Resumo: Este artigo pretende explicar de maneira sucinta o fenômeno social hodierno conhecido como neoescravidão, que macula a função social do trabalho constitucionalmente atribuída, expondo seus conceitos e principais características delineadoras, através de comparações com a escravidão nos moldes clássicos e apontar a legislação pátria vigente e tratados e convenções internacionais utilizados nos dias atuais visando o combate concreto e efetivo da neoescravidão.
Palavras-chave: Neoescravidão; Legislação Interna; Tratados e Convenções Internacionais.
Sumário: Introdução; 1. Da neoescravidão; 2. Da legislação destinada ao combate da neoescravidão; Conclusão; Referências Bibliográficas.
Introdução
A Constituição Republicana de 1988 em seu artigo 1º, inciso IV, atribuiu status de função social para o trabalho e, consequentemente, para as relações trabalhistas, sendo uma das diretrizes pelas quais se deve nortear a República Federativa do Brasil.
Ocorre que, a despeito do valor social conferido ao trabalho, bem como a imposição de condições dignas àqueles que o exercem, a existência de trabalho em condições desumanas, hediondamente próximas às que eram submetidos os escravos até 1888, ignorando fundamentos estatais basilares, é fato conhecido que perdura até os dias atuais.
No contexto histórico escravidão é forma de sujeição do homem, onde o ser humano e sua força de trabalho é compreendida como propriedade privada de outrem. Em relação de total submissão, o escravo não possui direitos e sequer tem respeitada a sua dignidade como pessoa humana, pois não é considerado como tal, mas sim é avaliado como um animal ou uma coisa.
Embora a escravidão da maneira clássica como supracitado tenha sido legalmente extinta em 13 de maio de 1888, a chaga da exploração do trabalho permanece até os dias atuais, tendo adquirido novos contornos apenas
A seguir passe-se a explicar o conceito de neoescravidão e as formas legais de combate.
1. Da Neoescravidão
A escravidão da maneira tradicional historicamente conhecida, na qual o homem é visto como objeto passível de alienação e exploração absoluta, foi extirpada do nosso ordenamento jurídico pela Lei Áurea em 13 de maio de 1888.
Perdura nos dias atuais uma nova forma de escravidão, conhecida como “neoescravidão”, que, embora possua novos moldes e contornos ainda ignora a dignidade da pessoa humana dos trabalhadores a ela submetidos.
Sobre a persistência desse mal social discorre Schwartz:
“Embora possa parecer que a escravidão é problema do passado e, assim, assunto apropriado para historiadores, seu legado ainda vive, como revela qualquer estudo da distribuição de renda por cor. Ademais, as recentes descobertas de trabalho forçado na agricultura e no garimpo em condições de cativeiro em diversas partes do país no início do século XXI demonstraram que ainda paira a sombra da escravidão sobre o Brasil e que as forças da ganância e do poder se tornaram tal instituição durável antes de 1888 não desapareceram, porém simplesmente se transformaram num contexto moderno”. (SCHWARTZ, 2001, p.57) [1]
Sobre os novos moldes da escravidão nos dias atuais discorre Sento-Sé:
“Um ponto fundamental que distingue o trabalho escravo na atualidade daquele encontrado até o final do século XIX é o fato de o trabalhador não mais ser parte integrante do patrimônio do patrão. E isto não poderia ser tolerado hodiernamente, em razão do que preceitua a nossa Constituição Federal, que coloca a dignidade da pessoa humana como um os fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III)”. (SENTO-SÉ, 2000, p.24)[2]
No Brasil a exploração da mão-de-obra em condições que possa ser enquadrada como neoescravidão ocorre predominantemente na área de trabalho rural, no entanto, a mesma já foi empregada em nosso país em outros setores, como leciona Dodge (2002) sobre:
“A escravidão existe no Brasil, os casos não são isolados, nem atingem reduzido número de pessoas. Foi utilizada para promover a ocupação da Região Amazônica na década de 70, conforme denúncia pública pioneira de dom Pedro Casaldáliga, bispo católico, em carta pastoral (Casaldáliga,1971). Foi largamente utilizada na década de 80 em empreendimentos agrícolas de grandes e modernas empresas como Bradesco, BCN, Bamerindus, Volkswagen (Martins, 1997). Continua a ser amplamente utilizada na Região Amazônica - mas também no Mato Grosso do Sul e em Minas Gerais -, mediante o aliciamento de trabalhadores, em diferentes pontos do território nacional, sobretudo em localidades onde não há oportunidades de emprego ou de trabalho”. (DODGE, 2002, p.133)[3]
É consenso entre os estudiosos que são cinco os elementos indissociáveis da escravidão brasileira hodierna, os quais elenca Castilho (2000):
“O exame da realidade brasileira aponta para a existência de cinco etapas que possibilitam a hipótese extrema do trabalho análogo à escravidão, ou simplesmente escravo. São elas: o recrutamento, o transporte, a hospedagem, a alimentação e a vigilância. Cada uma das etapas apresenta algum componente de fraude, violência física, ameaça, constrangimento psicológico, que justificam a criminalização.[4]
2. Da legislação destinada ao combate da neoescravidão
O combate à neoescravidão envolve uma série de abordagens distintas, sendo, contudo, inegável o papel central das legislações internas e tratados internacionais que versam sobre a coibição dessa moléstia social moderna.
O papel dos tratados é inquestionável, sendo usado como respaldo em caso de lacuna legal em nosso ordenamento pátrio.
Dispõe sobre a prática da exploração do trabalho a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo IV:
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Artigo IV - Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Em igual sentido veio a ONU, em convenção suplementar, discorrer o que é considerado servidão:
ONU - CONVENÇÃO SUPLEMENTAR SOBRE PRÁTICAS ANÁLOGAS À ESCRAVATURA*
- A servidão por dívidas, isto é, o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida;
- A servidão, isto é, a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição;
* Promulgada pelo Decreto nº 58.563 de 1º de junho de 1966.
A Organização Internacional do Trabalho também estipulou a proibição da prática da neoescravidão através de sua Convenção 29:
CONVENÇÃO 29 DA OIT
Art. 2º - 1 Para fins da presente convenção, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade.
No plano interno a legislação vigente que visa à proteção dos trabalhadores contra a sua sujeição às condições de trabalho degradantes se dão principalmente pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conforme transcrição que segue:
CONSTITUIÇÃO FEDERAL – ART. 5º
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XLVII - não haverá penas:
c) de trabalhos forçados;
Por fim o Código Penal Brasileiro proíbe a prática exploratória em seus artigos 198, 203 e 207, com redação dada pela Lei 9.777/98:
CÓDIGO PENAL
ART.198 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a celebrar contrato de trabalho, ou a não fornecer a outrem ou não adquirir de outrem matéria-prima ou produto industrial ou agrícola:
Pena - detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, e multa, além da pena correspondente à violência.
- Frustração de direito assegurado por lei trabalhista
ART.203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:
Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º Na mesma pena incorre quem:
I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida;
II - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental.
Aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional
ART.207 - Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional:
Pena - detenção de um a três anos, e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental.
Conclusão
Neste artigo, vimos que, embora legalmente extinta há 126 anos a escravidão ainda é um mal presente em nossa sociedade nos dias atuais, embora tenha adquirido novos contornos e moldes.
Defeso como princípio estatal basilar, a função social que o trabalho desempenha em nossa sociedade e ordenamento jurídico, não pode ser desafiada sem os devidos meios de coibição e punição.
Amparando-se em nossa legislação pátria e em tratados dos quais o Brasil é signatário caminhamos para uma efetiva erradicação da chaga social hodierna da neoescravidão.
Referências bibliográficas
CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Considerações sobre a interpretação jurídico-penal em matéria de escravidão. Estudos Avançados, São Paulo, v.14, n.38, p.51-60, 2000.
DODGE, Raquel Elias Ferreira. A defesa do interesse da União em erradicar formas contemporâneas de escravidão no Brasil. B. Cient, a.I, n.4, p.133/151, Brasília, ESMPU, julho/setembro, 2002. Artigo.
SCHWARTZ, Stuart. Escravos roceiros e rebeldes. Bauru: Ed. Universidade do Sagrado Coração, 2001.
SENTO-SÉ, Jairo Lins de Albuquerque. Trabalho escravo no Brasil na atualidade. São Paulo: LTr, 2000.
[1] SCHWARTZ, Stuart. Escravos roceiros e rebeldes. Bauru: Ed. Universidade do Sagrado Coração, 2001.
[2] SENTO-SÉ, Jairo Lins de Albuquerque. Trabalho escravo no Brasil na atualidade. São Paulo: LTr, 2000.
[3] DODGE, Raquel Elias Ferreira. A defesa do interesse da União em erradicar formas contemporâneas de escravidão no Brasil. B. Cient, a.I, n.4, p.133/151, Brasília, ESMPU, julho/setembro, 2002. Artigo.
[4] CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Considerações sobre a interpretação jurídico-penal em matéria de escravidão. Estudos Avançados, São Paulo, v.14, n.38, p.51-60, 2000.
Advogada (graduada na Faculdade Municipal de Direito de Franca e pós-graduanda em Contratos pelo INAGE - USP Ribeirão Preto/SP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAIM, Eline Luque Teixeira. Legislação vigente no combate à neoescravidão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 mar 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43518/legislacao-vigente-no-combate-a-neoescravidao. Acesso em: 23 dez 2024.
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