considerados de forma genérica (contornos da lide instaurada, em oposição a acontecimentos processuais incorridos dentro desta relação formada).
Isto porque, seguindo a denominação adotada por Paulo Cesar Conrado, há apenas duas ações propriamente exacionais[12], em que a Fazenda figurará como autora, qual seja a execução fiscal e a ação cautelar fiscal. À segunda modalidade, por seu cabimento mais estreito e função de amparo à própria execução, disporemos menor atenção, ainda que possa ser igualmente palco para o abuso processual.
Com efeito, na ação de execução a Fazenda atua de modo bastante restrito com relação à forma ou finalidade de sua interposição, sendo difícil vislumbrar desvio de direito. Mesmo o excesso de execução, ou o ajuizamento de cobrança executiva por dívida que, depois, se viu indevida, não se encaixa na consideração do abuso. A uma, porque, como visto, a improcedência do pedido da parte não pode ser considerada como excepcional forma de desvirtuação do objetivo do feito, mas apenas fracasso natural no bojo de um exercício legítimo, cuja penalidade (sucumbência e improcedência) não se confunde com a punição do abuso. A duas, porque a atividade da Fazenda, como órgão público e como qualquer parte processual, é passível de falhas, inclusive na organização e formação do título executivo, de modo que o simples erro não pode ser tido como abuso de direito.
Rara, logo, a hipótese em que se pode observar e demonstrar que a Fazenda, tendo ciência da quitação da dívida por meio oficial ou reconhecendo formalmente a extinção do crédito, mesmo assim ajuíza posteriormente feito executório.
Por outro lado, vemos como conduta nitidamente abusiva a inclusão ou alteração de elementos do crédito tributário entre a finalização do processo administrativo que levou à sua consolidação e a inscrição em dívida ativa – ainda mais quando esta alteração não se dá por erro aleatório, troca de números por erro de digitação, etc., mas por conduta deliberada da Fazenda.
É exatamente isto o que ocorre, com triste recorrência, quando a procuradoria inclui nomes de sócios ou pessoas relacionadas ao contribuinte principal na certidão de dívida ativa, visando aproveitar-se da presunção de certeza, liquidez e exigibilidade do título fazendário[13] e da jurisprudência em torno do ônus da prova para inclusão de sócio no polo passivo da demanda[14]. Nesta situação, o ente público age deliberadamente para dilapidar a possibilidade de defesa da parte e se aproveita de sua posição de responsável pela constituição do título executivo para, unilateralmente, alterar o documento que funda seu suposto direito e ampliando sua presunção de executoriedade para além do que conhece permitido – os estreitos limites do que foi designado e sujeito ao contraditório na seara administrativa.
A “solução genial” de inclusão de sócios na certidão de dívida depois de findado o processo administrativo veio como forma conhecida de driblar o contencioso judicial, resolvendo o problema que era a comprovação judicial de modalidade permissiva de desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do art. 135, III do Código Tributário Nacional. Solucionado restou o estorvo que era o exercício do direito de terceiro de se defender antes de lhe ser cobrada uma dívida em procedimento executório que visa apenas à constrição patrimonial.
Apura-se, aqui, claro caso de abuso já no desenho preliminar da lide, no próprio exercício do direito de ação, ao ampliar a relação jurídica para incluir terceiro até então não relacionado com a dívida, com a finalidade exclusiva de atropelar o direito deste terceiro ao contraditório prévio que lhe seria devido, seja em sede administrativa ou judicial pelo redirecionamento posterior ao ajuizamento.
Já quanto ao direito de defesa, tem-se que, na esteira do já colacionado, a Fazenda não poderá arguir fatos que conhece serem inverídicos, ou aproveitar-se do peso de sua palavra na qualidade de Estado para supor ilações sem fundamentos, apenas para que à contraparte se incumba o ônus da prova invertida, ainda que em razão do mero convencimento do magistrado tomar as afirmações da administração como argumento de autoridade.
Quanto às razões de defesa da Fazenda, também surge uma interessante oposição de normas, considerando a possibilidade da procuradoria ser obrigada à defesa de um ato que conhece ilegítimo ou cujo provimento em favor do particular não trará qualquer prejuízo à administração. Por um lado é dever da procuradoria defender os atos da Fazenda, ao mesmo tempo em que é igualmente dever do ente público agir visando o respeito à lei, à moralidade e à eficiência.[15] Em tal situação, entendemos ser devida extrema cautela do magistrado, eis que em muitos casos a procuradoria age por ofício e não tem os corretos subsídios fáticos para orientar esta apreciação. Ainda que não se possa segregar o abuso da parte de seus procuradores, há de se ter razoabilidade em face das dificuldades peculiares ao tamanho e burocracia do ente público.
Por fim, não se pode olvidar do dever de lealdade processual, ou o compromisso quanto à verdade, estampado no já analisado art. 14 do Código de Processo Civil – primados construídos com apoio nos valores da ética, moral e função social do processo, mais relevantes ainda no caso da Fazenda em razão do princípio da moralidade administrativa.
Em razão disto, deve-se desencorajar e eventualmente punir os argumentos de defesa calcados em notória distorção de leis, fatos inverídicos (ou mesmo alegados antes de qualquer comprovação ou apuração superficial junto à administração fiscal), ou desleais, que visam tumultuar o feito[16].
3.3 – Hipóteses “microscópicas” de abuso processual pela Fazenda
Já com relação às formas de abuso que a Fazenda pode perpetrar no bojo da relação processual já constituída, estas são as mais variadas, em toda sorte de situação processual e nas diversas espécies de demandas afetas ao direito processual tributário.
Talvez o caso mais recorrente seja a propositura de recurso com o intuito exclusivamente protelatório, o que, em regra, acontece em todo feito que, decidido em segunda instância favoravelmente ao contribuinte e com lastro em posição sedimentada dos tribunais superiores, se interpõe recursos até a última instância possível do Judiciário, não só por meio de recursos especial e extraordinário, mas posteriores agravos internos e embargos de declaração, ainda que sem motivo para tanto.
A situação, já examinada e punida pelo Supremo Tribunal Federal, tem efeito mais danoso sobre os tribunais superiores, mas também representa uma infinidade de agravos de instrumento e outros recursos nos demais tribunais no país.
Nesta linha, o critério que se tem aplicado para a identificação do abuso não é apenas o grau de certeza do posicionamento em face do qual se recorre (existência de entendimento consolidado por órgão especial do tribunal, recurso repetitivo, sumulado, etc.), mas também, e especialmente, a existência ou não de argumentos pontuais em face da decisão recorrida, visando rechaçar o conhecido recurso “padrão”, que devolve a matéria ao Judiciário sem qualquer atenção ou preocupação de inovar, trazer novos elementos ou argumentos.
Vale registro de que a busca da parte pela revisão de um posicionamento firmado não pode jamais ser tida como abuso, mas tentativa legítima e essencial para a constante readequação da visão do Judiciário sobre as normas e fatos sociais, em confronto ao engessamento que se poderia imaginar em vista das crescentes formas de padronização de julgados nos tribunais superiores. O que se combate por abusivo é, claramente, o recurso exclusivamente protelatório, que repetidamente se aproveita da farta oportunidade recursal para postergar o trânsito em julgado da decisão.
Outras situações menos comentadas mas igualmente presentes são aquelas que lembram o instituto da emulação do direito romano, qual seja o levantamento de discussão que visa prejudicar a parte adversa sem qualquer vantagem para a administração pública. Exemplos recorrentes não faltam, como a prática da Fazenda rejeitar, em execução fiscal, a substituição de garantia de um bem menos líquido por um mais líquido, ou de demandar uma forma de garantia mais danosa ao contribuinte em face de outra igualmente líquida e garantidora da pretensão estatal, mas menos prejudicial ao particular[17].
Este tipo de atuação, entendemos, é notoriamente abusiva porque, sem fundamento algum na indisponibilidade do direito público ou na persecução do interesse público que deve pautar a ação administrativa, acaba por lesar terceiro desnecessariamente, descumprindo a função social do processo, a finalidade do ato praticado, a lealdade processual e a efetividade da administração, com a criação de expediente contencioso desnecessário. Aliás, a mera verificação de desnecessidade, frise-se o termo, já é, em si, reveladora do arbítrio lesivo na atuação da parte, o que não se coaduna com as normas processuais balizadoras do abuso ou mesmo da atuação da administração pública.
Outra modalidade que igualmente nos parece abusiva é a rejeição ou negativa de prestação de informações de conhecimento da autoridade fiscal, em razão de sua função pública. Isto é, se o direito da parte eventualmente se suportar em elementos ou documentos detidos pela administração, em razão de sua função pública, não poderá o ente se recursar a conceder publicidade sobre tais dados, ainda que em requerimento incidental no feito.[18]
Além do dever de lealdade, verdade e moralidade administrativa, ou mesmo responsabilidade pela guarda de documentos e informações cadastrais de terceiros, é de lembrar que a Fazenda deve pautar pela tributação, acima de tudo, dentro da legalidade. Desta feita, antes que vencer o litígio, é dever da Fazenda coibir qualquer forma de tributação ilegal, sob pena de adentrar na arbitrariedade, ilicitude. Neste ponto, confunde-se, em algum sentido, o papel de Fazenda Pública como polo parcial da demanda, visando proteger seus próprios interesses, e uma necessidade de colaboração com a verdade, decorrente tanto de um dever processual quanto de uma obrigação legal, como ente público.
Quanto a esta situação temos que, em suma, proteger o interesse público não pode coincidir com a manutenção da inverdade ou da tributação ilegal.
Em razão deste confronto de posições, cabe aplicação de critério semelhante ao apontado na averiguação da conduta processual da parte privada quanto ao compromisso com a verdade nos autos – não caberá à procuradoria perquirir elementos para a defesa do direito da parte contrária, mas vemos como abusivo o uso de inverdades em atendimento a uma visão torpe do interesse público.
Soma-se a isto o fato de que à administração tampouco será permitido omitir fato elementar à lide que conhece, em favor do particular, para favorecer a pretensão do ente público em juízo. O dever de verdade e lealdade processuais, concluímos, é ressaltado quando é parte a administração pública, eis que de todo modo o ordenamento rechaça a postura desonesta, a tributação ilegal, sendo uma atuação estatal neste sentido uma conduta mais lesiva ao interesse público que a não procedência de qualquer pleito fazendário, sendo inconcebível ao contrato social que possa o Estado agir de má-fé para prejudicar direito subjetivo.
Por fim, é digno de nota o abuso cometido no descumprimento ou obstrução à eficácia de decisão judicial – de caráter final ou antecipatório[19].
Quanto ao tema, há também previsão expressa no art. 14, V do Código processual como dever da parte, indicando o parágrafo único deste artigo se tratar de ofensa aparentemente superior às demais positivadas, eis que atentatório ao próprio exercício da jurisdição, cabendo ao magistrado a condenação de ofício da parte que conduzir o descumprimento. Isto porque, a forma de abuso em exame ultrapassa a lesividade à parte contrária para atingir, com grave desrespeito, a autoridade e função do órgão jurisdicional, negando eficácia a um dos poderes em que se assenta a República.
Caso o descumprimento parta de um órgão público, certamente, não poderão ser afastadas as consequências mais gravosas ao ente administrativo.
Com efeito, também aqui o abuso surge não só injustificável, mas agravado pela condição jurídica da Fazenda Pública. De logo, além da evidente agressão à norma processual mais basilar, que citada ao início desta obra indica a formação da relação processual com o único objetivo de vincular as partes à decisão que porá fim ao conflito, negar efetividade à decisão judicial é, nada menos, que negar a submissão à jurisdição do Poder Judiciário. Obviamente, a questão transcende o problema processual para implicar em gritante ilegalidade, arbitrariedade, inconstitucionalidade, além de especial oposição à tripartição dos poderes, em sendo a Fazenda órgão da administração pública direta (exceção feita à parafiscalidade). Além de, claro, representar o descumprimento da decisão uma indiferença e desrespeito inaceitável para com o direito subjetivo do particular beneficiário do provimento judicial.
O desrespeito à ordem judicial, por parte da Fazenda Pública há de ser, logo, punido exemplarmente, no bojo do processo, sem prejuízo das devidas sanções penais e administrativas.
3.4 – Aplicação de penalidades
Definida a aplicação da teoria do abuso de processo na atuação da Fazenda Pública, seus critérios e análise de casos recorrentes, basta apontar que as penalidades, igualmente previstas pelo Código de Processo Civil, são totalmente aplicáveis à administração, pelas mesmas razões – até porque a não aplicação da penalidade retiraria qualquer eficácia à identificação do abuso processual.
Não obstante, importante serem feitas duas ressalvas, em que será diferente a aplicação da multa processual para o ente fazendário.
Por primeiro, o pagamento da multa não poderá ser compreendido como condição de procedibilidade ou requisito condicional para a realização de qualquer outro ato processual, a exemplo da multa pela reiteração dos embargos de declaração do art. 538, ou do agravo do art. 557, §2º, ambos do codex processual. Além do Estado se presumir solvente no futuro, inexistindo o risco do não pagamento (ainda que pagamento tardio), o recolhimento antecipado não se coaduna com os procedimentos naturais relativos a qualquer pagamento realizado pela administração pública, tal como a ordem de precatórios, além da aplicação da regra em tela implicar em engessamento dos demais recursos processuais do ente público diante da natural lentidão do órgão no empenho e pagamento de qualquer valor.
Em segundo lugar, especialmente quando a Fazenda Pública fizer parte do mesmo ente político que a autoridade judiciária, as multas cominadas não poderão ser pagas ao Estado, sob pena de óbvio esvaziamento da sanção diante da confusão patrimonial entre o devedor da multa e o ente beneficiado pela mesma. Assim, as multas, ainda nos casos em que devidas ao Estado, não poderão ser pagas ao mesmo ente que levou ao comportamento lesivo (e.g. descumprimento de decisão judicial pela Fazenda nacional e o pagamento de multa à União em face do art. 14, parágrafo único).
Já no que concerne à distinção entre a responsabilidade da parte e seu representando (advogado / procurador), em geral, tem-se o abuso como tratado e coibido como comportamento da parte, cabendo ao procurador apenas a sua representação em juízo, considerando que apenas este tem capacidade postulatória, e que o advogado não é parte na relação processual, agindo sempre em nome de terceiro. Assim, em situações mais radicais se assumiria apenas o regresso da parte em face de seu procurador que agiu em excesso de poderes, ou contrariando disposição expressa da parte, ou mesmo responsabilização do advogado perante o órgão de classe.
No caso da Fazenda, esta compartimentação é mais fácil diante da atuação do procurador, como agente público, ser vinculada. Assim, havendo, como sói ocorrer, norma interna da Fazenda ou Procuradoria determinando a interposição de determinado recurso ou a adoção de determinado comportamento processual, não há que se falar em responsabilização do procurador. Por outro lado, o ente público poderá buscar reparação se a conduta pessoal do representante tenha se dado em contrariedade direta com o quanto determinado nas referidas normas e que tenham levado ao abuso do processo, normas estas que poderão servir como evidência da orientação diversa na conduta do procurador.
Por derradeiro, importa comentar que o fato de haver uma norma interna, proferida pelo ente fazendário, que determina comportamento específico que pode ser enquadrado como abuso do processo não afasta o caráter abusivo deste comportamento, eis que a atuação é da parte (Fazenda), pouco importando se o advogado ou procurador da parte se compromete a seguir a orientação de seu “cliente”, conforme linha adotada pelo art. 14, parágrafo único.
Pelo contrário, à medida que o ente estatal expede norma para a atuação de modo temerário e abusivo, tanto mais importante será a punição por parte do Judiciário, a fim de que seja alterada referida disposição e rechaçado o abuso processual sistemático.
Conclusão
Primeiramente, foram colhidos dois princípios processuais para estabelecimento de um ponto de vista para a análise do tema, quais sejam o contraditório (que deverá pautar a razoabilidade do julgador em não coibir o livre exercício do direito da parte de defender legitimamente seus interesses) e a instrumentalidade, orientador da função do processo como relação jurídica que visa por fim ao conflito e efetivar o direito material.
Em sequência, verificamos brevemente que a doutrina do abuso no processo deriva da noção de abuso de direito subjetivo do indivíduo, nascida no direito civil. Já o abuso no âmbito processual ocorrerá quando do mau uso de qualquer das situações processuais (oportunidades), pelo que é cabível a qualquer entidade que se manifeste no processo – inclusive julgadores, Ministério Público e, por certo, a Fazenda Pública.
A finalidade do instituto do abuso do processo, concluiu-se, é a de afastar o comportamento processual da parte que age, basicamente, em desvio de finalidade, realizando ato lícito, mas com outros objetivos que não aqueles previstos pela norma jurídica.
Por sua vez, o estudo dos elementos particulares que conduzem a atuação da administração em juízo – e fora dele, apontam para princípios não colidentes, mas que reforçam a aplicação da teoria do abuso do processo, tais como o necessário respeito da administração aos ditames da moralidade, eficiência, legalidade, impessoalidade, bem como a nulidade de atos administrativos que impliquem em desvio de finalidade.
Desta forma, no último tópico acabamos por concluir que não só é aplicável, teoricamente, a doutrina do abuso do processo à Fazenda Pública, como é possível a plena verificação de diversas situações que se enquadram perfeitamente nos dispositivos do Código de Processo Civil que pautam a matéria, sendo clara a apuração do desvio de finalidade e de outros elementos do abuso do processo nas situações verificadas.
Ademais, longe de contrariar esta conclusão, vêm as normas de direito público a confirmar a possibilidade de identificação do abuso, dando ainda mais força às normas de caráter processual, ao mesmo tempo em que reforçam a lesividade do ente público que, em total descumprimento à busca do interesse público e à função social do processo acaba por perseguir expedientes inúteis, temerários, ou mesmo em prejuízo desnecessário de particulares.
Ainda, faz parte da conclusão não só a possibilidade da aplicação da teoria do abuso como a necessidade da aplicação de penalidades ao ente administrativo que incorrer nesta espécie de abuso, como meio de coibir a inadmissível atuação do Estado de má-fé em sua relação com o Judiciário e particulares, absolutamente descabida no atual estágio de evolução constitucional, e visando corrigir algumas falhas de equilíbrio e isonomia processual causadas por este abuso, que infelizmente tem se tornado comum em diversas situações. Ao Estado não cabe a irresponsabilidade processual mas, antes disso, o zelo maior pelo interesse público, inclusive mediante a busca do atendimento da função social do processo.
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[1] Ainda que possa ser também interpretado como característica da Jurisdição, na lição de Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
[2] Conforme bem fundamentado por Helena Najjar Abdo, “o abuso do processo apoia-se nas fórmulas da teoria do abuso do direito, oriunda do direito privado”. O abuso do processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
[3] Como se pode abusar de algo, se este algo é de direito, ou como seria abusivo um comportamento que é garantido ao sujeito? Ou ainda, em se tratando de efetivo abuso, ato lesivo a outrem, e fosse esta conduta tutelada pelo direito, passaria o ato combatido a ser tido como irregular, ou ilícito, como qualquer forma de responsabilidade extracontratual. Contudo, não nos perderemos nesta discussão, como dito, tendo para nós que a expressão abuso de direito se presta a maior utilidade para a compreensão do instituto que ora analisamos.
[4] Op. Cit., p. 30, 40 e 45.
[5] BECHO, Renato Lopes. Filosofia do direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2009.
[6] Em razão da função pública do processo, o que se reforça pelo texto do art. 125, III do CPC.
[7] Em semelhança ao instituto do contemp of court inglês.
[8] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
[9] “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. RECONHECIMENTO PELA FAZENDA DA PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. CONDENAÇÃO EM CUSTAS E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. POSSIBILIDADE. ART. 26 DA LEF. INAPLICABILIDADE.
1. Discute-se nos autos a possibilidade de condenação da Fazenda Pública Municipal ao pagamento de verba honorária, ainda que a exequente tenha reconhecido o pedido formulado pela contribuinte em sede de exceção de pré-executividade.
2. O entendimento desta Corte é no sentido de que a desistência da execução fiscal, após oferecidos os embargos à execução pelo devedor, não exime a exequente do pagamento da verba honorária. Sobre o tema, editou-se a Súmula n. 153/STJ, in verbis: "a desistência da execução fiscal, após o oferecimento dos embargos não exime o exeqüente dos encargos da sucumbência". Referida Súmula é utilizada por esta Corte para possibilitar a condenação da Fazenda Pública em verba honorária, não obstante o que dispõe o art. 26 da Lei n. 6.830/80. O mesmo raciocínio pode ser utilizado para possibilitar a condenação da Fazenda Pública exequente em honorários advocatícios quando a extinção da execução ocorrer após a contratação de advogado pelo executado, ainda que para oferecer exceção de pré-executividade.
3. Precedentes: AgRg no AgRg no REsp 1217649/SC, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 14.10.2011; REsp 1239866/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 15.4.2011; e AgRg no REsp 1201468/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 16.11.2010.
4. Agravo regimental do Município de Belo Horizonte não provido. (...) 4. Agravo regimental de Transportes Unidos Região Norte Ltda. não provido.”
(STJ-2ªT., Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº. 201200483995, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJ 21/08/2012)
[10] Em julgado interessantíssimo ao tema deste trabalho, o STF se manifestou:
“RECURSO DE AGRAVO – RECURSO EXTRAORDINÁRIO DENEGADO NA ORIGEM – FGTS – CORREÇÃO MONETÁRIA – MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL – HIPÓTESE DE OFENSA REFLEXA – INADMISSIBILIDADE DO APELO EXTREMO – AGRAVO IMPROVIDO.
(...)
RAZÕES DE ESTADO NÃO PODEM SER INVOCADAS PARA JUSTIFICAR O DESCUMPRIMENTO DA CONSTITUIÇÃO. É preciso advertir que as razões de Estado – quando invocadas como argumento de sustentação da pretensão do Poder Público ou de qualquer outra instituição – representam um perigoso ensaio destinado a submeter, à vontade do Príncipe (o que é intolerável), a autoridade hierárquico-administrativa da própria Constituição da República, comprometendo, desse modo, a ideia de que o exercício do poder estatal, quando praticado sob a égide do regime democrático, está permanentemente exposto ao controle social dos cidadãos e à fiscalização de ordem jurídico-constitucional dos magistrados e Tribunais.” – negou-se provimento ao agravo regimental e impôs-se à Caixa Econômica Federal multa de 5% do valor da causa, nos termos do art. 557, §2º do Código de Processo Civil.
(STF-2ªT., Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº. 239.874-4. Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 10/09/1999)
[11] “RECURSO. EXTRAORDINÁRIO. INADMISSIBILIDADE. JURISPRUDÊNCIA ASSENTADA. AUSÊNCIA DE RAZÕES NOVAS. DECISÃO MANTIDA. Agravo regimental improvido. Nega-se provimento a agravo regimental tendente a impugnar, sem razões novas, decisão fundada em jurisprudência assente na Corte. 2. RECURSO. Agravo. Regimental. Jurisprudência assentada sobre a matéria. Caráter meramente abusivo. Litigância de má-fé. Imposição de multa. Aplicação do art. 557, § 2º, cc. arts. 14, II e III, e 17, VII, do CPC. Quando abusiva a interposição de agravo, manifestamente inadmissível ou infundado, deve o Tribunal condenar o agravante a pagar multa ao agravado.”
(STF-1ªT., Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº. 353.983. Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 22/06/2005)
[12] Processo tributário. 3ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 180.
[13] Art. 3º da Lei 6.830/1980 e arts. 586 e 618 do Código de Processo Civil.
[14] “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL SUBMETIDO À SISTEMÁTICA PREVISTA NO ART. 543-C DO CPC. EXECUÇÃO FISCAL. INCLUSÃO DOS REPRESENTANTES DA PESSOA JURÍDICA, CUJOS NOMES CONSTAM DA CDA, NO PÓLO PASSIVO DA EXECUÇÃO FISCAL. POSSIBILIDADE. MATÉRIA DE DEFESA. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. EXCEÇÃO DE PRÉ- XECUTIVIDADE. INVIABILIDADE. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. A orientação da Primeira Seção desta Corte firmou-se no sentido de que, se a execução foi ajuizada apenas contra a pessoa jurídica, mas o nome do sócio consta da CDA, a ele incumbe o ônus da prova de que não ficou caracterizada nenhuma das circunstâncias previstas no art. 135 do CTN, ou seja, não houve a prática de atos "com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos". (...) 4. Recurso especial desprovido.”
(STJ-1ªS., Recurso Especial nº. 2008/0274357-8. Rel. Min. Denise Arruda, DJ 01/04/2009)
[15] Há inúmeras situações em que isto ocorre, como no caso da procuradoria defender ferozmente a conduta da administração e, pouco depois, o ente administrativo fazendário concordar com as razões do contribuinte e levantar a restrição imposta ou cancelar o crédito antes cobrado, sem maior litigiosidade, a exemplo dos tão comuns pedidos de certidão de regularidade. Também se verifica esta situação cotidianamente quando se ajuíza ação em face de lentidão da administração em apreciar pleito administrativo e, depois de defesa da rejeição do pleito em sede judicial, a administração concede o quanto requerido sem apresentar oposição. A defesa em juízo, em tal situação, deveria se restringir aos motivos que obrigariam ou não a administração à análise antecipada do pleito extrajudicial, e não à defesa pela rejeição do quanto requerido, se a Procuradoria não tem subsídios para tal manifestação em juízo.
[16] Aqui também podemos citar exemplos que, infelizmente não são incomuns, tais como a reiterada alegação de ilegitimidade passiva em mandado de segurança, alegado por algumas Fazendas independentemente da autoridade que se escolha para a impetração da demanda, defendendo-se como legítima para a prática do ato administrativo, em cada ação, a parte que não consta na demanda.
[17] Exemplos não nos faltam, basicamente calcados na febre da penhora on-line que atualmente se abateu sobre as procuradorias, como uma finalidade processual em si mesma, ou na verdadeira pavor que parece haver no instituto da carta de fiança bancária – como se fosse jurídico o Banco Central autorizar particulares a tomar crédito bancário de entidades de cuja idoneidade duvida a fazenda pública, ou por mero desconhecimento ou prazer que se parece ter criado pela rejeição desta forma de garantia, que ao mesmo tempo tem liquidez equivalente ao depósito judicial e permite a manutenção das atividades da empresa sem o esgotamento do caixa disponível.
Situação semelhante, mas afeta ao abuso do direito de defesa (macroscópica) constitui em rejeição de modalidade de garantia líquida em cautelar antecipatória de garantia, ajuizada pelo contribuinte para apenas antecipar os efeitos da garantia da execução ainda não proposta pela Fazenda. Absurdo, aqui, se falar em agressão ao interesse público quando o próprio devedor se antecipa na garantia da dívida antes de qualquer atuação do credor.
[18] Aqui trazemos o exemplo do pedido de comprovação ou de averiguação de lançamento e recolhimento de tributo em relação a terceiro, quando há cobrança em face de responsável e/ou contribuinte principal com previsão normativa de recolhimento por terceiro – o não fornecimento de dados da fazenda com relação à quitação da obrigação por terceiro poderia levar à cobrança em duplicidade.
[19] Uma discussão que se poderia travar seria com relação à aplicação da terminologia “abuso” ao descumprimento de ordem judicial, considerando a figura do abuso como uma extrapolação do uso de um direito subjetivo e a inexistência de qualquer direito da parte ao descumprimento de decisão judicial – comportamento já de plano configurado como ilícito. Contudo, esta possível diferenciação terminológica, como mencionado, não importará tanto ao estudo em tela, mormente diante das limitações de escopo e espaço. Cabe apenas consignar que esta problemática não impedirá, de qualquer forma, a punição do desvio comportamental, até porque expressamente previsto e tratado da mesma forma que outras espécies de abuso pela norma processual. Por outro lado, a terminação “abuso” poderia, sim, ser aplicada ao descumprimento perpetrado pela administração, eis que sua presunção de legalidade emprestaria a aparência de regularidade própria a este instituto – ainda que em nada arranhe a evidente irregularidade decorrente da violação da ordem judicial.
Advogado (escritório CPBS Advogados). Mestrando em direito tributário pela PUC/SP. Especialista em direito tributário pela PUC-COGEAE, com cursos de extensão pela GV-Law. Perfil Linkedin: "Rafael Vega Possebon da Silva". <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Rafael Vega Possebon da. O abuso do processo pela Fazenda Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 fev 2015, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43279/o-abuso-do-processo-pela-fazenda-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
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