Resumo: O presente artigo objetiva avaliar a impossibilidade de aplicação de internação-sançãoem caso de descumprimento de medida socioeducativa concedida por remissão. Para tanto, analisa-se o conceito do instituto da remissão, sua natureza e suas espécies.
Palavras-chave: Remissão. Medida Socioeducativa. Internação-sanção.
1. INTRODUÇÃO
O instituto da remissão, previsto no art. 126 do Estatuto da Criança e do Adolescente, é conceituado como espécie de perdão concedido ao adolescente.[1]
A remissão tem origem no art. 11 das Regras de Beijing e, na versão inglesa do documento, é referida como diversion– adoção de procedimento diferenciado daquele ordinariamente previsto para apuração de atos infracionais.[2]
Tratando-se, portanto, de procedimento diferenciado, é possível a aplicação da internação-sanção, prevista no art. 122, inciso III, do Estatuto da Criança e do Adolescente, em caso de descumprimento em medida socioeducativa aplicada por remissão?
2. DESENVOLVIMENTO
A remissão pré-processual é concedida pelo Ministério Público como forma de exclusão do processo, quando da apresentação do adolescente para oitiva informal.
O Ministério Público, ao invés de oferecer representação, em atenção à mitigação do princípio da obrigatoriedade e com fundamento no princípio da oportunidade, propõe a remissão ao adolescente, que pode aceitar ou recusar.
Nessa fase, o Ministério Público avalia, para tanto,as circunstâncias e consequências do fato, o contexto social, a personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional (art. 126, caput).
Concedida a remissão pelo órgão ministerial, os autos são encaminhados ao juiz para homologação ou não da remissão. Em caso de discordância, cabe ao Procurador-Geral de Justiça decidir se oferecerepresentação, designa outro membro do Ministério Público para apresentá-la, ou ratifica a remissão, quando então estará o magistrado obrigado a homologar (art. 181do ECA).
A remissão processual, que é aquela aplicada após iniciado o processo, é aplicada pelo juiz, ouvido o Ministério Público (art. 186, §1°), como forma de suspensão ou extinção do processo (art. 126, parágrafo único), em qualquer momento depois do recebimento da representação.
Geralmente, a remissão é concedida na audiência de apresentação, o que visa à observância dos princípios da celeridade e economia processual. Todavia, nada impede que seja aplicada em outro momento processual, desde que anterior à prolação da sentença.
Nessa linha, traz-se à baila as lições de Antônio Chaves:
É a remissão o exercício de uma espécie de poder moderador, e tem como escopo a racionalização do procedimento, pois só permite a sua instauração ou continuidade quando verificada a sua real necessidade, poupando assim, o adolescente, das expiações de um processo prescindível, e a Justiça, da movimentação de todo um sistema, para apreciação de questões de pequenas consequências, mais facilmente solucionadas extraprocessualmente. Além do que, contribui sobremaneira este instituto para desafogar a máquina judiciária.[3]
O art. 127 do Estatuto da Criança e do Adolescente elenca duas importantes características da remissão.
A aceitação da remissão não implica em assunção de responsabilidade pelo ato infracional, ou seja, não significa que o adolescentereconheceu a sua “culpabilidade”. Ademais, a remissão não vale como antecedentes na ficha do adolescente.[4]
Trata-se, portanto, de instituto aplicado sem observância do contraditório, ampla defesa e devido processo legal.
A remissão pode incluir a aplicação de medida de proteção e medida socioeducativa, exceto a semiliberdade e a internação, classificadas como medidas socioeducativas privativas de liberdade.
A remissão pura e simples é aquela que não comina a aplicação de nenhuma medida socioeducativa (remissão própria), enquanto que a remissão como transação é que aquela que inclui a aplicação de medida socioeducativa (remissão imprópria).
Com efeito, a remissão processual impõe a extinção do processo quando constituir perdão puro e simples ou incluir medida que se esgote em si mesma, como a advertência (art. 115do ECA). Já a suspensão do processo é pertinente quando for aplicada medida socioeducativa de obrigação de reparar o dano (art. 116do ECA), prestação de serviços à comunidade (art. 117 do ECA) ou liberdade assistida (arts. 118 e 119 do ECA).[5]
A aplicação das medidas socioeducativas, em sede de remissão, como mencionado anteriormente, não implica a assunção de responsabilidade pelo adolescente e, dessa forma, dispensa a existência de provas suficientes da autoria e da materialidade do ato infracional.
Nessa esteira, a remissão se aproxima umbilicalmente dos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, o que atrai a proibição de aplicação de internação-sanção em caso de descumprimento da medida socioeducativa aplicada através de remissão.
Acerca da natureza do instituto da remissão, ensina Valter KenjiIshida:
O caráter transacional da remissão fica evidente fica evidente quando confrontada com a Lei 9.099/95, que institui a transação e a suspensão condicional do processo no juízo criminal. Na verdade, o conteúdo das normas dos arts. 126 e 127 do ECA antecipou a introdução do princípio da oportunidade e da transação no direito minorista em 1990, para depois surgir no direito penal e processual penal em 1995. Confrontando estes dispositivos com alguns da Lei 9.099/95 como dos arts. 69 a 76 e do art. 89, notam-se várias semelhanças, como o objetivo de se evitar o início do processo ou, se iniciado o mesmo, a maneira de se objetivar sua suspensão ou extinção, ainda quando menciona que não prevalece para efeito de antecedentes e quando acaba por aplicar pena (ainda com característica diferente) e medida socioeducativa, antecipadamente.[6]
Ainda, cita-se precedente do Superior Tribunal de Justiça:
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. HABEAS CORPUS. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO TRÁFICO DE ENTORPECENTES. INEXISTÊNCIA DE REITERAÇÃO.
APLICAÇÃO DA MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE INTERNAÇÃO POR PRAZO INDETERMINADO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. ORDEM CONCEDIDA.
1. Nos termos da legislação de regência, a medida de internação só poderá ser aplicada quando se tratar de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa, por reiteração na prática de outras infrações graves ou descumprimento reiterado e injustificável de medida anteriormente imposta.
2. O ato infracional equiparado ao delito de tráfico de entorpecentes não autoriza a imposição da medida sócio-educativa de internação com fundamento no art. 122, inciso I, do ECA.
3. Somente é considerada reiterada a prática de conduta infracional quando são praticados três ou mais atos infracionais.
4. A remissão não implica o reconhecimento ou a comprovação da responsabilidade nem prevalece para efeitos de antecedentes, equiparando-se ao instituto da transação previsto no âmbito dos Juizados Especiais Criminais.
5. Ordem concedida para anular a medida de internação, mantendo a de liberdade assistida, sem prejuízo de que outra mais adequada seja aplicada ao adolescente.[7]
Tendo em vista que o adolescente não pode ter tratamento mais gravoso que dado a um adulto, conforme art. 35, inciso I, da Lei 12.594/12 e item 54 das Regras Mínimas das Nações Unidas Para Prevenção da Delinqüência Juvenil (Regras de RIAD), aplica-se o que prescreve a novel Súmula Vinculante nº 35, in verbis:
A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial.
Portanto, na fase pré-processual, como forma de exclusão do processo, em caso de descumprimento da medida socioeducativa, cabe ao Ministério Público oferecer representação, dando início ao processo de apuração de ato infracional.
Na modalidade suspensão do processo, esta deve ter prazo certo e, em caso de descumprimento da medida socioeducativa, deve o Ministério Público ser instado a dar reinício ao processo de apuração de ato infracional, concedendo-se ao adolescente o exercício do contraditório e da ampla defesa.
Já na forma extintiva, o descumprimento da medida socioeducativa configura mera obrigação natural, podendo apenas ser substituída por outra medida em meio aberto (art. 128 do ECA).
A Lei nº 12.594/2012, em seu § 4º do art. 43, prescreveu como uma das garantias formais do adolescente que a substituição por medida mais gravosa somente ocorrerá em situações excepcionais, após o devido processo legal, inclusive na hipótesedo inciso III do art. 122 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Dessa forma, não é possível a aplicação de internação-sanção quando aplicada em remissão, sob pena de se admitir uma forma indireta de privação da liberdade sem o devido processo legal e uma inaceitável reprodução de uma inquisição medieval.
Nessa linha, João Batista Costa Saraiva:
mesmo em se admitindo que no curso do processo de execução se assegurará o contraditório e a ampla defesa (em fase da prova do descumprimento injustificado e reiterado), a aplicação de medida privativa de liberdade implicará a subtração do direito de defesa do fato originário da sanção, do próprio ato infracional.[8]
Essa peculiaridadeda remissão também enseja no afastamento da medida de internação com base no inciso II do art. 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Isso porque, caso o adolescente recebe uma remissão e posteriormente cometa novo ato infracional sem grave ameaça ou violência, não cabe a imposição de medida socioeducativa de internação.[9]
Ante o exposto, não é possível a aplicação de internação-sanção na hipótese de remissão, sob pena de se admitir uma forma indireta de privação da liberdade sem o devido processo legal e uma inaceitável reprodução de uma inquisição medieval.
Destarte, o descumprimento da medida socioeducativa concedida através de remissão, na modalidade exclusão/ suspensão do processo,deve ensejar o início/ reinício do processo, uma vez que o art. 110 do Estatuto da Criança e do Adolescenteexige que a medida socioeducativa de privação de liberdade somente pode ser aplicada quando houver observância do devido processo legal. Na forma extintiva, o descumprimento da medida socioeducativa configura mera obrigação natural, podendo apenas ser substituída por outra medida em meio aberto (art. 128 do ECA).
REFERÊNCIAS
- BARROS, Guilherme Freire de Melo Barros. Estatuto da Criança e do Adolescente. 6. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2012.
- CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001.
- CHAVES, Antônio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. ed. São Paulo: Ltr, 1997.
- DEZEM, Guilherme Madeira; AGUIRRE, João Ricardo Brandão; FULLER, Paulo Henrique Aranda. Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
- ISHIDA, VálterKenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
- ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei 8.069/90: artigo por artigo. 4. ed. rev., atual. eampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
- SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de direito juvenil: adolescente e ato infracional. 3.ed. Porto Aleg
[1] BARROS, Guilherme Freire de Melo Barros. Estatuto da Criança e do Adolescente. 6. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2012. p. 187.
[2]ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei 8.069/90: artigo por artigo. 4. ed. rev., atual. eampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 379.
[3]CHAVES, Antônio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. ed. São Paulo: Ltr, 1997. p. 566.
[4] BARROS, Guilherme Freire de Melo Barros. Estatuto da Criança e do Adolescente. 6. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2012. p. 188-189.
[5]DEZEM, Guilherme Madeira; AGUIRRE, João Ricardo Brandão; FULLER, Paulo Henrique Aranda. Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 102.
[6]ISHIDA, VálterKenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 207.
[7] HC 48.011/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 03/08/2006, DJ 04/09/2006.
[8]SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de direito juvenil: adolescente e ato infracional. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 140-141.
[9] BARROS, Guilherme Freire de Melo Barros. Estatuto da Criança e do Adolescente. 6. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2012. p. 189.
Defensora Pública do Estado de Santa Catarina. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAUN, Raquel Paioli. Da impossibilidade de aplicação de internação-sanção em caso de descumprimento de medida socioeducativa concedida em remissão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 mar 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43537/da-impossibilidade-de-aplicacao-de-internacao-sancao-em-caso-de-descumprimento-de-medida-socioeducativa-concedida-em-remissao. Acesso em: 23 dez 2024.
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