Resumo: O presente artigo objetiva avaliar a culpabilidade como circunstância judicial do artigo 59 do Código Penal. Para tanto, analisa-se o conceito do de culpabilidade na dosimetria penal e as correntes existentes na doutrina e na jurisprudência acerca da valoração da culpabilidade na primeira fase de aplicação da pena.
Palavras-chave: Culpabilidade. Circunstância Judicial. Medida da Pena.
1. INTRODUÇÃO
A culpabilidade, no âmbito do Direito Penal, em especial na dosimetria, deve ser encarada em face a duas acepções: fundamento da pena ou medida da pena.
Com efeito, a acepção de culpabilidade como fundamento da pena diz respeito ao juízo de censura, de reprovação da conduta típica e ilícita praticada pelo agente imputável.[1]
Reprova-se o ato daquele indivíduo que, com potencial consciência da ilicitude, poderia ter agido de modo diverso.[2]
Deve-se, então, em primeiro lugar, classificar a conduta do agente como ilícito, para, em momento posterior, aplicar a retribuição penal devida, ou seja, estabelecer uma pena proporcional à violação do bem jurídico tutelado.[3]
Para o presente artigo, interessa o significado de culpabilidade como medida da pena.
2. DESENVOLVIMENTO
Com a reforma penal de 1984, as expressões “intensidade do dolo” e “grau de culpa”, constantes no artigo 59 do Código Penal, foram substituídas pela palavra “culpabilidade”, com a justificativa de que “graduável é a censura cujo índice, maior ou menor, incide na quantidade de pena”.[4]
Significa dizer que a culpabilidade como medida da pena é o grau de censura atribuível ao autor do crime.
Os comportamentos humanos são valoráveis e merecem graus diferentes de censura, de reprovação. Assim, tem-se que cada delito praticado é, sem dúvidas, graduável, mensurável. Por isso, ao comparar crimes entre si, pode-se concluir que um foi praticado de maneira mais repugnante do que outro, motivo pelo qual o autor do crime mais repugnante deverá obter uma pena exasperada em relação ao agente do delito menos repugnante.[5]
Vale esclarecer, no entanto, que o juízo de valoração da conduta praticada pelo indivíduo não refere à opinião do julgador quanto à gravidade abstrata do crime. O magistrado tem de se atentar para que seus pensamentos pessoais não sobreponham à objetividade da lei.
Destarte, deve-se ter em mente que o legislador já previu a gravidade do delito ao cominar pena mínima e pena máxima a cada tipo penal.
Entende-se, portanto, que quanto maior a culpabilidade, maior deverá ser a pena aplicada. Inversamente, quanto menor a culpabilidade, mais branda deverá ser a pena.[6]
Nessa esteira indaga-se quais serão os critérios idôneos para concluir que determinado indivíduo agiu com culpabilidade mais intensa, merecendo então ter sua pena exasperada?
Sobre a questão, a doutrina e a jurisprudência divergem e bifurcam-se.
Para uma primeira posição, o grau de censura deve ser averiguado de acordo com as condições pessoais do agente, da situação fática e concreta que ocorreu o crime, isto é, levando-se em consideração o comportamento exigido no caso real, o grau de instrução, a condição social, a vida familiar, a cultura e o meio social onde vive e viveu o réu.[7]
Assim, o julgador deve levar em conta as circunstâncias pessoais e fáticas do caso, especialmente a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa, a fim de atribuir justo grau de censura ao autor do crime.[8]
Em contraposição, a outra corrente entende que a expressão culpabilidade a partir de então utilizada não afasta a consideração do elemento subjetivo na fixação da pena.[9] Isso porque, conforme mencionado, antes da reforma penal de 1984, a lei utilizava as expressões “intensidade do dolo” e “grau de culpa”, as quais foram substituídas pela palavra “culpabilidade”.
No entanto, critica-se que a determinação da pena inicial com fundamento na intensidade do dolo se trata de consideração vazia e normativamente inadequada. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal já decidiu nesse sentido, quando determinou a anulação do Acórdão que majorou a pena-base do réu em razão da intensidade do dolo.
Na citada decisão, o Pretório Excelso considerou que a referência à intensidade do dolo será fórmula vazia só quando não relacionada às circunstâncias concretas da determinação.[10]
Mas também a própria Corte Suprema já decidiu de outra forma, ao entender que não é nula a aplicação da pena acima do mínimo legal com base na culpabilidade, que inclui o conceito de intensidade do dolo.[11]
Portanto, imperiosa se faz a análise dos elementos dolo e culpa.
No que tange ao dolo, verifica-se que a doutrina e a jurisprudência distinguem o dolo refletido (propositum) do dolo irrefletido (impetus).
O dolo premeditado é aquele que traduz reflexão, ponderação, traduzindo maior criminalidade do agente. Por sua vez, o dolo de ímpeto é aquele que surge de improviso, que é menos censurável que o dolo premeditado.[12]
Contudo, o curto espaço de tempo em que se intercala entre a deliberação e a execução pode refletir luta íntima do criminoso, embate entre o impulso delitivo e os freios inibitórios, sendo, na grande maioria das vezes, impossível ao julgador aferir se o agente agiu com dolo de ímpeto ou com dolo premeditado.[13]
Em decorrência disso, deve o juiz buscar colher o máximo de elementos na fase probatória, a fim de obter êxito na distinção de qual dolo foi movido o réu a prática do delito.
Ademais, ainda no que concerne ao dolo, a culpabilidade também pode ser medida tendo em vista o dolo direto ou o dolo eventual.
Com efeito, o dolo direto demonstra a nítida e deliberada intenção de violação da ordem jurídica. Em contrapartida, o dolo indireto é a mera possibilidade de violação da ordem jurídica, sendo que, embora o agente não deseje violá-la, acaba assumindo o risco.[14]
Nota-se, pois, que o dolo direto demonstra-se mais intenso que o dolo eventual, razão pela qual, por conseguinte, aquele que praticou o crime com dolo direto, deve receber maior censura penal.
Portanto, malgrado o dolo estar localizado no âmbito da tipicidade, deve ser considerado para avaliar o grau de censurabilidade da conduta, eis que quanto mais intenso o dolo, maior será a reprimenda e quanto menor a sua intensidade, menor será a reprimenda.[15]
Todavia, repita-se, tal constatação é muito complicada de se fazer, já que nem sempre o réu transporta abertamente o que se passou em seu mundo interior para o mundo exterior.[16]
Um dos pontos fundamentais, para verificar a intensidade do dolo, é a conduta do agente antes e depois do crime. Deve o juiz fundamentar a prova da intensidade do dolo, de acordo com a intensidade concretizada no mundo exterior.[17]
Na culpa, vê-se que a vontade não é a prática de ato ilícito, mas que esse ato se manifesta de modo imprudente, imperito ou negligente. Deve-se atentar ao fato de que o resultado tem de ser previsível ou mesmo previsto, tendo o agente esperar que não haja sua ocorrência. Assim, cresce o grau da culpa, com a grandeza da imprudência, negligência ou imperícia do agente. Cresce outrossim com a maior previsibilidade do resultado.[18]
O grau de culpa (grave, leve ou levíssimo) diz respeito a maior ou menor previsibilidade do resultado lesivo, bem como aos cuidados objetivos exigíveis ao agente. Dessa forma, pode-se concluir pela maior ou menor censurabilidade da conduta culposa.[19]
Observa-se que dolo e culpa se excluem reciprocamente. Aquele que age com dolo almeja à concretização de determinado resultado e, quem age com culpa, não visa à realização de nenhum fim.[20]
Sendo assim, admite-se uma relação de gradação normativa entre os dois, na medida em que se considera que o juízo de censura por dolo é mais grave do que o juízo de censura por culpa.[21]
3. CONCLUSÃO
Ante o exposto, adotando-se a primeira corrente, o grau de censura deve ser averiguado de acordo com as condições pessoais do agente, da situação fática e concreta que ocorreu o crime, isto é, levando-se em consideração o comportamento exigido no caso real, o grau de instrução, a condição social, a vida familiar, a cultura e o meio social onde vive e viveu o réu.
Adotando-se a segunda corrente, conclui-se que um dolo mais intenso ou uma culpa mais grave são elementos preciosos para se concluir qual graduação deve ser aplicada na primeira fase da dosimetria, no tocante ao critério culpabilidade.
REFERÊNCIAS
- BOCCHI. José Antônio Paganella. Das Penas e seus critérios de aplicação. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
- BRUNO. Anibal. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Editora Forense, 1967.
- CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001.
- LYRA, Roberto. Comentários ao código penal: decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 2 (arts. 28 a 74).
- MIRABETE. Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
- NORONHA. E. Magalhães. Direito penal. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1.
- PRADO. Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. v. 1.
- PUPPE. Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. São Paulo: Editora Manole, 2004.
- QUEIROZ. Paulo. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
- SIQUEIRA. Galdino. Tratado de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1950. Tomo II.
- SOUZA. Paulo S. Xavier de. Individualização da pena no estado democrático de direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2006.
- TELES. Ney Moura. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. 1.
[1] PRADO. Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. v. 1. p. 517.
[2] TELES. Ney Moura. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. 1. p. 360-362.
[3] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 47-48.
[4] MIRABETE. Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 23. Ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 298-299.
[5] TELES. Ney Moura. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. 1. p. 360-362. Nesse sentido: “Pressuposto, assim, evidentemente, a culpabilidade, o juiz a tomará, agora, como um elemento indispensável à medição da pena, vale dizer, tomá-la-à em consideração para fixar uma reprimenda compatível com o grau maior ou menor de reprovabilidade da conduta”. QUEIROZ. Paulo. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 336.
[6] TELES. Ney Moura. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. 1. p. 360-362.
[7] SOUZA. Paulo S. Xavier de. Individualização da pena no estado democrático de direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2006. p. 132.
[8] MIRABETE. Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 23. Ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 298-299.
[9] MIRABETE. Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 23. Ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 298-299.
[10] HC n° 68742, Relator Ministro Otávio Galloti, DJU de 02.04.1993, p. 5620.
[11] RHC, Relator Ministro Carlos Madeira, RT628/370.
[12] SIQUEIRA. Galdino. Tratado de direito penal. 2. Ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1950. Tomo II. p. 756-757.
[13] NORONHA. E. Magalhães. Direito penal. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1. p. 239.
[14] BOCCHI. José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 188-189.
[15] QUEIROZ. Paulo. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 336.
[16] LYRA, Roberto. Comentários ao código penal: decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 2 (arts. 28 a 74). p. 222-223.
[17] LYRA, Roberto. Comentários ao código penal: decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 2 (arts. 28 a 74). p. 222-223.
[18] BRUNO. Anibal. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Editora Forense, 1967. p. 157-158.
[19] MIRABETE. Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 23. Ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 298-299.
[20] PUPPE. Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. São Paulo: Editora Manole, 2004. p. 07-08.
[21] PUPPE. Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. São Paulo: Editora Manole, 2004. p. 09.
Defensora Pública do Estado de Santa Catarina. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAUN, Raquel Paioli. A culpabilidade como circunstância judicial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 mar 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43525/a-culpabilidade-como-circunstancia-judicial. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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