Resumo: O texto aborda os conceitos de liberdade e cidadania na obra de Jean-Jacques Rousseau, especificamente no livro “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”. Filósofo que marcou a modernidade ao instituir a necessidade de um contrato social e que muito bem compreendeu e soube distinguir o homem em seu estado natural e no convívio em sociedade.
Palavras-chave: liberdade; cidadania; sociedade
The themes of freedom and citizenship in the book "Discourse on the Origin and foundations of inequality among men," Jean-Jacques Rousseau
Abstract: This paper addresses the concepts of freedom and citizenship in the work of Jean-Jacques Rousseau, specifically in the book "Discourse on the Origin and foundations of inequality among men." Philosopher who scored modernity by establishing the need for a social contract and that very well understood and knew how to distinguish the man in his natural state and life in society.
Keywords: freedom; citizenship; society
Sumário: 1) Introdução; 2) Breve exposição da biografia de Rousseau; 3) À República de Genebra; 4) Prefácio; 5) Primeira Parte; 6) Segunda Parte; 7) Os conceitos de liberdade e cidadania: onde surgem e como terminam no “Discurso” de Rousseau; 8) Considerações finais; 9) Referências.
Summary: 1) Introduction; 2) Brief statement of Rousseau's biography; 3) the Geneva Republic; 4) Notice; 5) First Party; 6) Part; 7) The concepts of freedom and citizenship which arise and how they end in the "Address" of Rousseau; 8) Final considerations; 9) References.
1 - Introdução
NUMA TARDE do ano de 1749, um homem caminha pela estrada entre Paris e Vincennes. São treze quilômetros de terra batida, as árvores estão desfolhadas e distanciam-se muito umas das outras. Quase não há sombra alguma para suavizar o calor excessivo do verão, e o homem cansa-se fazendo o percurso a pé, pois não tem dinheiro para alugar um fiacre. É relativamente moço, com seus trinta e sete anos de idade, e procura apressar o passo para chegar mais cedo. Carrega consigo um exemplar do Mercure de France para distrair-se e lê ao acaso o que lhe cai sobre os olhos. Num desses momentos, tem a atenção despertada por uma notícia sobre o concurso da Academia de Dijon para o ano seguinte. Os interessados deveriam escrever sobre o tema: "Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou apurar os costumes".
A notícia deixa-o subitamente transtornado. Toma-se de um entusiasmo como jamais sentira e divisa um outro universo mental. Sente a cabeça tonta como se estivesse embriagado e o coração bate com violência, dificultando a respiração e o andar. Arroja-se debaixo da primeira árvore que oferece sombra e ali fica mais de meia hora em intensa agitação interior. Ao levantar-se, fica surpreso com a roupa toda molhada de lágrimas, sem ter sentido derramá-las. Imediatamente põe-se a tomar notas para responder à questão proposta e redige uma pequena dissertação.
Nascia, assim, a primeira de uma série de obras de pensamento em que a mesma carga emocional estaria sempre presente, compondo um conjunto de idéias radicadas profundamente na vida do autor e da qual não podem ser desligadas. (ROUSSEAU, 1997, p. 5)
Mesmo entendendo que, conforme registrara W. Benjamin, “as citações, no meu trabalho, são como ladrões à beira da estrada, que irrompem armados e arrebatam o consenso do ocioso viajante”, indelével o excerto acima para a compreensão de um autor cujo escrito é objeto da análise aqui proposta, haja vista que esse trecho desvenda o retrato de um homem que deu valiosa contribuição para a história da nossa sociedade, tal como a conhecemos.
A referência supramencionada traduz um quadro apto a revelar a humanidade, presente no interior “sombrio e obscuro” de Rousseau, e exteriorizada em seus pensamentos e escritos. Como bem disse ele próprio: “Empenho-me numa tarefa que nunca teve exemplo e cuja execução jamais terá imitadores. Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da sua natureza; e este homem serei eu” (BARELLI; PENNACCHIETTI, 2001, p. 872).
Poucos homens assumiram e realizaram um papel em tal nível de extensão e capaz de alterar o curso normal das coisas. Rousseau viveu um momento asseverado por revoluções de variadas ordens, as quais viriam a estabelecer os moldes do Estado moderno. Foi ele quem escreveu “Emílio”, falando sobre educação e aprimorando a pedagogia, foi também quem entendeu e deixou como legado “O Contrato Social”, obra estudada, contestada, enaltecida, e que revelou as engrenagens do caleidoscópio da vivência em sociedade. E foi ele, ainda, que, na obra “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, descortinou uma das mais brilhantes teses da filosofia, e, com êxito, lançou mão de argumentos válidos até os dias presentes para justificar o instante em que o homem nascera igual e livre perante todos os demais, mas culminou solitário e preso às amarras perversas da escravidão coletiva, diminuído em uma cidadania de aparências e de falsidades, onde as leis e os poderes político e econômico ditaram a apropriação das forças laborativas e a falência do projeto natural proposto pelo Grande Idealizador da vida.
Avaliar e poder descrever o que foi, ou deixou de ser, a existência de um homem é tarefa da mais árduas. As máscaras de que cada um de nós se reveste para esconder suas facetas mais inglórias deixa a todos perdidos em devaneios acerca se a pessoa, sob nossos olhares, era ou não o que todos diziam sê-lo, principalmente ao termos consciência das dissimulações que carregamos em nossas profundezas.
G. K. Chesterton, com enorme propriedade, tinha dito que “quando o dramaturgo entra em cena, a peça está acabada”. Para Jeffrey Archer “somos mais escolhidos que escolhemos”. E o destino quis que assim o fosse.
As biografias de Rousseau propõe um homem vazio de caráter, com personalidade duvidosa e difusa, envolvido em peripécias amorosas, inimizades, intrigas, sem planos ou projetos, ocasionalmente desempregado, e sem sucesso em suas tentativas diversas de se estabelecer nas artes. Nada mal para alguém sem futuro. Para tanto, basta lembrar da sua primeira experiência ao querer aprender um ofício, ainda adolescente, oportunidade em que fora considerado “preguiçoso e idiota” (ROUSSEAU, 1997, p. 7). Até de ladrão e covarde chegou a ser chamado, terminando seus dias paranóico, com uma permanente sensação de perseguição. Creio que um bom escritor de “best-seller” encontraria dificuldade imensa em caracterizar um personagem tão original, de traços típicos da mais vil e devastada alma, e que, milagrosamente, viesse a obter êxito nalguma coisa. Realmente, a cena é inimaginável.
“Cá estou eu, portanto, sozinho sobre a terra, sem irmãos, nem parentes, nem amigos, nem outra companhia que não seja eu mesmo. O homem mais sociável e mais disposto a amar seus semelhantes foi proscrito por um consenso unânime. Buscaram nos refinamentos do próprio ódio qual tormento podia ser o mais cruel à minha alma sensível e destruíram com violência todos os vínculos que me ligavam a eles. Eu teria amado os homens apesar de sua natureza . Não puderam se furtar do meu afeto senão deixando de ser homens. Para mim não passam, portanto de estranhos, desconhecidos, nulos, enfim, pois assim o quiseram. Mas eu, separado deles e de tudo, o que sou? É o que me resta descobrir”. (ROUSSEAU, “Devaneios de um passeador solitário”, In: BARELLI; PENNACCHIETTI, ibdem, p. 872).
Em vão. Nessa sociedade, à qual ele se esforçava por se adaptar, Rousseau já sabia que não seria feliz. Os acontecimentos não podiam deixar de justificar-lhe os temores.
As obras autobiográficas nos permitem compreender por que esse fracasso era inevitável. A timidez, a lentidão e a inabilidade de suas reações, que o tornam inapto para desempenhar seu papel numa sociedade brilhante e espirituosa, impõe uma tortura perpétua a Rousseau. E, sobretudo, ele depende da atenção dos outros, quer ser constantemente aprovado e compreendido, e nunca julga sê-lo. Incapaz de ser ele mesmo, incapaz de ser como os outros, sempre vítima das “falsa vergonha” e maldizendo-se por sê-lo, viveu constrangido e ansioso. Consciente de uma “singularidade”, que não ousa porém exibir, já se sente sozinho e, por que não, ameaçado. Tudo isso irromperá mais tarde, no grande dia da ruptura com os filósofos e das análises das Confessions; mas tudo isso já está contido no verso de Ovídio que serve de epígrafe ao primeiro Discurso: “Para eles sou um bárbaro, por que não me compreendem”.
E o Discurso inteiro é animado por essa inquietude e por esse ressentimento. “Exasperado pelas injustiças que experimentara”, diz ainda a carta a Malesherbes, “pelas que testemunhara, mortificado frequentemente pela desordem a que o exemplo e a força das coisas haviam arrastado a mim mesmo, comecei a desprezar meu século e meus contemporâneos”. [...] (ROUSSEAU, 1999, p. XI)
Entretanto, com tantos predicados negativos, em nenhuma das pesquisas que possam ser feitas a seu respeito, acha-se menção à sua vida acadêmica. Interessante. Dedicou-se a leitura de bibliotecas. E isso bastou para tanto, ou seja, para adquirir o conhecimento a pavimentar sua construção lógica e perpetuar um legado dos mais fascinantes.
Afinal quem não conheceria a mãe e teria um pai que o abandonaria ainda criança. Quem não teria um lugar para chamar de lar, vivendo emprestado aqui e acolá. Quem alugaria uma biblioteca inteira e esgotaria os livros em apenas um ano (antes disso, lera uma coleção de livros da falecida mãe e depois a do avô, por puro prazer). Quem se sentiria bem em perder tardes inteiras a simplesmente caminhar em meio à natureza, com mero deleite contemplativo, por amar plantas e animais. Quem teria paixões diversas, e com nenhuma dessas encontraria a amada para desejar com ela envelhecer. Quem teria cinco filhos e os daria à adoção por julgar-se incapaz de educar-lhes e de prover-lhes o sustento. Quem teria todos os sonhos do mundo, almejando ser alguém rico e poderoso, querendo alcançar tudo, mas não saindo do lugar, estanque em ações dispersas e sem sentido, sem profissão certa, externando ser um nômade, verdadeiramente apátrida. Quem colecionaria inimigos, a ponto da sua moral ser abalada por planfetos anônimos distribuídos em toda uma cidade e chegar a ter sua casa apedrejada. Quem seria perseguido por um governo, e teria a prisão decretada. Quem teria uma vida dessas e alcançaria êxito em somente uma empreitada: escrever. Quem mais poderia ter redigido “O Contrato Social”?
Há muitos que criticam sua pessoa. Outros, fundamentadamente, chegam mesmo a atacar sua obra. Contudo, entre céticos e detratores, em minha pessoa, Rousseau encontrará um defensor, e as páginas seguintes não destoarão dessa meta aqui preconizada.
Como dissera S. Butler, “a vida é a arte de tirar conclusões suficientes de premissas insuficientes”. Nos termos de G. D’Annunzio: “Tudo foi cobiçado e tudo foi tentado. O que não foi feito eu sonhei; e tanto era o ardor que o sonho se igualou ao ato”.
Desprentensamente, este texto avança rumo ao território do inimigo, enfrentando o inóspito, para tentar entender o que foi, ou deixou de ser, ou aquilo que nunca deveria ter sido Rousseau, bem como esse seu “Discurso”, compreendendo que, como bem definira Calvino, “a vida de uma pessoa consiste num conjunto de acontecimentos, dos quais o último também poderia mudar o sentido de todo o conjunto”. Rousseau, com seus livros, mudou não apenas sua vida, mas toda a sociedade[1].
Jean-Jacques Rousseau não terá sido um filósofo no sentido mais estrito do termo. Seu forte não era o encadeamento lógico das ideias nem a fundamentação rigorosamente racional dos principies que formulou, nem a penetração analítica dos problemas. Seu pensamento procede antes pela expressão de intuições resultantes da paixão permanente com que viveu todos os problemas da existência mais comum, como também os da cultura no nível superior das idéias. Mas soube como poucos expressar essas intuições e defendê-las apaixonadamente. As idéias correspondentes a essas intuições não são conceitos abstratos mas realidades vividas intensamente e valores morais imersos na mais nervosa sensibilidade. Opor-se aos filósofos não foi para ele apenas assunto teórico, mas questão de honra pessoal.
Toda essa carga emocional e a capacidade de expressão estética que possuía deram força incomum ao seu pensamento e fizeram dele um marco revolucionário dentro da história da cultura. Sua influência estendeu-se aos mais diversos campos. Os princípios de liberdade e igualdade política, formulados por ele, constituíram as coordenadas teóricas dos setores mais radicais da Revolução Francesa (Robespierre era seu fervoroso seguidor) e inspiraram sua segunda fase, quando foram destruídos os restos da monarquia e foi instalado o regime republicano, colocando-se de lado os ideais do liberalismo de Voltaire e Montesquieu (1689-1755). As teorias políticas do idealismo alemão do século XIX — que glorificaram o Estado como Deus na história — também devem a Rousseau, quando passam de sua doutrina de que o Estado é legalmente onipotente para a exaltação absolutista do mesmo. Isso, apesar de Rousseau ter afirmado claramente que a maioria deveria ser limitada por restrições morais, e insistido no direito do povo de derrubar o governo quando este deixasse de ser expressão da vontade geral.
Por outro lado, a valorização rousseauniana do mundo dos sentimentos, em detrimento da razão intelectual, e da natureza mais profunda do homem, em contraposição ao artificialismo da vida civilizada, encontrasse precisamente na base do amplo movimento romântico que caracterizou a primeira metade do século XIX e permanece vigorando até os dias de hoje, como uma das formas básicas de sentir e pensar o mundo (ROUSSEAU, 1997, p. 20).
Logo, consoante o proposto no título deste artigo, está posto, e desde já aceito, o desafio, muito grato, de falar a respeito de duas expressões da existência social, quais sejam a liberdade e a cidadania, sob a óptica de um dos nomes mais expressivos na literatura filosófica, qual seja a de Jean-Jacques Rousseau. Nesse ínterim, procurar-se-á abordar quem foi o autor da obra “Discurso sobre as origens e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, bem como a relevância de conceitos basilares lá contidos, para, ao epílogo, emitir as considerações finais acerca de tão abrangente e profícua temática.
2 – Breve exposição da biografia de Rousseau
Escrevera Agatão: “Cancelar o passado é a única coisa negada até a Deus”. Michel de Montaigne vai além: “Nada fixa alguma coisa tão intensamente na memória como o desejo de esquecê-la”. Contudo, é Pirandello que arremata: “A vida, por todos os absurdos imprudentes, grandes e pequenos, dos quais infelizmente é cheia, tem o inestimável privilégio de poder ficar sem aquela verossimilhança tão estúpida à qual a arte crê que seja seu dever obedecer”. Às vezes, uma biografia desponta como o maior martírio de uma pessoa, verdadeiro pesadelo, já que erros e glórias ficarão ali registrados para todo o sempre. E, no decorrer desse caminho, algumas coisas simplesmente não podem ser apagadas.
Nasceu em Genebra, em 28 de junho de 1712. O pai, Isaac Rousseau, descendia de uma família de relojoeiros, mas era, relativamente, o mais pobre dos seus parentes. A mãe, Suzanne Bernard, morreu ao dar-lhe a luz. Durante certo tempo, pai e filho viveram das lembranças e passaram a ler o acervo de livros deixados pela mãe. Quando os livros esgotaram-se, dado ao gosto pela leitura nutrida neste período, os dois passaram a ler os livros da biblioteca do pai de Suzanne – um pastor da região.
Em certo momento, o pai dele, instável e despreocupado como era, resolvera expatriar-se em outro país, não participando, desde então, da vida do filho. Rousseau ficou, então, sob a tutela de seu tio, de nome Bernard. Lá permaneceu até completar doze anos de idade, período em que teve contato com a natureza, fato que, de certo modo, influenciaria toda sua futura produção intelectual. De volta à Genebra, vai para a casa de outro tio, onde alimenta diversos sonhos, entre eles, o de ser ministro evangélico, mas as parcas condições financeiras não permitiriam os estudos necessários. Daí começa a desenvolver-se um forte pensamento de inferioridade social, o qual também viria a ser marcante em seu caráter.
Durante esse período, aprende a desenhar, além de enveredar-se pelo ofício de “moço de recados”, porém é considerado inapto para o trabalho. Por fim, começa a desenvolver atividades com gravação, sendo até mesmo acusado de fabricar dinheiro falso, o que o abala, do ponto de vista moral, e o torna medroso, “dissimulador e ladrão, roubando de tudo, menos dinheiro” (ROUSSEAU, 1997, p. 7), esta que seria outra vertente de personalidade a estigmatizar sua pessoa. Igualmente começa a ter aventuras amorosas, outra marca de sua existência, as quais não deram muito certo.
Rousseau encontrava consolo em leituras e em demorados passeios pelo campo, nos arredores da cidade. Tal fase desencadeia mais um passo de sua vida, quando se decide por abandonar tudo e partir para realizar seus sonhos, acreditando poder fazê-los com certo sucesso. Contudo, nada sucedera como ele previa, e passou necessidade, encontrando abrigo com a Sra. De Warens, missionária católica, e surpreende-se com sua jovialidade (vinte e oito anos) e beleza. Esta o envia para um período num asilo, onde teve que suportar mais dificuldades.
Após isso, trabalhou com várias coisas, morou em vários lugares, envolveu-se em mais confusões, e desencadeou tórridos amores, os quais comporiam a pintura final de quem realmente era o Jean-Jacques.
De volta à casa da Sra. Warens, continua a ler e começa a escrever. Dentre os escritos, inicia a falar sobre educação, o que viria a ser a base da obra “Emílio”. Muda-se para Paris, alimentando, como sempre, muitos sonhos. Alcança certa fama com a música, mas nem tanto, já que sua ópera (sim ele escreveu uma) não foi muito bem aceita.
Liga-se à Sra. Thérèsse Levasseur, com a qual teria cinco filhos, não criando nenhum deles, entregando-os a um orfanato, mais um ponto marcante de sua biografia. Carrega grande remorso por tê-lo feito. Teria justificado essa atitude no fato de se encontrar pobre e doente.
Fez amizades, a exemplo de Diderot, que chega a lhe encomendar artigos para a edição da “Enciplopédia”. É nessa época que responde à questão sobre se o progresso das ciências e das artes havia contribuído para aprimorar os costumes. Recebeu o primeiro prêmio e com ele veio a notoriedade repentina. Depois escreve “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”. Nesse momento, o Rousseau músico torna-se o Rousseau filósofo, e agora protestante (ROUSSEAU, 1997, p. VII).
“Não incomode apenas para ser melhor que seus contemporâneos e predecessores. Tente ser melhor que você mesmo”, já proferira Faulkner. E Rousseau surpreendia:
Retrospectivamente, como sempre, foi mais fácil entender o fato, e Rousseau pôde fazer desse “instante de desvario”, que o revelava a si mesmo, a origem de sua glória e de suas desditas.
“Essa obra que me valeu um prêmio e me fez um nome, é quando muito medíocre”, escreverá ele mais tarde à guisa de Advertência, e especificará no livro VIII das Confissões: “Essa obra, cheia de calor e de força, carece completamente de lógica e de ordem; de todas as que brotaram de minha pena, é a mais fraca de raciocínio e a mais pobre de número e de harmonia”. [...] (ROUSSEAU, 1999, p. VII)
Enfim, ao responder ao novo questionamento da Academia de Dijon, se descobrira em uma inédita vertente: a de um expoente filósofo daqueles novos tempos – em momento oportuno, ainda neste artigo, abordar-se-á o instante e o porquê desses questionamentos, e a importância das respostas para a sociedade que nascia.
Perseguindo a missão de resumir em poucas linhas a aventura existencial de Rousseau, o próximo passo é a mudança para Ermitage, onde começa a escrever o romance “A nova Heloísa”. Como tudo em sua vida, é mais uma fase conturbada, pois se apaixona por outra mulher, briga com o amigo Diderot e adquire uma forte e onipresente mania de perseguição. Torna a mudar-se no ano seguinte. No novo local reside por cinco anos, que, segundo ele próprio, foram bastante produtivos e felizes. É aí que escreve duas obras que o marcarão como grande nome da pedagogia e da ciência política: o “Emílio” e o “Contrato Social”.
Todavia, de sua maior expressão intelectual, adveio o maior e mais inimaginável infortúnio, uma vez que ambos os livros não foram compreendidos e nem tampouco bem aceitos pelas pessoas daquela época, e, depois da publicação, a partir de 1762, seus “problemas não são mais com os amigos e as amantes, mas com as autoridades e a opinião pública”. (Op. cit., 1997, p. 10). É ordenada sua prisão e ele foge da França, onde era perseguido pelo governo, para um domínio da Prússia. Tempos depois é atacado por Voltaire, em um panfleto a circular em Paris. Abatido e perseguido, põe-se a escrever as “Confissões”, onde procura explicar sua vida e seus pensamentos, e esse livro “tornou-se uma síntese completa do autor como homem, romancista, filósofo e educador” (Idem, ibdem, p. 11).
Mas a epopeia estava longe de encontrar um fim. Atacado por protestantes do local, os quais chegam a apedrejar sua casa, muda-se para a ilha de Saint-Pierre, onde é proibido de ficar. Aceita a oferta de refúgio na Inglaterra, feita pelo filósofo David Hume, com quem vem a discutir e brigar futuramente. Retorna à França. Escreve “Rousseau, juiz de Jean-Jacques”. Nos últimos dois anos de vida, redige “Devaneios de um caminhante solitário”. Falece em 1778. Enterrado na ilha de Choupos. “Refugia-se por fim na Natureza, a ‘mãe comum’, em cujos braços buscou subtrair-se ‘aos ataques de seus filhos’” (ROUSSEAU, 1997, p. 11). Durante a Revolução Francesa, seus restos foram colocados no Panteão.
E, nesses mínimos termos, eis o extrato polêmico de sua vida. Já as próximas páginas serão dedicadas ao estudo da obra “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, pois, como já proferira o próprio Rousseau, em o “Emílio”, os livros “ensinam apenas a falar daquilo que não se sabe” (BARELLI; PENNACCHIETTI. 2001, p. 296) [2].
O mais útil e menos avançado de todos os conhecimentos humanos parece-me ser o do homem, e ouso dizer que a simples inscrição do templo de Delfos continha um preceito mais importante e mais difícil do que todos os livros dos moralistas. Por isso considero o tema desse Discurso [sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens] como uma das questões mais interessantes que a filosofia pode propor e, infelizmente para nós, como uma das mais espinhosas para os filósofos resolverem, pois como se conhecer a fonte da desigualdade entre os homens se não se começar por conhecer a eles mesmos? E como o homem conseguiria ver-se tal como o formou a natureza através de todas as mudanças provocadas em sua constituição original pela sucessão dos tempos e das coisas e distinguir o que pertence à sua própria natureza daquilo que as circunstâncias e seus progressos acrescentaram ao seu estado primitivo ou nele mudaram? (ROUSSEAU, 1999, p. 149)
3 – À República de Genebra
Nascido em Genebra, Rousseau dedica o início de seu “Discurso” a homenagear a terra natal, por considerar haver ali um certo elo de ligação entre a ordem pública e a felicidade do indivíduo.
Tendo tido a felicidade de nascer entre vós, como poderia eu meditar sobre a igualdade que a natureza pôs entre os homens e sobre a desigualdade que eles instituíram, sem pensar na profunda sabedoria com a qual uma e outra, felizmente combinadas nesse Estado, concorrem, da maneira mais próxima da lei natural e mais favorável à sociedade, para a manutenção da ordem pública e para a felicidade dos particulares? Buscando as melhores máximas que o bom senso pode ditar sobre a constituição de um governo fiquei tão impressionado de vê-las todas em execução no vosso que, mesmo sem haver nascido dentro de vossos muros, teria acreditado não poder dispensar-me de oferecer esse quadro da sociedade humana ao povo que, dentre todos os outros, me parece possuir as suas maiores vantagens e melhor ter prevenido seus abusos (ROUSSEAU, 1999, p.135).
Embora exagerado, Rousseau afirma que, caso não tivesse ali nascido, e pudesse escolhê-lo, Genebra seria sua opção, e justifica o posicionamento ao dizer que: “quanto a vós, vossa felicidade é completa, basta apenas desfrutá-la, e para tornar-vos perfeitamente felizes só tendes de saber contentar-vos em sê-lo” (Idem, ibidem, p. 141).
4 – Prefácio
Abrindo seu diálogo argumentativo, Rousseau reintera que a meta da obra, o objetivo é entender o homem, compreender sua complexidade existencial, a partir do estado natural, livre de preconceitos, aculturamentos, imperfeições trazidos pelas mudanças impostas quando do convívio em sociedade, e se tal condição de natureza persistia, mesmo face às alterações da vida em comunidade.
Para o autor, a primeira desigualdade que se pode perceber entre os homens é a determinada pela própria natureza, em uma seleção natural da espécie.
[...] mas, tendo uns se aperfeiçoado ou deteriorado e adquirido diversas qualidades, boas ou más, que não eram inerentes à sua natureza, permaneceram os outros mais tempo em seu estado original; e tal foi, entre os homens, a primeira fonte da desigualdade [...] (ROUSSEAU, 1999, p.150-151).
Contudo, o autor é bastante claro ao frisar que, na perseguição do estado natural do homem, além de difícil ser alcançar-se qualquer definição exata, ainda por cima, não há como precisar ou distinguir o que é natural e o que jaz como artificial no homem, enquanto em sociedade.
[...] Pois não é de pouca monta o empreendimento de distinguir o que há de originário e artificial na natureza atual do homem, e conhecer bem um estado que não existe mais, que talvez não tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e do qual é necessário, porém, ter noções exatas para bem julgar nosso estado presente (Op. cit., 1999, p.151).
Primafacie, Rousseau se vê absorvido pela questão do estado natural do homem, bem como os demais filósofos da época deparavam-se com os problemas oriundos de tal reflexão. Em consequência, não eram raras as discórdias acerca do tema.
[...] Entre os mais sérios escritores, mal se encontram dois que tenham o mesmo parecer sobre esse ponto. Sem falar dos antigos filósofos, que parecem ter-se empenhado em contradizer-se entre si sobre os princípios mais fundamentais [...].
De sorte que todas as definições desses homens sábios, definições, aliás, em perpétua contradição entre si, concordam somente em que é impossível entender a lei da natureza e, por conseguinte, obedecer-lhe sem ser um grande pensador e um profundo metafísico. [...] (Op. cit, 1999, p. 152-153)
O método empregado por Rousseau, em seu estudo, baseia-se na lógica de, primeiramente, conhecer o homem em seu estado natural, para, depois, descobrir qual a lei que o rege.
Conhecendo tão mal a natureza e concordando tão pouco no sentido da palavra lei, seria bem difícil convir numa boa definição da lei natural. Por isso todas as que se encontram nos livros, além do defeito de não serem uniformes, têm também o de serem tiradas de vários conhecimentos que os homens não possuem naturalmente, e vantagens que eles só podem conceber depois de sair do estado de natureza. Começa-se por buscar as regras em que, para a utilidade comum, seria oportuno que os homens conviessem entre si; ademais, dá-se o nome de lei natural à coleção dessas regras, sem outra prova além do bem que, segundo supõe, resultaria de sua prática universal. Esta é, por certo, uma maneira muito cômoda de compor definições e de explicar a natureza das coisas por conveniências quase arbitrárias.
Porém, enquanto não conhecermos o homem natural, em vão desejaremos determinar a lei que ele recebeu ou a que convém melhor a sua constituição [...] (Idem, ibidem, p.153-154).
Constata-se que Rousseau pensava na existência de direitos naturais prevalecentes entre os homens:
[...] Mas, relacionados de certo modo com nossa natureza pela sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que também devem participar do direito natural e que o homem está sujeito a uma certa espécie de deveres para com eles. Parece de fato que, se sou obrigado anão fazer nenhum mal ao meu semelhante, não é tanto porque ele é um ser racional quanto porque é um ser sensível; qualidade que, sendo comum ao animal e ao homem, deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro. (Op. cit., 1999, p. 155)
O autor também vai de encontro ao dito por Hobbes, em “Leviatã”. “Os pactos sem a espada são apenas palavras e não têm a força para defender ninguém” (BARELLI; PENNACCHIETTI. ibdem, p. 399). Ao entender que um homem “jamais fará mal a outro homem [...] exceto no caso legítimo em que, achando-se a conservação interessada, é obrigado a dar preferência a si mesmo” (ROUSSEAU, 1997, p. 231).
[...] O erro de Hobbes, nesse ponto, consiste em ter acreditado que, para conservar-se a si mesmo, impunha-se lutar com os outros e matá-los ou torná-los escravos. Ora, a ausência da bondade não implica a maldade. O direito sobre as coisas de que tem necessidade não leva o homem natural a um domínio universal. Pode-se muito bem zelar pela própria conservação sem prejudicar a de outrem. O erro de Hobbes deve-se a ter levado em consideração necessidades tardias para julgar o estado original do homem. Ora, o homem primitivo não poderia ser mal, uma vez que não sabia o que era bom e mau (ROUSSEAU, 1978, p. 207).
Encerrando a avaliação desse “prefácio”, convém mencionar que a idéia de estudar o homem a partir de seu estado natural não foi bem recebida naquele momento, tanto que:
Voltaire, entre outros, fez essa aproximação, certamente com ironia, ao dizer do autor do Contrato Social que “ninguém jamais pôs tanto engenho em querer nos converter em animais” e que ler Rousseau faz nascer “desejos de caminhar em quatro patas”. Tal interpretação é sem dúvida incorreta e deve ser entendida apenas como expresão do sarcasmo voltariano. O que Rousseau sempre pretendeu não foi exaltar a animalidade do selvagem, porém sua mais profunda humanidade em relação ao homem civilizado. [...] (Idem, ibidem, p. 13).
Segue-se adiante na tarefa de estudar e aprender mais sobre Rousseau.
5 – Primeira parte
O autor, nessa primeira divisão de seu “Discurso”, apresenta duas desigualdades: a natural ou física e a moral ou política. A primeira delas é a própria natureza que determina e se percebe pelas características de idade, saúde e força. A finalidade dessa divergência entre os indivíduos é um completo mistério, na medida em que é a própria natureza quem assim o fez. Entretanto, tem-se que observar que essas diferenças físicas selecionam os melhores, potencializando chances de sobrevivência ou de adaptação, numa evidente especificação natural.
Segundo o autor, quanto à segunda desigualdade, é ela estabelecida ou autorizada pelo consentimento dos próprios homens, baseando-se no privilégio que alguns detêm sobre os demais, em uma estratégia de manutenção do controle social, pelo domínio sociopolítico e econômico.
Segue ele discorrendo a que se presta aquele seu escrito:
De que trata, então, precisamente neste Discurso? De apontar, no progresso das coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi submetida à lei; de explicar por qual encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir o fraco, e o povo a comprar uma tranquilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real (Idem, 1999, p. 160).
O homem, quando em estado de natureza, do mesmo modo que os animais, acha-se em florestas, dela obtendo o que lhe é necessário para sua sobrevivência. Com temperamento robusto, forte, inalterado por condições que não sejam as da seleção natural, e as habilidades e a resistência adquiridas o tornam capaz de viver entre as mais temidas feras, sem que estas os firam ou afetem de qualquer maneira.
O homem, enquanto na lida e na existência pura e sem alterações, da natureza apenas não resiste às doenças, à infância ou velhice. Mas, nas florestas, na selva, são poucas as fontes de males, o que conduz ao raciocínio de que o homem, nesse estado de natureza, não tem precisão de remédios ou médicos.
O autor, em sua dilação lógica, prossegue na tarefa argumentativa de que as idiossincrasias naturais acabam por zelar pelo bem estar dos selvagens e animais ainda não domesticados. A partir do instante em que a espécie humana passa para a existência em sociedade, afastando-se dessa sua origem natural, ela adquire uma forma de existência que o enfraquece, amedronta e o debilita, em todos os aspectos considerados.
Não se deve, portanto, confundir o homem natural com o civilizado, pois a natureza cuida do selvagem, ofertando-lhe os meios impreteríveis à sua sobrevivência, não representado obstáculo a ausência de vestimentas, de habitação e de diversas futilidades, às quais atribuímos especial e ininteligível importância.
Rousseau, inteligentemente, na busca pelo completo entendimento da temática, traça um percurso histórico para que se possa compreender o homem não somente em seu aspecto físico, mas igualmente na faceta moral, e como a transmutação do ser em estado natural para aquele no convívio social se deu na realidade.
Todo animal tem ideias, uma vez que tem sentidos; chega a combinar suas ideias até certo ponto, e o homem a esse respeito, só difere do animal na intensidade; alguns filósofos afirmaram até que há mais diferença entre um homem e outro do que entre um homem e um animal. Portanto, não é tanto o entendimento quanto à sua qualidade de agente livre que confere ao homem sua distinção específica entre os animais. A natureza manda em todos os animais, e o bicho obedece. O homem sente a mesma impressão, mas se reconhece livre para aquiescer ou parta resistir, sendo sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física explica de certa maneira o mecanismo dos sentidos e a formação das ideias; mas, no faculdade de querer, ou melhor, de escolher, e no sentimento desse faculdade, só se encontram atos puramente espirituais, dos quais nada se pode explicar pelas leis da mecânica. (ROUSSEAU, 1999, p.173)
Complementa, com grande astúcia, o autor:
Mas, ainda que as dificuldades que envolvem todas essas questões deixassem algum ponto controverso sobre essa diferença entre o homem e o animal, há outra qualidade muito específica que os distingue, e sobre a qual não pode haver contestação: a faculdade de aperfeiçoar-se; faculdade essa, que com a ajuda das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras, e reside, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo[...] (Idem, ibdem, p. 173)
Em seu raciocínio, essa mesma razão, a capacidade de pensar, de melhorar continuamente, de aprender, no que diferencia dos animais, é, também, aquilo que abala o homem. Fisicamente não existe distinção entre o selvagem e o civilizado. Mas em outros aspectos, há sim diferenças, pois a formação moral de um animal em nada será alterada no decorrer da vida, pelos próximos cem, mil anos, já no que diz respeito ao homem, este, ao nascer, já tem a seu dispor, e sobre sua cabeça, anos de conhecimentos adquiridos e aprimorados, a afetar seu crescimento, agora não apenas físico, mas intelectual e moral, alterando o curso natural das coisas. Ao escolher a existência entre seus pares e em sociedade, o homem perde as vantagens de uma vida simples e natural.
[...] Seria triste para nós sermos forçados a convir que essa faculdade distintiva, e quase ilimitada, é a fonte de todas as infelicidades do homem; que é ela que o tira, por força do tempo, dessa condição originária em que ele passaria dias tranquilos e inocentes; que é ela que, fazendo desabrochar com o século das luzes e seus erros, seus vícios e suas virtudes, torna-o com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza. [...] (Op. cit., 1999, p.174)
Dessa vertente de pensamento, eis que insurge a visível desconstrução da perspectiva iluminista da razão humana. Isso vai de encontro ao preconizado naquela época, uma vez que, contrariamente a maioria dos filósofos que se puseram a escrever sobre o homem, e a considerar as causas e efeitos de suas desigualdades, o autor, alvo dessa detida análise, é o que sugere que as “luzes” não trouxeram nada além de angústia e sofrimento ao ser humano.
Vejo em todo animal somente uma máquina engenhosa, a quem a natureza deu sentidos para funcionar sozinha e para garantir-se, até certo ponto, contra tudo quanto tende a destruí-la ou a desarranjá-la. Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de que a natureza faz tudo sozinha nas operações do animal, ao passo que o homem concorre para as suas na qualidade de agente livre. [...] (Op. cit., p. 172)
Continuando na descoberta do “homem selvagem” de Rousseau, além da escolha, salta aos olhos a contestação, segundo a qual o homem social impõe-se e determina um rumo a ser seguido, não aceitando, passivamente o sucedâneo de fatos da vida natural. O autor chega ao ponto de distinguir em sentimentos fortes a nítida separação entre o homem natural e o social, na medida em que apresenta que as paixões (querer, desejar, temer) são as primeiras e quase únicas características da alma animalesca, até que novos conhecimentos venham a ampliar esse leque de sentimentos.
Seus bens (materiais e imateriais) podem ser facilmente listados: a alimentação, uma fêmea e o repouso. Os males: a dor e a fome. Nem a morte o assusta, afinal esta é um temor adquirido socialmente. Rousseau procura demonstrar que foi a exacerbação dessas paixões quem levou os homens ao raciocínio e que estes se consolidaram já em um estado social onde a comunicação passa a ter papel fundamental.
A linguagem humana é outro fronte de embate, que instiga quaisquer pensadores. Da necessidade de convívio social, adveio a formulação de um modo de comunicação das ideias imperfeito e que segrega, e que em nada acrescentou para a igualdade ou liberdade do homem social.
Se pensarmos quantas ideias devemos ao uso da palavra, como a gramática exercita e facilita as operações do espírito; e se pensarmos nos esforços inconcebíveis e no tempo infinito que deve ter custado a primeira invenção das línguas; se juntarmos essas reflexões às anteriores, avaliaremos quantos milhares de séculos foram necessários para desenvolver sucessivamente no espírito humano as operações de que era capaz. (ROUSSEAU, 1999, p. 178-179)
Em sua obra, a quantidade de idiomas ou línguas, a dificuldade de aprendizado, as imperfeições da comunicação, em que se afasta da natural, onde gestos, sinais complementam e aprimoram as experiências comunicativas entre os animais, afora a busca pela “arte da palavra”, que deve ser antecedida pela ideia central e apta a aperfeiçoar a experiência linguística, surgem como mais uma criação da vida social.
O autor fala da evolução histórica da língua como necessária à articulação do pensamento e da sua expressão em um sistema que pudesse transmitir conhecimento a outros homens. E a primeira fase identificada por Rousseau, no homem selvagem, foi o grito. Daí, com o desenvolvimento das técnicas vocais e de expressão corporal, poucos sons e muitos gestos iniciaram a dinâmica desse processo evolutivo.
Quando as crianças começam a falar, choram menos. Esse progresso é natural: uma linguagem é substituída por outra. Desde que podem sofrer com palavras, porque o diriam com gritos, a não ser quando a dor é demasiado viva para que a palavra a possa exprimir? Se continuam então a chorar, a culpa cabe às pessoas que as cercam. [...] (ROUSSEAU, 1992, p.58)
Para verticalização de uma linguagem propriamente dita, articulada única e exclusivamente pela voz, a palavra tornou-se por demais relevante. Fora isso, o consentimento dos demais homens integrantes daquela comunidade foi essencial, haja vista que ninguém pode elaborar um código compreensível por somente uma pessoa. Assim ocorrendo, ou seja, sem existir o entendimento dos demais quanto ao que se queria dizer, não se poderia falar em uma língua, de tão irrelevante que seria, do ponto de vista social.
Seguindo em seu escrito, Rousseau toca no mote de que o homem, em estado natural, sem aquilo que é inerente ao convívio social, por ser alheio às questões referentes à moralidade, não pode ser bom ou mau, possuir vícios e virtudes, contradizendo a máxima segundo a qual “o homem é o lobo do homem”.
Não vamos, sobretudo, concluir com Hobbes que, por não ter a menor ideia da bondade, o home seja naturalmente mau; que seja vicioso por não conhecer a virtude; que sempre recuse aos seus semelhantes favores que não crê dever-lhes; nem que, em virtude do direito, que se atribui com razão, às coisas de que necessita, imagine loucamente ser o único proprietário de todo o universo. [...]
Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar da razão, como pretendem nossos jurisconsultos, impede-os ao mesmo tempo de abusar de suas faculdades, como ele mesmo pretende; de sorte que se poderia dizer que os selvagens não são maus justamente por não saberem o que é serem bons, pois não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas sim a calam das paixões e a ignorância dos vícios que os impedem de proceder mal [...] (ROUSSEAU, 1999, p. 188-189).
O autor, em seu “Discurso”, ainda refere-se à piedade como um sentimento natural a concorrer para a perpetuação de toda a espécie. Tal piedade ocupa o lugar e a função das leis e dos costumes, sendo parte indissociável da vida em natureza, estando presente na própria base formadora do intelecto humano.
Não creio ter de temer nenhuma contradição ao conceder ao homem a única virtude natural que o detrator mais exaltado das virtudes humanas seria forçado a reconhecer. Falo da piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males quanto o somos; virtude tanto mais universal e tanto mais útil ao homem por preceder nele o uso de qualquer reflexão, e tão natural que os próprios bichos às vezes dão sinais perceptíveis dela. [...] (Idem, ibidem, p. 189).
Concluamos que, errando pelas florestas, sem engenho, sem a palavra, sem domicílio, sem guerra e sem vínculos, sem a menor necessidade de seus semelhantes, assim como sem nenhum desejo de prejudicá-los, talvez até sem jamais reconhecer algum deles individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, tinha apenas os sentimentos e as luzes próprias desse estado, sentia apenas suas verdadeiras necessidades, só olhava o que acreditava ter interesse de ver e sua inteligência não fazia mais progressos do que sua vaidade. Se porventura fazia alguma descoberta, não podia comunicá-la, pois nem sequer os filhos reconhecia. A arte perecia com o inventor; não havia educação nem progresso, as gerações se multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto, os séculos escoavam-se em toda a grosseria das primeiras épocas, a espécie já estava velha e o homem continuava a ser sempre criança (Op. cit., p.197)
Este entendimento do autor afronta diretamente o pensamento dominante na época, em que os homens teriam acumulado cultura por seus próprios meios. Rousseau, muito aguçadamente, visualiza que apenas a sociedade imporá as necessidades para que o gênero humano cresça e se desenvolva em plenitude. Em outra passagem, diz ele:
Se me estendi tanto sobre a suposição dessa condição primitiva, foi porque, tendo de destruir antigos erros e preconceitos inveterados, achei que devia escavar até a raiz e mostrar, no quadro do verdadeiro estado de natureza, como a desigualdade, mesmo natural, esta longe de ter nesse estado tanta realidade e influência como pretendem nossos escritores.
Com efeito, é mais fácil ver que, entre as diferenças que distinguem os homens, passam por naturais muitas que são unicamente obra do hábito e dos diversos gêneros de vida que os homens adotam na sociedade. [...]
[...] a educação não só introduz diferença entre os espíritos cultos e aqueles que não o são, mas também aumenta a que existe entre os primeiros em proporção da cultura [...] (Op. cit., p. 197-198).
Na transição para a segunda parte, depreende-se que:
Falta, ainda, mostrar que a perfectibilidade e as virtudes sociais se desenvolveram, que o homem se tornou sociável e mau. Uma tal mudança poderia não se processar e permanecer o homem imutável no estado de natureza. É, também, difícil e conjetural descrever como se originou o desenvolvimento. Escapam-nos as causas mínimas que tiveram essas consequências consideráveis; elas constituem uma série de acasos (ROUSSEAU, 1978, p. 208).
Iniciar-se-á o estudo da “segunda parte” do “Discurso” de Rousseau.
6 – Segunda parte
Ao crescer, este que redige o presente artigo, adquiriu enorme afeição por colecionar máximas, pensamentos de pessoas ilustres, e que representavam diversas situações de nossa vida. Desta predileção particular, o qual se tornou hobby - bastante prazeroso por sinal -, com uma variedade de anotações e de livros a abarrotar a escrivaninha já gasta, um pensamento, desde cedo, chamou-me a atenção, pela beleza da ideia, pela integridade das palavras empregadas, pela força que carrega, pelo sentimento que traduz, e pela marca histórica que encerra, e esta foi uma das muitas “pérolas” proferidas por Rousseau. “Uma coletânea de pensamentos é uma farmácia moral onde encontramos remédios para todos os males”, já disse Voltaire, e este é o trecho que, ao abrir a segunda parte da obra de Rousseau, de forma esplendorosa, aponta a maior das injustiças universais:
O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: “Evitai ouvir esse impostor. Estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém!” (Idem, ibdem, p. 203)
Após estudar que a desigualdade só é vislumbrada no instante em que se compara a vida civil com o estado natural do homem, restou a Rousseau descrever como se deu sua origem, e de qual forma os progressos e os desenvolvimentos advindos afetaram o espírito humano.
Busca-se a defesa do que havia sido levantado à primeira parte, em outras palavras, que o homem selvagem, em seu estado natural, é homem físico e moral, cuja sobrevivência não está ligada ou afetada por quaisquer vícios ou imposições do convívio junto aos seus pares. Foi a sociedade que o depreciou, tornando fraco, preguiçoso e mau, mostrando as faces mais impiedosas da desigualdade e com todas as consequências advindas de um relacionamento tão tortuoso, asseverando paradoxos e disparidades, um tanto quanto insustentáveis.
Rousseau descreve os cinco estágios pelos quais passou a humanidade no seu desenvolvimento, caracterizando-se cada qual por um novo crescimento da desigualdade. Entre eles, o estágio decisivo foi o da propriedade; dela vem todo o mal, mas só foi inventada tardiamente e depois de longa evolução que a tornou necessária (ROUSSEAU, 1978, p. 209).
Resumindo, a existência foi a primeira meta do homem, seu único cuidado o da conservação, isso enquanto selvagem. Mas o homem aprendeu a transpor obstáculos, lidando com as dificuldades e as intempéries, aperfeiçoando-se. A experiência compartilhada no decorrer desse processo decretou o grande salto rumo à civilização:
[...] As relações que expressamos pelas palavras grande, pequeno, forte, fraco, rápido, lento, temeroso, ousado e outras idéias parecidas, comparadas quando necessário e quase sem pensar, acabaram por produzir-lhe uma certa espécie de reflexão, ou melhor, uma prudência maquinal que lhe indicava as precauções mais necessárias à sua segurança.
As novas luzes, que resultaram desse desenvolvimento, aumentaram-lhe a superioridade sobre os outros animais ao torná-lo ciente dela. [...] (Idem, ibdem, p. 205)
Eis como puderam os homens adquirir insensivelmente certa ideia grosseira dos compromissos mútuos e da vantagem de cumpri-los, mas somente o quanto o poderia exigir o interesse presente e palpável, pois a previdência nada representava para eles e, longe de ocupar-se de um futuro distante, não pensavam sequer no dia seguinte (Op. cit., p. 206-207).
A terra provia o homem de tudo quanto era necessário, porém isso foi deixado de lado a partir do momento em que os componentes dessa complexa equação foram invertidos. A natureza que era maior virou tão somente palco para o protagonista denominado homem, cuja espécie passou a dominar e usurpar, não somente os bens naturais, mais os seus semelhantes.
A mudança era inevitável, em variados aspectos. O relacionamento homem/mulher fora alterado para além da mera procriação, alcançando o status familiar (amor paternal e vínculo conjugal). A alteração de sua diminuta realidade o levou (o homem), do seu pequeno modo de viver, a inéditas empreitadas.
O homem, então, de posse de instrumentos que lhe multiplicavam a força e a precisão, não quer mais viver em cavernas, tampouco subir em árvores. A habitação pressupõe um outro empecilho, o do sedentarismo, de se estabelecer em um local, para que as novas figuras, quais sejam a da família e a do relacionamento com seu próximo possa galgar passos ainda maiores. Surge o convívio com os demais de sua espécie, a linguagem evolui, e a cidade é inventada. Era um instante revolucionário, transformador do homem natural em animal sociável, com todas as penas, deveres e obrigações correlatos. Nada seria como antes.
O modo de vida crescente, e cada vez mais dominante, levou o ser humano a problemas, males que terminaram sendo herdados por seus descendentes. A sociedade impõe a posse, a propriedade, o sentimento de perda daquilo que nem o homem precisa ou sabia que um dia precisaria. Nos primórdios da mutação social, “a metalurgia e a agricultura foram as duas artes cuja invenção produziu essa grande revolução” (ROUSSEAU, 1999, p. 213).
Da cultura das terras seguiu-se necessariamente sua partilha, e da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça; pois para dar a cada qual o seu, cumpre que cada qual possa ter alguma coisa [...] (ROUSSEAU, 1999, p. 216).
Ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes, e dessa distinção provieram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhes formam o cortejo. Por outro lado o homem, de livre e independente que era antes, passou a estar, em virtude de uma profusão de novas necessidades, por assim dizer, sujeito a toda a natureza, sobretudo aos seus semelhantes, de quem num sentido se torna escravo, mesmo em se tornando seu senhor; rico, precisa de seus serviços; pobre precisa de seu auxílio, e a mediocridade não o coloca em situação de viver sem eles (Idem, ibidem, p. 217-218).
Sentimentos confusos quanto à privação de objetos materiais e imateriais assumem, inadvertidamente, patamares de maior importância. Há a sensação de perda daquilo que sequer era apto a propiciar sustento ou felicidade quando possuído. E esse cabedal de coisas trouxe reflexos inusitados, pois tudo é referencial para comparar-se com os demais, enxergando mais a vida e as posses alheias do que a sua própria, numa engrenagem severa em que, para sobreviver, o homem não teria mais que apenas satisfazer suas necessidades naturais, mas todas aquelas outras criadas e amplamente desnecessárias. Inveja, vergonha, cobiça, perseguição, apropriação, roubo, discriminação etc., são terminologias que ocupam espaço ainda maior na modernidade premente e desajustada de sentido.
Foi assim que, tendo os mais poderosos ou os mais miseráveis feito de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao da propriedade, a igualdade rompida foi seguida pelas mais terríveis desordens; foi assim que as usurpações dos ricos, as pilhagens dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, ao abafarem a piedade natural e a voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus. Levantava-se entre o direito do mais forte e o direito do primeiro ocupante um conflito perpétuo que só terminava por combates e assassínios. À sociedade nascente seguiu-se um terrível estado de guerra; o gênero humano, aviltado e desolado, já não podendo voltar atrás nem renunciar às infelizes aquisições que fizera e trabalhando apenas para a sua vergonha, pelo abuso das faculdades que o dignificam, colocou a si mesmo às portas de sua ruína. (ROUSSEAU, 1999, p. 219)
As desigualdades crescem e aumentam a mão de obra empregada no trabalho. A propriedade das coisas sobrepõe-se agora também perante a força de trabalho, com penosas consequências para a vida em sociedade, chegando o autor a perguntar:
Mesmo aqueles enriquecidos apenas pelo próprio engenho não tinham títulos muito melhores para fundamentar sua propriedade. Por mais que dissessem: “Fui eu que construí esse muro; ganhei este terreno com meu trabalho”. Outros poderiam retorquir-lhes: “Quem vos deu os arruamentos, a troco de que pretendeis ser pagos à nossa custa de um trabalho que não vos impusemos? Ignorais que um multidão de irmãos vossos perece ou passa necessidades porque tendes em excesso e que vos seria preciso um consentimento expresso e unânime do gênero humano para vos apropriardes, sobre a subsistência comum, de tudo quanto ultrapassasse a vossa?” destituído de razões válidas para justificar-se e de forças suficientes para defender-se; esmagando facilmente um particular, mas esmagado ele próprio por magotes de bandidos; sozinho contra todos e não podendo, por causa das invejas recíprocas, unir-se com seus iguais contra inimigos unidos pela esperança comum da pilhagem, o rico, premido pela necessidade, acabou por conceber o projeto mais refletido que jamais passou pelo espírito humano: empregar em seu favor as próprias forças daqueles que o atacavam, transformar em defensores seus adversários, inspirar-lhes outras máximas e dar-lhes outras instituições que lhe fossem tão favoráveis quanto lhe era contrário o direito natural. (ROUSSEAU, 1999, p. 220-221)
Oscar Wilde já afirmara que “o primeiro dever da vida é a aparência”, e Rousseau igualmente anteviu essa situação, onde uma existência figurativa, inteiramente destoada de qualquer realidade fática, está a prevalecer. Rousseau antevê que as necessidades da vida em sociedade criaram a sujeição, e esta aumentava na medida em que a liberdade aparecia como condicionada a propriedade de bens. A ordem natural é invertida e pervertida, com as pessoas querendo ter mais que as outras, como forma de conservar um nível condizente de “liberdade social”. O ir e o vir, o ter e o poder, o fazer e o acontecer, misturam-se cada vez mais com a posse de bens e objetos acumuladores de ainda mais deveres e poderes, excluindo e segregando uns dos outros.
Por conseguinte, a liberdade, antes natural e derivada da simples existência humana, agora é condicionada a fatores que afastam semelhantes, mitigam direitos, desviam finalidades, usurpam o bem comum, desestabilizam os relacionamentos interpessoais, roubam a riqueza e o primado da força de trabalho, vinculando o nobre conceito de cidadania à posse e à propriedade, ou seja, a um fato, sem qualquer lógica aparente, a não ser a de alimentar o próprio sistema “ilógico” operante. A desigualdade acabou por ser inventada, e não houve substituto à altura da liberdade natural que resgatasse a dignidade outrora perdida quando ainda se estava no convívio do estado de natureza.
Tamanhas diferenças eivadas, as leis são imprescindíveis a conservar a ordem das coisas, coordenando a experiência humana em sociedade.
Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que criaram novos entraves para os fracos e novas forças para o rico, destruíram em definitivo a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, de uma hábil usurpação fizeram um direito irrevogável e, para o lucro de alguns ambiciosos, sujeitaram daí para frente todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria (ROUSSEAU, 1999, p.222).
O autor deixa claro que a obediência às leis era melhor que a barbárie e a anarquia, visto como se encontravam as coisas. Dessa constatação, advém a máxima de que “o governo é um mal necessário”. A liberdade só é permitida se condicionada por um cipoal de regras validamente constituídas e cumpridas, papel desempenhado pela lei.
A última das desigualdades entre os homens rememoraria um patamar de desigualdade natural, com opressores sustentando-se apenas pela sua força e fazendo da lei o seu maior querer. Os cidadãos são escravos e suas opiniões e vontades tidas como irrelevantes. Neste nível, o governo tende a não ser mais reconhecido, afinal as liberdades acabaram por ser perdidas. Tamanho quadro, bizarro em sua expressão, traria o retorno ao estado de natureza.
É este o último grau da desigualdade, e o ponto extremo que fecha o círculo e toca o ponto de que partimos; é nele que todos os particulares voltam a ser iguais porque nada são, e que, já não tendo os súditos outra lei além da vontade do senhor, nem o senhor outra regra além das suas paixões, se esvaem mais uma vez as noções do bem e os princípios da justiça. É nele que tudo se resume apenas à lei do mais forte e, por conseguinte, a um novo estado de natureza diferente daquele por que começamos, porque um era o estado de natureza em sua pureza, e este último é o fruto de um excesso de corrupção. [...] (ROUSSEAU, 1999, p. 240).
Como bem disse Horácio, “ainda que expulses a natureza com um forcado, ela voltará do mesmo jeito”. Mas é preciso sopesar as considerações apresentadas no “Discurso”:
Quanto ao cerne do problema, Rousseau não se distingue pelo rigor da análise e do raciocínio. As “provas” históricas são lançadas com mais vigor que precisão e respeito aos fatos. As “artes” são intensamente condenadas, tanto mais porque a mesma palavra designa indistintamente os artifícios da polidez mundana, as técnicas provedoras de luxo e de indolência, e as belas-artes que preferem o bonito ao sublime. Uma incerteza mais grave esconde a origem de nossas desditas: deve-se crer que, na “simplicidade dos primeiros tempos”, os homens eram “inocentes e virtuosos” (p.28) e que foram corrompidos pelas ciências e artes, ou deve-se admitir, ao contrário, que “os homens são perversos” (p.21) e que “as ciências e as artes devem (...) seu nascimento aos nossos vícios” (p.23)? A nostalgia dos primórdios acompanha em geral o desprezo do mundo, e Rousseau sonha com os tempos das choupanas como Pascal com a Igreja primitiva; mas seu sistema ainda não está constituído. [...]
Entretanto, seu pensamento já tomou sua orientação fundamental. Se condena as ciências e as artes, não é por elas afastarem de Deus – rigorosamente ausente desse texto – nem por prejudicarem a sabedoria individual, mas por destruírem a comunidade dos homens. A palavra “virtude” tem aqui apenas um sentido, e é o inteiro devotamento do homem aos seus semelhantes, do cidadão à pátria. As outras qualidades morais não passam de condições ou de consequências. Daí o surpreendente elogio das virtudes guerreiras, que o filósofo admira quando se trata do soldado cidadão. Daí sobretudo a condenação global de uma sociedade fundada na concorrência, no luxo, no dinheiro: “E o que será da virtude, quando for preciso enriquecer a qualquer preço?” (p.25). dos primeiros homens, Dos primeiros homens, Rousseau diria de bom grado o que se dizia dos primeiros cristãos: vede como eles se amam.
Mas essa nostalgia não é nada cristã, nem sequer religiosa. Rousseau fundamenta sua condenação, principalmente, na imagem heroica de altivez republicana , que ele formou para si já em sua juventude [...] (ROUSSEAU, 1999, p. VIII – X).
A obra é concluída com a reflexão da vida de um selvagem em contexto social e o cotidiano de um homem socializado. E viver em sociedade, e a desigualdade emanada desse fato, é que transforma todos os requícios de estado natural presente nos homens. Assim, termina Rousseau por demonstrar que:
Conclui-se desta exposição que a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, extrai sua força e seu crescimento do desenvolvimento de nossas faculdades e dos progressos do espírito humano e torna-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. Conclui-se ainda que a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural todas as vezes em que não coexiste, na mesma proporção, com a desigualdade física; distinção que determina suficientemente o que se deve pensar a esse respeito da espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policiados, já que é claramente contra a lei da natureza, seja qual for a maneira por que a definamos [...] (ROUSSEAU, 1999, p. 243)
7 – Os conceitos de liberdade e cidadania: onde surgem e como terminam no “Discurso” de Rousseau
Como visto anteriormente, a ida do homem de um estado natural para o convívio em sociedade mitigou a liberdade primariamente constituída e criou o espectro da cidadania. Não era mais a natureza, mas sim a lei que determinaria qual espécie de pessoa teria direito a expressar-se em sua plenitude.
Tendo por base tais considerações, basta ver o excelente texto que sucede:
Essa corrente de idéias desenvolveu-se depois com as teorias do direito natural do século XVII e principalmente com Espinosa (1632-1677) e John Locke, que prenunciavam Rousseau. O caminho que será trilhado pelo autor do Contrato Social é anunciado por Locke ao formular a teoria do estado da natureza como condição da liberdade e da igualdade e com a afirmação da pessoa humana como sujeito de todo direito e, portanto, fonte e norma de toda lei. Contudo, Locke admite a perda da liberdade quando afirma que “o homem, por ser livre por natureza, ... não pode ser privado dessa condição e submetido ao poder de outro sem o próprio consentimento”. O princípio da liberdade torna-se, assim, apenas uma questão de fato e deixa de ter o valor humanista e a força renovadora da vida social que lhe foram dados por Rousseau.
Com ele, o princípio da liberdade constitui-se como norma, e não como fato; como imperativo, e não como comprovação. Não é apenas uma negação de impedimentos, mas afirmação de um dever de realização das aptidões espirituais. Na consciência da liberdade revela-se a espiritualidade da alma humana; por isso é a exigência ética fundamental, e renunciar a ela é renunciar à própria qualidade de homem e “aos direitos da humanidade”.
Ao fazer tal afirmação, Rousseau distancia-se de todo individualismo, pois este supõe uma antítese entre cada um e a coletividade e estabelece o valor do indivíduo enquanto indivíduo e não enquanto homem. Rousseau, ao contrário, reivindica a consciência da dignidade do homem em geral e ilumina o valor universal da personalidade humana, cuja consciência moral não se traduz no sentimento particularista do amor-próprio, mas na universalidade do amor de si. No pensamento de Rousseau o amor de si, constituindo a interioridade por excelência e a força expansiva da alma que identifica o indivíduo com seus semelhantes, é a ponte que liga o eu individual ao eu comum, a vontade particular à vontade geral. Assim é que todos os cidadãos “pudera chegar a identificar-se, por fim, com o Todo maior, sentir-se membros da pátria, amá-la com esse sentimento delicado que todo homem separado só tem para si mesmo”.
A realização concreta do eu comum e da vontade geral implicam necessariamente um contrato social, ou seja, uma livre associação de seres humanos inteligentes, que deliberadamente resolvem formar um certo tipo de sociedade, à qual passam a prestar obediência. O contrato social seria, assim, a única base legítima para uma comunidade que deseja viver de acordo com os pressupostos da liberdade humana.
É necessário, contudo, resolver o problema de encontrar uma forma de associação que continue a respeitar essa mesma liberdade que lhe dá origem. Muito embora o homem seja naturalmente bom, ele é constantemente ameaçado por forças que não só o alienam de si mesmo como podem transformá-lo em tirano ou escravo. Rousseau procura uma forma de associação na qual “cada um unindo-se a todos obedece, porém, apenas a si mesmo e permanece livre” como antes de estabelecer o contrato. Cada um por si mesmo, dando-se para todos, não se dá a ninguém. As possibilidades de desigualdade e injustiça entre os cidadãos são evitadas mediante a “total alienação de cada associado, com todos os seus direitos, em benefício da comunidade”. Não sendo total essa alienação, o indivíduo ficará exposto à dominação pelos outros. Em caso contrário, o cidadão não obedece a interesses de apenas um setor do conjunto social, mas à vontade geral, que é “uma força real, superior à ação de qualquer vontade particular”. Essa obediência jamais suscita apreensão, pois a vontade geral, segundo Rousseau, é sempre dirigida para o bem comum.
A alienação total ao Estado envolve igualdade ainda noutro sentido, na medida em que a vontade geral não é autoridade externa obedecida pelo indivíduo a despeito de si mesmo, mas corporificação objetiva de sua própria natureza moral. Aceitando a autoridade da vontade geral, o cidadão não só passa a pertencer a um corpo moral coletivo, como adquire liberdade obedecendo a uma lei que prescreve para si mesmo. É por intermédio da lei apetitiva para seguir os ditames da razão e da consciência. A submissão à vontade geral, possuidora de “inflexibilidade que nenhuma força humana pode superar”, conduz a uma liberdade que “resguarda o homem do vício” e a uma moralidade que “o eleva até a virtude”. O indivíduo é, assim, investido de uma outra espécie de bondade, aquela virtude genuína do homem, que não é um ser isolado mas parte de um grande todo. Liberto dos estreitos limites de seu próprio ser individual, encontra plenitude numa verdadeira experiência social de fraternidade e igualdade, junto a cidadãos que aceitam o mesmo ideal.
A concepção rousseauniana do direito político é, portanto, essencialmente democrática, na medida em que faz depender toda autoridade e toda soberania de sua vinculação com o povo em sua totalidade. Além disso, a soberania é inalienável e indivisível e, como base da própria liberdade, é algo a que o povo não pode renunciar ou partilhar com os outros, sob pena de perda da dignidade humana. A soberania pode, contudo, ser delegada em suas funções executivas, segundo formas diversas; nascem, assim, os governos monárquicos, aristocráticos e republicanos, cada um devendo corresponder a circunstâncias históricas e geográficas específicas.
Para Rousseau, a lei, como ato da vontade geral e expressão da soberania, é de vital importância, pois determina todo o destino do Estado. Assim os legisladores têm relevante papel no Contrato Social, sendo investidos de qualidades quase divinas. E deles que o cidadão “recebe, de certa forma, sua vida e seu ser” e transforma-se superando a existência independente, que usufrui no estado natural, e penetrando na vida moral como um ser comunitário. Esse novo modo de existência não lhe é imposto de fora, mas resulta de uma vontade proveniente do fundo de seu ser interior. Os legisladores devem, assim, assemelhar-se aos deuses, mas perseguindo sempre o objetivo de servir às necessidades essenciais da natureza humana. (ROUSSEAU, 1997, p. 17-19)
[...] Nada compreenderemos do “utopismo” de Rousseau, se esquecer-mos esse pano de fundo, essa preocupação por uma política que, para o homem, seja meio de se fazer, não de se corromper. É verdade que “por toda parte o homem está agriolhado”. A política é a arte de forjar esses grilhões ou, pelo contrário, de libertar deles? Quem sabe o que significa liberdade?
Dessa ciência, Rousseau empreendeu o esbouço no Discours sur l’inégalité, que é uma das chaves de O contrato social. Pondo entre parênteses a sociedade, para melhor visar ao que é natural e não cultural, Rousseau imagina um “estado de natureza” onde cada um vive sozinho. O homem original é uma espécie de animal tranquilo, movido por poucas necessidades, indiviso, sem coerção e, consequentemente, feliz, ligado apenas ao presente. Mas permanece “estúpido e limitado”. Ora, segundo sua natureza, ele também é perfectível, portanto chamado a se desenvolver. Aqui intervém a sociedade: apenas ela permite que se adquira a palavra, a memória, as ideias, os sentimentos, a consciência moral, em suma, as luzes. Infelizmente essa educação dos homens foi feita ao acaso, sem princípios, sem reflexão, sem repeito pela ordem natural. O resultado é um estado em que as necessidades do homem se multiplicam, em que ele não as pode satisfazer sem o outro: torna-se cada vez mais fraco, cada vez mais dividido e preocupado, cada vez menos livre. Vive num estado de “agregação”, onde cada um pensa em primeiro lugar em si mesmo, luta a fim de se fazer reconhecer e dominar. Para sobreviver é preciso fazer-se aceitar, submeter-se ou impor-se, portanto preocupar-se com a opinião dos outros. Esta é a pior escravidão: precisamos dissimular o que somos. O homem natural se destrói sem se realizar, um eu fictício vai formando-se aos poucos e substitui nosso verdadeiro eu. Todos ficam divididos e infelizes, e acabam se acomodando com seus grilhões.
Nesse estado instável, perigoso, até os poderosos podem temer a revolta ou a astúcia dos fracos. Sua habilidade evita isso: seduzindo a opinião ingênua dos fracos, eles os convencem a legalizar o estado de fato (não a legitimá-lo) por um falso contrato social: nós lhe concedemos segurança, dizem eles, contanto que vocês nos concedam obediência. Assim são os homens que conhecemos, quando as leis fortalecem os fortes e enfraquecem os fracos. Uns penam, os outros governam. Dizem-nos agora: assim é a natureza. Os filósofos o justificam com uma moral do interesse que vê a felicidade na multiplicação dos prazeres, sem compreender que ela mergulha todo homem na escravidão de seus desejos, de suas ambições, do luxo, da vaidade, das paixões. Em nenhum lugar há liberdade, nem felicidade. (ROUSSEAU, 1996, p.XIII)
Assaz imperiosa a conclusão de que:
[...] O segundo discurso leva-nos, pois, ao seguinte ponto: o estado de natureza não poderia subsistir eterna e imutavelmente: impunha-se que as tendências ao aperfeiçoamento acabassem por desenvolver-se no homem natural, mas não era necessário que se desenvolvessem numa direção determinada. A via que a humanidade tomou resulta, na realidade, de fatos contingentes. Essas tendências desenvolveram-se ao acaso, ao sabor do arbítrio – daí adveio o mal -, mas poderiam e deveriam ter sido dirigidas durante seu desenvolvimento; desse modo, o bem teria sido conservado. Qual a direção que se deve impor às tendências naturais por ocasião da passagem para o estado social? Essa é a questão que resta a resolver depois do Discurso sobre a Origem da Desigualdade. (ROUSSEAU, 1978, p. 213)
8 – Considerações finais
Para encerrar este artigo, reproduzirei a coleção de máximas de Rousseau que trazem Barelli e Pennacchietti (2001), em seu “Dicionário”. Creio que tais pensamentos expressam, por si sós, o que foi o autor alvo dessa investigação. Deixemos, então, que ele se entregue a nós, em suas próprias palavras. Seguem, pois, os principais dizeres:
“Povos livres, lembrai-vos desta máxima: A liberdade pode ser conquistada, mas nunca recuperada” (“O contrato social”, 2001, p. 285).
“Se então tirarmos do pacto social aquilo que não constitui a sua essência, descobriremos que ele se reduz aos seguintes termos: cada um de nós põe em comum a própria personalidade e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos dentro de nós cada membro da sociedade como parte indivisível do todo.” (“O contrato social”) (Ibidem, p. 290-291)
“A natureza fez o homem feliz e bom, mas [...] a sociedade o corrompe e torna-o miserável”. (“Rousseau, juiz de Jean-Jacques”, Op. cit., p. 383)
“Fazer um homem feliz significa merecer sê-lo”. (“Correspondance”, Ibidem, p. 455)
“Não sei ver nada do que vejo; vejo bem apenas o que relembro e tenho inteligência apenas na minha lembrança”. (“Les confessions”) (Op. cit., p. 632)
“Quanto mais do mundo vi, menos pude moldar-me à sua maneira”. (“Les confessiones”) (Op. cit., p. 708)
“Os homens dizem que a vida é breve, e eu vejo que fazem de tudo para deixá-la como tal” (“Emílio ou da educação”) (Ibidem, p. 731)
“Tudo vai bem quando sai das mãos do Autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem” (“Emílio ou da educação”) (Ibidem, p. 873).
“Com o contrato social, o homem perde sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que o atrai e que ele pode alcançar; ganha, por sua vez, a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui”. (“O contrato social”) (Op. cit., p. 954)
Cada homem cumpre um papel, cada atitude tem seu reflexo, cada vida tem um significado... Todos assumem um destino. Rousseau desmascarou nossa sociedade.
Falar de cidadania e liberdade requer, impreterivelmente, a menção a Rousseau, pois rememorar os conceitos de desigualdade e de sociedade não é labor fácil sem o registro do que afirmara esse filósofo. Contemporâneo em suas colocações, os livros que escreveu adentram na natureza do homem e desnudam um “contrato” que é a origem dos malefícios a se abater sobre todas as pessoas. Riqueza, pobreza, alienação, mesquinhez, corrupção, miséria são exemplos de termos que abalam os resquícios do que podemos esperar de liberdade. E todas essas palavras, vazias como vieram ao mundo, são compreendidas, em sua totalidade de extensão, ganham “cor” e altivez, na obra de tão ilustre pensador.
Ao momento em que ousamos indagar até que ponto nossa cidadania resta abalada por um consumismo desenfreado, por um abandono de qualquer projeto político ou econômico, pelas disparidades sociais, pelo abismo intelectual, pela descrença nas instituições, pela exclusão tecnológica, pela concentração de renda, por um menosprezo pelo valor da vida, pela perda da noção de esperança, pela mera discriminação do ser humano enquanto pessoa de direitos e deveres, ousamos, também, entender o porquê desse estado fático, que persegue as sociedades atuais. E é no “Discurso” de Rousseau que vislumbramos a real origem desse quadro de horrores, onde o selvagem, em estado de natureza, teria, ou dizendo de outra forma, experimentaria uma liberdade maior e melhor que os civilizados dos dias correntes. Kliutchevski falara que “o valor de todo conhecimento está no seu vínculo com as nossas necessidades, as nossas aspirações e ações; de modo diferente, o conhecimento torna-se um simples lastro de memória, capaz apenas de diminuir a oscilação da vida cotidiana”. Rousseau, e seus pensamentos, restam vivos em nosso dia a dia.
É frase comum do cotidiano a que afirma: “o homem está virando bicho”. Ou pior ainda, é normal as pessoas dizerem que reconhecem nos animais sentimentos humanos. “O homem não vale nada” (para ninguém), é o que ouvimos, com certa constância. Não se divisa “humanidade” nas ações humanas, quer pessoais, profissionais, comerciais etc. E interessante é que tais entendimentos são perfeitamente visualizados no texto de Rousseau, consoante o qual, a perda da natureza implicou o esquecimento da pureza, dos valores mais nobres, do respeito, enfim, abriu-se mão de sentimentos altruísticos e sensatos para a implementação da inveja, da avareza, do despeito, da discórdia e da aparência, a desestabilizar as relações entre as pessoas e agravar as feições díspares de um projeto social fadado ao fracasso e a morte dos mais belos ideais.
As leituras atualmente feitas remetem e muito ao “contrato social”, haja vista que os questionamentos sobre o presente estado das coisas vão muito além do que qualquer complexa teoria neoliberalística possa ser plenamente capaz de explicar. Afinal, a crise é interna, é do âmago das pessoas, cansadas do sofrimento que lhes é imposto pela hipocrisia de demagogos. Noutra colocação, a crise é da sociedade em que vivemos, e não há reforma conjuntural que corrija séculos de expropriação a gerar a panaceia estrutural que enfrentamos diariamente.
Fatores externos como a globalização dos mercados não são aptos a explicar ou justificar a morte de uma pessoa por esta não poder comprar o alimento básico, nem, tampouco, essa pessoa morrer sem atendimento médico na chamada era do conhecimento, ou pior, uma criança não ter expectativa de vir a ser alguém na vida por ter nascido pobre, isso só para citar alguns exemplos. O ser humano, em sociedade, não pode mais fazer o que quiser do bem mais valioso que possui, que é a própria vida, por estar “enfiado” numa realidade que lhe exclui do acesso a moradia, da ascensão a um emprego digno, da escola para que possa aprender a ser “gente”, negando os direitos essenciais da cidadania e os sonhos para com um futuro mais promissor. Se milhões de seres humanos padecem na extrema pobreza a culpa é de cada um de nós e, ao mesmo tempo, de todos nós, e Rousseau diz isso em seu “Discurso”.
Não temos sequer piedade para com os demais. Atribuímos à lei, e aos nossos legisladores, a tarefa de pacificar e igualar a sociedade moderna e intricada como se encontra. Deixamos de lado a obrigação para com a família, que perde sentido, se desagrega e se desconstituí enquanto valor. Perdemos o controle sobre os nossos filhos. Não cremos em nada que não permita ganhos ou lucros. Rotulamos crescimento econômico como sendo a única força motriz da melhoria da qualidade de vida da nação. Aceitamos passivos o açoite da mídia e do marketing, a direcionar nossas escolhas e a impor as poucas opções que nos são dadas. Abdicamos da fé na política. Vemos, incrédulos, a mercantilização da “felicidade”. Arruinamos qualquer concepção de tempo e espaço. Cedemos à violência descontrolada. Matamos o meio-ambiente que nos sustenta. Desrespeitamos a vida. Apropriamo-nos, perigosamente, da afirmação que assevera que “é o próprio homem quem cria seu pesadelo”. Não entendemos, portanto, o que foi que deu errado com o projeto mal-acabado de humanidade, e ninguém, anteriormente a Rousseau, tinha nos avisado disso.
Abrimos mão da liberdade, perdemos a cidadania, esquecemos o que é ser um homem em seu estado bruto, sem preconceitos e sem as amarras da cultura. Sepultamos os sonhos e usamos a civilização como lápide. Portanto, em meio a esse terror, qualquer que tenha sido o “contrato” firmado, em que se atribuiu a um governo, a um Estado legalmente constituído, a meta de “igualar desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades”, serei eu a dizer que tal pacto falhou, e muito, em dar a liberdade esperada e em construir a cidadania por todos desejada. Mas o direi com convicção, o afirmarei com paixão e o defenderei com entusiasmo por ter lido e por conhecer a obra de Rousseau. Eis a conclusão do artigo.
9 – Referências
BARELLI, Ettore; PENNACCHIETTI, Sergio. Dicionário das citações: 5000 citações de todas as literaturas antigas e modernas com o texto original. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: Rousseau - Coleção Os Pensadores, 2ª ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: Rousseau - Coleção Os Pensadores, 5ª ed., São Paulo: Nova Cultural, 1997.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. São Paulo: Bertrand Brasil, 1992.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. 3ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
[1] “No concerto do mundo, os grandes espíritos são solistas, e suas cadências interrompem o ritmo uniforme da música da vida” (L. Borne). “As grandes naturezas produzem grandes vícios, como também grandes virtudes” (Platão). “Ser grande significa ser incompreendido” (Emerson). “Não temas a grandeza: uns nasceram grandes, outros alcançam a grandeza, e para outros, a grandeza se precipita sobre eles” (Shakespeare).
[2] Interessantes são as demais máximas que constam da mesma página do Livro “Dicionário das Citações”, de Ettore Barelli e Sergio Pennacchietti (2001), as quais seguem: “Também odeio os livros, muitos livros: mas com eles aprendo menos do que com a vida. Apenas um livro me ensinou muito: o dicionário. Oh, o dicionário, adoro-o. Mas também adoro a estrada, um dicionário muito mais maravilhoso” (E. Petrolini, comediógrafo itialiano, 1886-1936, “Modestia a parte”, Come recito). “Nunca viajo sem meu diário. É preciso ter sempre algo extraordinário para ler no trem” (O. Wilde, escritor inglês, 1854-1900, “A importância de ser sério”, II). “Alguns livros devem ser provados, outros devorados, e poucos, mastigados e digeridos” (F. Bacon, filósofo inglês, 1561-1626, “Essays”, 50, Of Studies). “Não importa a quantidade dos livros que tens, mas a sua qualidade” (Sêneca, filósofo latino, 4 a.C.-65 d.C., “Cartas a Lucílio”, 45, I). “É mais necessário estudar os homens do que os livros” (F. La Rochefoulcauld, escritor francês, 1613-1680, “Maximes posthumes”).
Advogado, com Especialização em Direito Tributário e Mestrado em Ciências Jurídicas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TAVARES, Thiago Nóbrega. Os temas da liberdade e da cidadania na obra "Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens", de Jean-Jacques Rousseau Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 mar 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43538/os-temas-da-liberdade-e-da-cidadania-na-obra-quot-discurso-sobre-a-origem-e-os-fundamentos-da-desigualdade-entre-os-homens-quot-de-jean-jacques-rousseau. Acesso em: 23 dez 2024.
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