Resumo: O presente artigo tem como objetivo avaliar a possibilidade ou não de valoração da circunstância judicial da personalidade. Para tanto, traz-se à baila a divergência da doutrina e da jurisprudência acerca da necessidade ou não do julgador possuir conhecimento técnico para tal desiderato.Nessa linha, analisa-se se deve o réu ser apenado somente pelo o que ele fez ou se também pelo o que ele é e pensa.
Palavras-chave: Circunstância Judicial. Personalidade. Pena-Base.
1. INTRODUÇÃO
A palavra personalidade tem sua origem na palavra persona, cujo significado é máscara. Isso porque os atores de peças gregas utilizavam as máscaras para incrementar seus papéis e dar-lhes maior significado. Partindo daí, personalidade, na atualidade, seriam os papéis em que as pessoas desempenham na sociedade.[1]
Para o Código Penal, a personalidade é entendida como o conjunto de qualidades morais do indivíduo.[2] Se refere então, nesse passo, a índole, ao caráter, ao conjunto de traços emocionais e comportamentais que caracterizam a vida corriqueira do acusado.[3]
Tendo em vista o referido conceito, como é possível a valoração da personalidade na primeira fase de aplicação da pena?
2. DESENVOLVIMENTO
A personalidade possui uma parte herdade e outra parte que é adquirida. Por isso, diz ser um todo complexo, sendo que cada parte influencia ou determina o comportamento humano.[4]
Entretanto, salienta-se que a personalidade não permanece inerte, mas se mantém em constante mutação. Isso porque fatores ocorridos durante a vida das pessoas podem influenciar em uma alteração sobremaneira de suas personalidades.[5]
Em razão de a personalidade ligar-se intimamente à conduta do indivíduo, é que se permite ao juiz majorar ou atenuar a pena.[6]
Por exemplo, o juiz, ao se deparar com o tipo sádico, que sente prazer em infligir dor a outrem, mormente no contexto sexual, deve aplicar pena-base exasperada por possuir tal indivíduo personalidade desajustada.[7]
Com efeito, deve o magistrado buscar colher dados referentes à boa ou má índole do acusado, seu modo de agir e de sentir, seu senso moral, se possui desvios de caráter, se é ético ou não possui qualquer respeito às regras para viver em sociedade.[8]
Assim, vê-se que os antecedentes do acusado contribuem para análise de sua personalidade, na medida em que, muitas vezes, podem revelar qual seu comportamento, suas reações em sociedade, sua maneira de ser.[9]
Mas não é só.
O comportamento do réu com sua família, seus amigos, bem como seu comportamento subseqüente ao crime são fatores importantes para determinação da personalidade.[10]
No entanto, a avaliação sobre a personalidade do réu deve estar em consonância com o contexto social em que ele vive ou viveu.[11]
Ante o exposto, nota-se que a tarefa do juiz em colher dados sobre a personalidade do réu não se mostra simples, sendo necessária a realização de instrução probatória com qualidade.
O indeferimento da oitiva de testemunhas que não presenciaram os fatos, mas que podem auxiliar o magistrado a colher informações importantes sobre a personalidade do agente, fere, sem dúvidas, o princípio da individualização da pena.
A doutrina e a jurisprudência se dividem no tocante à capacidade técnica ou não do julgador em avaliar a personalidade do agente.
Aos que entendem que possui o magistrado capacidade de avaliar a personalidade do acusado, acreditam que não é preciso ser biólogo, antropólogo ou psicólogo para analisá-la, sendo apenas necessário ter-se uma idéia do homem que infringiu a norma penal.[12]
Ainda, aduzem que se fosse necessário o julgador ser profissional especializado, não poderia ele avaliar quase nada em matéria penal. Como não se trata de um autêntico diagnóstico, mas somente um critério elegido pelo legislador na aplicação da pena, desnecessária tal exigência.[13]
Por sua vez, a vertente que acredita ser necessária a capacidade técnica do julgador parte da premissa de que somente profissionais de saúde, como psicólogos, psiquiatras, terapeutas, é que possuem condições de avaliar essa circunstância judicial.[14]
Segundo citada posição, é impossível aferir a personalidade de determinado indivíduo apenas analisando suas manifestações de caráter ou de temperamento. Exige-se, para tanto, conhecimento técnico-científico de antropologia, psicologia, medicina, psiquiatria.[15]
Por isso, firmam o entendimento de que o magistrado não pode levar em conta o critério personalidade na fixação da pena-base.
Observe-se, nesse aspecto, que, consoante nossa legislação vigente, o juiz somente pode recorrer à perícia médico-psiquiátrica para constatar a imputabilidade ou semi-imputabilidade do réu.[16]
Interessante mencionar que os psicólogos atribuem significados diferentes ao termo personalidade, sendo que o autor Allport, inclusive, extraiu quase cinqüenta definições diferentes. Assim, caso então o julgador opte em avaliar a personalidade do acusado, deve apontar qual o conceito de personalidade em que se baseou para a tarefa, qual a metodologia utilizada, quais foram os critérios e os passos seguidos e, por conseguinte, em qual momento processual foi-lhe possibilitada a averiguação.[17]
Vale dizer que, não obstante qual posição se filie, o magistrado não pode partir de uma valoração estritamente moral sobre o 'ser' do acusado. Com efeito, deve buscar fazer uma avaliação técnica, afastada de suas opiniões pessoais.
O que se vê, contudo, na prática forense, são sentenças criminais precárias, superficiais, e não raro preconceituosas, que se limitam a fazer afirmações genéricas como: “personalidade ajustada”, “desajustada”, “agressiva”, “impulsiva”, “boa”, “má”.[18]
Importa destacar, por fim, que há corrente doutrinária que entende ser legítimo somente punir o agente pelo o que ele fez, e não pelo que é ou pensa.
Nesse sentido, destaca-se a posição de Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho:
Mister, portanto, ressaltar, mais uma vez, que, em decorrência da secularização moderna do direito penal e de sua separação com a moral (e também com a natureza), todas as pessoas são penalmente iguais, enquanto apenas aquilo que fazem e não aquilo que são deve ser pela lei previsto e pelo juiz valorado e punido, da mesma forma como seria com qualquer outro imputado. Logo, são admissíveis apenas normas que proíbem e previnam fatos, e não normas que proíbam ou desmoralizem identidades, apenas juízos que acertem a prova de uma ação e não valorações sobre a personalidade do réu; apenas tratamentos punitivos relacionados ao fato previsto como delito e resolvido mediante provas, e não tratamentos individualizados e modelados sobre a personalidade do imputado ou recluso.[19]
Assim também já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, in verbis:
Pena. Dosimetria. Circunstâncias Judiciais da Personalidade e Conduta Social. Impossibilidade de Agravar a Punição. As circunstâncias judiciais da conduta social, da personalidade, previstas no art. 59 do CP, só devem ser consideradas para beneficiar o acusado não para lhe agravar mais a pena. A punição deve levar em conta somente as circunstâncias e conseqüências do crime. E excepcionalmente minorando-a face à boa conduta e/ou a boa personalidade do agente. Tal posição decorre da garantia constitucional da liberdade, prevista no artigo 52 da Constituição Federal. Se é assegurado ao cidadão apresentar qualquer comportamento (liberdade individual), só responderá por ele, se a sua conduta (lato senso) for ilícita. Ou seja, ainda que sua personalidade ou conduta social não se enquadre no pensamento médio da sociedade em que vive (mas seus atos são legais), elas não podem ser utilizadas para o efeito de aumentar sua pena, prejudicando-o.[20]
Frise, ademais, que a constatação pelo órgão jurisdicional de que o acusado é portador de transtorno de personalidade deveria conduzir não a uma punição mais elevada, mas a uma maior atenção e apoio profissional, com o fito de que o réu possa se libertar de seu problema e adquirir uma consciência humana e de cidadão.
3. CONCLUSÃO
Ante o exposto, adotando-se a posição de que ao julgador não se exige capacidade técnica para avaliar a personalidade do agente, cabe ao juiz colher elementos probatórios para avaliar a circunstância judicial personalidade. Caso não seja possível a colheita de tais informações, não pode a personalidade ser valorada negativamente em prejuízo do réu.
Por sua vez, adotando-se a vertente que defende ser necessária a capacidade técnica do julgador, cabe ao juiz se valer de profissionais de saúde, como psicólogos, psiquiatras, terapeutas, a fim de avaliar tal circunstância judicial.
De qualquer sorte, a não valoração da personalidade como circunstância judicial mostra-se mais justa e adequada, já que o agente deve ser punido pelo que ele fez, e não pelo que é ou pensa.
REFERÊNCIAS
- BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
- BOCCHI. José Antônio Paganella. Das Penas e seus critérios de aplicação. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
- BRUNO. Anibal. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Editora Forense, 1967.
- CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001.
- COSTA JR. PAULO JOSÉ DA. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. v. 1.
- GRECO. Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.
- JESUS. Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991.
- NORONHA. E. Magalhães. Direito penal. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1.
- NUCCI. Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
- PRADO. Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. v. 1.
- SIQUEIRA. Galdino. Tratado de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1950. Tomo II.
- SOUZA. Paulo S. Xavier de. Individualização da pena no estado democrático de direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2006.
- TELES. Ney Moura. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. 1.
- TOLEDO. Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
- ZAFFARONI. Eugênio Raúl; PIERANGELI; José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
[1] NUCCI. Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 205-218.
[2] JESUS. Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991.p. 484.
[3] PRADO. Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. v. 1. p. 517.
[4] BRUNO. Anibal. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Editora Forense, 1967. p. 154-156.
[5] NUCCI. Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 205-218. Nessa linha: “(...) a personalidade não é uma figura estática, uma vez por todas definida, mas resulta de um processo contínuo, em que sobre o herdado se vai enxertando, para completá-la ou modificá-la, o adquirido através do curso da existência, sob as pressões estimulantes ou traumatizantes do meio no qual se trata o debate da vida”. BRUNO. Anibal. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Editora Forense, 1967. p. 154-156.
[6] COSTA JR. PAULO JOSÉ DA. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. v. 1. p. 165.
[7] NUCCI. Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 205-218.
[8] Nesse sentido: “Na análise da personalidade deve-se verificar a sua boa ou má índole, sua maior ou menor sensibilidade ético-social, a presença ou não de eventuais desvios de caráter de forma a identificar se o crime constitui um episódio acidental na vida do réu”. BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 592; ““Quanto à personalidade, registram-se qualidades morais, a boa ou má índole, o sentido moral do criminoso, bem como sua agressividade e o antagonismo com a ordem social intrínsecos a seu temperamento”. MIRABETE. Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 299; “O juiz deve ter em atenção a boa ou má índole do delinqüente, seu modo ordinário de sentir, de agir ou reagir, a sua maior ou menor irritabilidade, o seu maior ou menor grau de entendimento e senso moral. Deve retraçar-lhe o perfil psíquico”. NORONHA. E. Magalhães. Direito penal. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1. p. 240.
[9] BRUNO. Anibal. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Editora Forense, 1967. p. 154-156.
[10] BRUNO. Anibal. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Editora Forense, 1967. p. 154-156.
[11] NUCCI. Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 205-218. Nessa linha: “A consideração da personalidade do criminoso impõe a do seu mundo circundante, das condições em que se formou e em que vive”. BRUNO. Anibal. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Editora Forense, 1967. p. 154-156.
[12] BRUNO. Anibal. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Editora Forense, 1967. p. 154-156.
[13] NUCCI. Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 205-218.
[14] GRECO. Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. p. 565.
[15] BOCCHI. José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 203-209.
[16] SIQUEIRA. Galdino. Tratado de direito penal. 2. Ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1950. Tomo II. p. 754-756.
[17] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 54-61.
[18] Nesse sentido: “O tema justifica a maior atenção dos penalistas mesmo porque da leitura das sentenças e dos acórdãos fácil é a percepção de que os
magistrados, em cumprimento à dicção do artigo 59 do CP, limitam-
se a fazer afirmações genéricas do tipo "personalidade ajustada",
"desajustada", "agressiva", "impulsiva", "boa" ou "má", que nada di-
zem tecnicamente, salvo em nível de temperamento ou de caráter”. BOCCHI. José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 203-209”.
[19] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. p. 54-61.
[20]Apelação-crime nº 70000907659, Rel. Des. Sylvio Baptista, 6ª Câmara Criminal, DJ de 15/6/2000.
Defensora Pública do Estado de Santa Catarina. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAUN, Raquel Paioli. A (im)possibilidade de valoração da personalidade do agente como circunstância judicial do artigo 59 do Código Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 mar 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43539/a-im-possibilidade-de-valoracao-da-personalidade-do-agente-como-circunstancia-judicial-do-artigo-59-do-codigo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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