RESUMO: O objetivo basilar deste artigo se concretiza numa meditação acerca do ideário penal do jurista italiano Cesare Beccaria e sua preciosa contribuição para a construção do direito penal moderno. Sua mais famosa obra e ponto chave deste trabalho - Dei delitti e delle pene (Dos delitos e das penas) – traz à tona suas reflexões, sobretudo referentes ao modo como funcionava o sistema penal de sua época e, contribui, como se verá, para a busca incessante da adoção futura de penas mais humanizantes e eficazes para os delitos cometidos em sociedade. Contudo, com vistas a facilitar a compreensão do ideário penal do autor, faz-se necessária uma breve definição de crime, pena e Direito Penal.
PALAVRAS-CHAVE: Meditação. Direito Penal. Crime. Pena.
ABSTRACT: The basic aim of this paper is realized in a meditation on the criminal ideas of Cesare Beccaria Italian jurist and their valuable contribution to the construction of modern criminal law. His most famous work and key point of this work - Dei delitti e delle pene (Of the offenses and penalties) - brings up their reflections, especially relating to the way work the penal system of his day, and contributes, as will for the relentless pursuit of the future adoption of more humanizing and effective penalties for offenses committed in society. However, in order to facilitate understanding of the criminal author's ideas, it is necessary a brief definition of crime, punishment and criminal law.
KEYWORDS: Meditation. Criminal Law. Offense. Punishment.
1 INTRODUÇÃO
Visando facilitar a compreensão das ideias desenvolvidas por Beccaria, mais a frente neste estudo, é de suma importância que se faça uma breve explanação de alguns conceitos os quais serão retomados constantemente ao longo deste trabalho, sobretudo, na obra fundamental norteadora deste artigo, Dos delitos e das penas.
Justificada tal necessidade, é essencial definir, preliminarmente, os conceitos de crime, pena e Direito Penal. De acordo com a professora de sociologia Raquel Weiss, foi de grande valia para a seara do direito, principalmente na esfera penal, as contribuições do sociólogo Émile Durkheim, sobretudo ao definir direito, crime e pena. Para ele, ao estabelecer relações uns com os outros, os indivíduos constroem uma consciência coletiva que comunga e compartilha dos mesmos “ideais sociais”, isto é, dos mesmos “bens” que todos devem perseguir e proteger. A violação destes ideais, atingindo fortemente aquilo que de mais sagrado se procura proteger, constitui o crime.
“Em outras palavras, não se deve dizer que um ato ofenda a consciência comum por ser criminoso, mas que é criminoso porque ofende a consciência comum. Não o reprovamos por ser um crime, mas é um crime porque o reprovamos”. (Durkheim, 1999 p. 52).
Arremata Weiss:
Portanto, é na própria consciência coletiva que se deve buscar as explicações para aquilo que é considerado um crime em determinada sociedade, afinal o crime é aquilo que coloca em risco a validade dessas representações que constituem essa consciência, que é a maior fonte de autoridade moral e a condição de possibilidade da própria sociedade. (Weiss, 2013. p. 46)
Ainda, no que se refere à conceituação de crime, é salutar as preleções dos professores André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves em obra coordenada pelo professor Pedro Lenza. Para eles, o conceito de crime pode ser abordado sob diversos enfoques, destacando-se o material o formal e o analítico. O primeiro, relacionado ao que a sociedade considera crime; o segundo, referindo-se ao que a lei define como crime, impondo sanção correspondente ao delito; e o terceiro, que promove a análise dos elementos constituintes do crime, demonstrando suas relações e interdependências:
O conceito material é o que se ocupa da essência do fenômeno, buscando compreender quais são os dados necessários para que um comportamento possa ser considerado criminoso ou, em outras palavras, o que justifica seja uma conduta considerada penalmente relevante aos olhos da sociedade. O conceito formal intenta definir o delito focando em suas consequências jurídicas, isto é, na espécie de sanção cominada. Assim, por exemplo, o inadimplemento contratual não pode ser considerado crime, pois não acarreta a imposição de nenhuma sanção penal [...], mas apenas provoca o dever de indenizar a parte contrária. O conceito analítico [...] trata de conhecer a estrutura e os elementos do crime, sistematizando-os de maneira organizada, sequenciada e inter-relacionada. (Estefam e Gonçalves, 2012. p. 213)
No que tange à definição de pena, pode-se dizer que esta se configura como uma sanção negativa ou punição, que representa a repressão ao comportamento considerado desviante e que, por sua natureza, contribuiu para a violação dos ideais mais básicos da sociedade. Em outras palavras, a pena corresponde à resposta jurídica dada ao crime.
O vínculo de solidariedade social a que corresponde o direito repressivo é aquele cuja ruptura constitui o crime. Chamamos por esse nome todo ato que, num grau qualquer, determina contra seu autor essa reação característica a que chamamos de pena. (Durkheim, 1999. p. 39)
Para os professores Estefam e Gonçalves, anteriormente citados, corroborando com o pensamento de Durkheim quando este fala em “direito repressivo”, pena:
É a retribuição imposta pelo Estado em razão da prática de um ilícito penal e consiste na privação ou restrição de bens jurídicos, determinada pela lei, cuja finalidade é a readaptação do condenado ao convívio social e a prevenção em relação à prática de novas infrações penais. (Estefam e Gonçalves, 2012. p. 365)
Por fim, o Direito Penal, em que consiste? Os juristas, com fins didáticos, costumam chamar o todo do Ordenamento Jurídico de árvore jurídica. Nesse sentido, poderia-se dizer que Direito Penal, assim como tantos outros a exemplo de Direito Administrativo, constitui-se como um dos ramos da Ordem Jurídica ou Árvore Jurídica, como é chamada por muitos. Ainda, Direto Penal:
Cuida-se do ramo do Direito Público, que se ocupa de estudar os valores fundamentais sob os quais se assentam as bases da convivência e da paz social, os fatos que os violam e o conjunto de normas jurídicas (princípios e regras) destinadas a proteger tais valores, mediante a imposição de penas e medidas de segurança. (Id. Ibid. p. 33)
2 O PENSAMENTO BECCARIANO ACERCA DO DIREITO PENAL
Cesare Beccaria (1738-1794) nasceu no século XVIII, mais precisamente na cidade de Milão, na Itália. Sua época foi profundamente marcada pelo Iluminismo, o qual, dentre outras ideias, hasteava incessantemente a bandeira dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Foi um período marcado por constantes debates sobre diversas áreas do conhecimento humano como a economia, a administração e, especialmente o direito.
Tais debates eram encabeçados por reformistas sociais que buscavam conciliar as contribuições de diversas extrações sociais, desde matemáticos a juristas, com a finalidade de alcançar os já citados ideais. Beccaria surge neste contexto como reformador após formar-se em direito pela Universidade de Pavia e demonstrar profundo interesse pelos fatos sociais.
Adepto da teoria do contrato social de Thomas Hobbes, Beccaria vê o Estado como o responsável por preservar as liberdades individuais, bem como prevenir ações que causem prejuízos ao bem estar coletivo. O autor, tal qual Hobbes, acredita que a gênese das leis se deu graças ao contrato social para proteger as porções de liberdades individuais cedidas ao Estado, das possíveis ações decorrentes ainda do estado de natureza, anterior ao paco social.
Sua principal obra e objeto norteador da reflexão deste artigo, Dei delitti e delle pene (Dos delitos e das penas), escrita em 1763 e publicada em 1764 é considerada como um crítica direta aos sistemas penais de sua época e demonstram sua repulsa à forma como se aplicavam as penas, sobretudo desumanas e desproporcionais em relação aos crimes praticados e que, muitas vezes, eram fruto da arbitrariedade de juízes extremamente parciais em seus julgamentos. A referida obra é publicada em meio ao choque de ideias sobre o direito. De um lado, o direito natural, dado por Deus, logo imutável; do outro, o direito positivo, que à medida que é construído pelos homens, estes podem adaptá-lo para atender as demandas sociais.
Profundo admirador da corrente utilitarista, a qual defende a ideia de que as ações humanas e públicas, por parte do Estado, devem se pautar num cálculo utilitário no qual seus resultados práticos devem promover a maior felicidade possível para o maior número de pessoas possível, Beccaria sugere a concepção utilitária da prevenção à concepção purgativa da pena. Esta corrente de pensamento tem em Jeremy Benthan seu maior expoente. Em 28 de novembro de 1794, morre Beccaria vitimado por um acidente vascular cerebral.
A primeira grande consideração que Beccaria faz ao iniciar sua obra - Dos delitos e das penas - é uma crítica aos sistemas de leis que surgiram no decorrer da história. Para ele, esses sistemas de leis deveriam ser o fruto ou resultado da associação de homens livres bem como deveriam atuar de forma imparcial na promoção do máximo de bem-estar social. Contudo, ao fazer sua análise da história da formação das leis, sobretudo as penais, evidencia que elas nasceram ou da parcialidade de alguns ou das necessidades casuais de outros:
Consultemos a história e veremos que as leis, que são ou deveriam ser pactos entre homens livres, não passaram, geralmente, de instrumentos das paixões de uns poucos, ou nasceram da necessidade fortuita e passageira; jamais foram elas ditadas por um frio examinador da natureza humana, capaz de aglomerar as ações de muitos homens num só ponto e de considerá-las de um único ponto de vista: a máxima felicidade compartilhada pela maioria. (Beccaria, 2005. pp. 39-40)
Discorre, adiante, sobre a formação das leis que, segundo ele, tiveram sua gênese a partir do momento em que os indivíduos abandonaram seu estado de natureza e aderiram ao pacto social, demonstrando assim a influência do contratualismo em seu pensamento, como já fora mencionado.
Nesse ínterim as leis seriam, portanto, os mecanismos que regulariam as relações entre os homens com vistas à proteção das pequenas porções de liberdade sacrificadas para formar a soberania, exercida pelo Estado. Todavia, poderia ocorrer que os homens incorressem em ações que remontassem ao estado anterior e transgredissem as leis. Contudo, no intuito de evitar essas condutas, surgem as penas:
Faziam-se necessários motivos sensíveis suficientes para dissuadir o espírito despótico de cada homem de novamente mergulhar as leis da sociedade no antigo caos. Esses motivos sensíveis são as penas estabelecidas contra os infratores das leis. (Beccaria, 2005 p. 41)
Diante disto, cabe somente ao Estado, como depositário das pequenas porções de liberdade, o direito de punir, isto é, aplicar as penas nos casos em que ocorrerem transgressões de outrem ao bem comum. Para o autor, é do conjunto dessas mínimas liberdades individuais, as quais o indivíduo necessita de proteção, que surge o direito de punir. Contudo, afirma a possibilidade de haver abusos na aplicação das penas por parte do Estado, neste caso, estas serão injustas:
E por justiça eu não entendo mais que o vínculo necessário para manter unidos os interesses particulares, que, do contrário, se dissolveriam no antigo estado de insociabilidade; todas as penas que ultrapassem a necessidade de conservar esse vínculo são injustas por sua própria natureza. (Id. Ibid. p. 43)
No que se refere à cominação das penas referentes aos delitos, Beccaria é bem incisivo em afirmar que a formulação destas é de função exclusiva dos legisladores e não dos magistrados ou aplicadores do direito. Da mesma forma, afirma que também não cabe aos aplicadores das leis à função de interpretá-las, sendo estas também da alçada dos primeiros, coadunando assim o exegetismo jurídico até então em vigor na época. Assim, acreditva-se que, sendo os magistrados intérpretes das leis, “o espírito da lei seria, portanto, o resultado da boa ou má lógica de um juiz” (Id. Ibid. p. 46).
Feita esta distinção, o autor atribui aos aplicadores do direito apenas esta função, isto é, a de aplicá-lo e para isto, devem estar despidos de parcialidade:
Em cada delito, o juiz deve formular um silogismo perfeito: a premissa maior deve ser a lei geral; a menor, a ação em conformidade ou não com a lei: a consequência, a liberdade ou a pena. Quando o juiz for coagido, ou quiser formular mesmo que só dois silogismos, estará aberta a porta à incerteza. (Id. Ibid. p. 46)
O autor não deixa de tecer suas críticas também o que ele chama de “obscuridade das leis”, oriundas de um alto grau de racionalização e elitização da linguagem, o que hes dificulta a compreensão. Beccaria acredita que essa atitude mantém a grande maioria que desconhece as leis, a mercê daqueles que as dominam numa relação de dependência. Acredita também que essa falta de compreensão dos códigos que regem suas vidas, propicia ocorrência de mais delitos, pois assim os indivíduos não terão consciência de até aonde vão suas liberdades. Afirma:
Se a interpretação das leis é um mal, é evidente que outro mal é a obscuridade que essa interpretação acarreta; e ele será ainda maior se as leis forem escritas numa língua estranha ao povo e que o submeta a dependência de uns poucos, sem que possa julgar por si mesmo qual seria o êxito de sua liberdade, ou de seus semelhantes, a não ser que uma língua fizesse de um livro solene e público um outro quase privado e doméstico. (Beccaria, 2005. p. 48)
No que tange a relação entre os delitos e as penas, o jurista ainda sugere que deve existir uma proporcionalidade entre eles. Dessa forma, se mostra dotado de uma visão extremamente pertinente. Para ele, o que deve ser mais desejável numa sociedade é que não se cometam delitos, e caso haja, devem ser raros e de menos potencial ofensivo.
Todavia, conflitos de interesses crescem na medida em que a sociedade também se expande. Surge assim a necessidade de estabelecer uma escala de desordens que enquadra os delitos de tal forma que vai desde os de maior potencial ofensivo aos de menor, “cujo primeiro grau consiste naquelas que destroem imediatamente a sociedade, e o último, na mínima injustiça feita a um de seus membros privados.” (Id. Ibid. p. 51). Contudo, não se pode aplicar a mesma pena de um delito de maior potencial ofensivo a um delito menor, pois isso pode gerar, segundo o autor, mais transgressões à lei: “Se uma pena igual é destinada a dois delitos que ofendem desigualmente a sociedade, os homens não encontrarão um obstáculo forte o suficiente para não cometer um delito maior, se dele resultar uma vantagem maior”. (Id. Ibid. p. 51)
Em meio a sua divisão dos delitos, considera os de primeiro grau como os mais perigosos à desintegração social, sobretudo os que são direcionados contra a segurança e a liberdade dos indivíduos, que segundo ele, podem também advir da má atuação dos magistrados com seus julgamentos dúbios, destruindo assim o ideal de justiça:
Os atentados contra a segurança e a liberdade dos cidadãos constituem, pois, um dos maiores delitos, e nessa classe se incluem não apenas os assassínios e os furtos praticados por plebeus, mas também os dos grandes e dos magistrados, cuja influência age a maior distância e com maior vigor, destruindo nos súditos as ideias de justiça e de dever, substituindo-as pela do direito do mais forte, igualmente perigoso para quem o exerce e para quem o sofre. (Id. Ibid. p. 56)
Quanto a real finalidade das penas, Beccaria clarifica que, certamente não são infligir sofrimento a um indivíduo, através de castigos ao seu corpo, tampouco desfazer um delito que já ocorreu, visto que isso é impossível.
O fim, pois, é apenas impedir que o réu cause novos danos a seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o mesmo. É, pois, necessário escolher penas e modos de infligi-las, que, guardadas as proporções, causem a impressão mais eficaz e duradoura nos espíritos dos homens, e a menos penosa no corpo do réu. (Id. Ibid. 2005. p. 62)
Seguindo a mesma linha de raciocínio do autor, a professora Weiss, na atualidade, acredita que a pena se apresenta como forma de repressão ao cometimento de novos delitos, pois atua não só com o caráter pedagógico, mas, sobretudo objetivando a restituição do respeito pela lei e pelos ideais sociais compartilhados por todos.
Em suma, no que se refere à sua função, o sentido da pena é o de restituir o respeito pela lei, é lembrar aos indivíduos que aquele ideal no qual acreditavam continua valendo, que aquele sistema não foi ameaçado e que a regra continua a ter autoridade. [...] A pena é o que garante que os crimes não abalem a Constituição. Em contrapartida, quando as violações não são punidas, a regra – no caso do nosso exemplo, a própria Constituição – perde a sua credibilidade, implicando um enfraquecimento dos ideais sociais que ela expressa. (Weiss, 2013. p. 44)
Desta forma, percebe-se que a doutrinadora atribui uma função à pena, que é a de manter a coesão social e evitar que o contrato ou pacto social se perca. Aqui cabe uma comparação interessante com o pensamento de Durkheim, pois se pode dizer que ele também enxerga essa mesma função social na atribuição da pena:
A pena não serve, ou só serve de maneira muito secundária, para corrigir o culpado ou intimidar seus possíveis intimidadores; desse duplo ponto de vista, sua eficácia é justamente duvidosa e, em todo caso, medíocre. Sua verdadeira função é manter intacta a coesão social, mantendo toda a vitalidade da consciência comum. (Durkheim, 1999. p. 81)
Beccaria critica veementemente uma prática comum entre a maioria das nações, a tortura, sobretudo nos interrogatórios, como meio de se alcançar a culpabilidade ou não do indivíduo. Sobre essa prática, o autor expressa sua repulsa com muito vigor:
Uma crueldade que o uso consagrou na maioria das nações é a tortura do réu durante a instrução do processo, quer para força-lo a confessar um delito, quer por ele ter caído em contradição, quer ainda para descobrir os cúmplices, ou por quem sabe qual metafísica e incompreensível purgação da infâmia, quer, finalmente, por outros delitos de que poderia ser autor, mas dos quais não é acusado. (Beccaria, 2005. p. 69)
Considera importante que se encontre os culpados dos delitos, para que não fiquem eles impunes e isto enfraqueça o corpo de leis, gerando descrença por parte dos indivíduos, porém, nefasto fazer isso sob esses métodos. Salienta que métodos como esses podem acabar castigando homens inocentes, pois aqueles que transgridem as leis são em menor quantidade que aqueles que as respeitam:
Se é verdade que o número dos homens que, por temor ou por virtude, respeitam as leis é superior aos do que as infringem, o risco de se atormentar um inocente deve ser tanto mais avaliado quanto maior é a probabilidade que um homem, em condições iguais, mais as tenha respeitado que violado. (Id. Ibid. p. 70)
Ainda, quanto à tortura, ratifica que se esta for tanto mais aplicada quanto mais o sujeito cair em contradições, surgirão outras contradições ainda maiores, pois, se num homem em estado equilibrado de espírito, pode ocorrer de este se enganar, maiores são ainda as possibilidades de isso acontecer estando ele sobre penoso sofrimento. O mesmo caso ocorre quando o uso da tortura no interrogatório se dá para descobrir se o acusado cometeu outros delitos ou se é usada para que ele delate seus cúmplices. Em ambos os casos não há como garantir a veracidade das alegações em meio aos suplícios:
Assim, a impressão da dor pode chegar a tal ponto que, ocupando a sensibilidade inteira do torturado, ao lhe deixe outra liberdade senão a de escolher o caminho mais curto, momentaneamente, para se subtrair à pena. [...] Então, o inocente sensível se declarará culpado, quando achar que dessa forma porá fim ao tormento. [...] O interrogatório de um réu tem por fim conhecer a verdade, mas se essa verdade dificilmente se revela pela atitude, pelo gesto, pela fisionomia de um homem tranqüilo, muito menos ela aparecerá num homem em que as convulsões da dor altera todos aqueles sinais através dos quais a maioria dos homens deixa involuntariamente a verdade transparecer em seu rosto. Toda ação violenta confunde e suprime as mínimas diferenças entre os objetos por meio das quais se distingue o verdadeiro do falso. (Beccaria, 2005. pp. 72-73)
No que concerne à agilidade de aplicação da pena, Beccaria afirma que “quanto mais a pena for rápida e próxima do delito, tanto mais justa e útil ela será.” (Id. Ibid. p. 79). O que o autor quer dizer é que, até que se prove que o indivíduo é culpado, ele não precisa sofrer inutilmente, pois o cárcere por si só já é penoso o bastante, a menos que seja para impedir a fuga ou que as provas de culpabilidade sejam ocultadas. Acredita que deve haver uma proximidade das ideias de delito e pena, e isso é mais fácil conseguido com a celeridade dos processos:
Disse que a presteza é mais útil porque, quanto mais curto o tempo que decorre entre o delito e a pena, tanto mais estreita e durável no espírito humano é a associação dessas duas ideias, delito e pena, de tal modo que imperceptivelmente se consideram um como causa e a outra como efeito necessário e indefectível.[...] É, pois, de suma importância a proximidade do delito e da pena, se se quiser que nas mentes rudes e incultas o quadro sedutor de um delito vantajoso seja imediatamente seguido da idéia associada à pena. (Idem. p. 80)
Tendo visto que a crueldade e a desumanidade das penas não provocam a diminuição da ocorrência de delitos, Beccaria entende que o que reduz a ocorrência de tais transgressões, na verdade, é a certeza de que não existirão crimes que passarão impunes ou penas que serão aplicadas desproporcionalmente. Isso aumenta a credibilidade nas leis e em seus aplicadores:
Um dos maiores freios aos delitos não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade e, em consequência, a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável, a qual, para ser uma virtude útil, deve vir acompanhada de uma legislação suave. A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre a impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade. [...] Para que uma pena produza o seu efeito, basta que o mal que ela mesma inflige exceda o bem que nasce do delito e nesse excesso de mal deve ser levado em conta a infalibilidade da pena e a perda do bem que o delito devia produzir. Tudo mais é supérfluo e, portanto, tirânico. (Beccaria, 2005. pp. 92-93)
Quando tece suas considerações sobre a pena de morte, Beccaria demonstra ter a ideia de que esta mais parece ser fruto de uma ação desmedida e tirana do Estado contra o cidadão, visto que a cessão daquelas parcelas de liberdade não confere o direito de subtrair a vida, nem por parte de outro concidadão, em por parte do Estado. Apenas considera duas hipóteses em que aceita tal pena: no caso de o condenado manter relações que possam ameaçar a segurança nacional ou a sua simples existência possa ameaçar a ordem de governo instaurada. Complementa que “a não ser que sua morte fosse o único e verdadeiro freio capaz de impedir que os outros cometessem delitos, segundo motivo que tornaria justa e necessária a pena de morte.” (Id. Ibid. p. 95)
Ainda explica que considera justa a pena que possui intensidade compatível com os delitos e que seja o suficiente para inibir os indivíduos à prática de novos delitos e, além disso, deixa clara sua preferência pela prisão perpétua em regime de escravidão no lugar da pena de morte, como o melhor e mais eficaz meio de atingir esse fim. Portanto, é evidente para ele que, qualquer pena atribuída a um delito que ultrapasse a intensidade necessária a atingir o resultado já mencionado, é fruto de tirania, logo, injusta:
Para que uma pena seja justa, só deve ter aqueles graus de intensidade que bastem para dissuadir os homens dos delitos; ora, não há ninguém que, refletindo a respeito, possa escolher a perda total e perpétua da liberdade, por mais vantajoso que um delito possa ser; assim, a intensidade da pena de escravidão perpétua, substituindo a pena de morte, contém o que basta para dissuadir o espírito mais determinado. [...] Parece-me absurdo que as leis, que são a expressão da vontade pública, que abominam e punem o homicídio, o cometam elas mesmas e que, para dissuadir o cidadão do assassínio, ordenem um assassínio público. (Id. Ibid. 2005. pp. 97-100)
No que concerne às penas privativas de liberdade, a prisão propriamente dita, evidencia sua recusa em aceitá-la. Primeiro porque, no sistema de sua época, o aplicador das leis, os juízes, detinham todo poder de arbítrio em suas decisões sentenciais e, utilizando de sua parcialidade, às vezes poderia enviar à escuridão das prisões um desafeto qualquer por um motivo fútil ou livrar um amigo que pudesse ter indícios verídicos e contundentes de culpa em algum delito. “Costumam os réus de delitos menos graves ser punidos na escuridão de uma prisão, ou ser enviados para dar exemplo as nações que não ofenderam, submetidos a uma escravidão longínqua, portanto, quase inútil. (Id. Ibid. p. 105)
Corrobora que à medida que as sociedades alcancem um bom grau de esclarecimento, humanidade e compaixão, bem como um equilíbrio proporcional entre os delitos cometidos e as penas a eles atribuídas, principalmente nos sistemas carcerários, haverá uma tendência gradativa de rejeição a este tipo de pena:
À medida que as penas foram moderadas, que a desolação e a fome eliminada dos cárceres, quando, enfim, a compaixão e a humanidade penetrarem as portas de ferro e prevalecerem sobre os ministros da justiça inexoráveis e empedernidos, as leis poderão contentar-se com indícios cada vez mais fracos para a prisão. (Beccaria, 2005 p. 103)
Beccaria profere comentários e críticas muito pertinentes ao instituto da recompensa, também comum em sua época. Ele acredita, indubitavelmente, que este tipo de atitude por parte do Estado, estimula ainda mais violência, transgressão e injustiça, pois, ao colocar a cabeça de um culpado a prêmio, incita os cidadãos ao homicídio, ao mesmo tempo em que os punem:
Outra questão diz respeito à utilidade ou não de se colocar a prêmio a cabeça de um homem, notoriamente culpado, armar o braço de cada cidadão e fazer dele um carrasco. Ou o réu está além-fronteiras, ou dentro delas. No primeiro caso, o soberano estimula os cidadãos a cometerem um delito e os expõe ao castigo, praticando assim uma injustiça e uma usurpação de autoridade nos domínios alheios; autoriza, assim, as outras nações a agir da mesma forma. No segundo, ele dá mostras da sua própria fraqueza. (Id. Ibid. 2005. p. 122)
Por fim, Beccaria encerra sua obra concluindo que “É melhor prevenir os delitos do que puni-los”. (Id. Ibid. p. 130). Assim, sugere algumas medidas a serem tomadas quanto à prevenção de práticas delituosas. A primeira consiste na necessidade de leis claras e justas para todos os homens sem distinção, para que, assim eles possam conhecê-las, amá-las e defendê-las, sobretudo:
Quereis prevenir os delitos? Fazei com que as leis sejam claras, simples e que toda a força da nação se concentre em defendê-las e nenhuma parte dela seja empregada para destruí-las. Fazei com que as leis favoreçam menos as classes dos homens do que os próprios homens. Fazei com que os homens as temam, e temam só a elas. O temor das leis é salutar, mas o temor de homem a homem é fatal e fecundo em delitos. (Id. Ibid. p. 131)
A segunda se refere à necessidade de que os avanços do conhecimento humano, produzidos pelo avanço das ciências, também gerem repercussão no tange ao esclarecimento dos indivíduos, pois uma sociedade bem esclarecida, na visão de Beccaria, está menos propensa a cometer delitos.
A terceira medida que sugere é a expansão do próprio poder judiciário, compostas de magistrados pautados não na pura subjetividade, mas, sobretudo na observância das leis, não havendo espaço para o arbítrio, cabendo a eles somente aplicá-las. Além disso, afirma que num meio permeado por muitos, os quais estão observando continuamente as ações uns dos outros, se torna dificultosa a prática da corrupção.
A quarta atitude a ser tomada deve ser aquele em que o Estado deve premiar as ações dos indivíduos que estejam marcadas pela virtude. Assim, segundo ele, mais ações como estas podem ser estimuladas. Acredita que, da mesma forma que a premiação dos grandes cientistas, filósofos e outros descobridores dos conhecimentos mais úteis, estimulou outros a desenvolverem pesquisas para a obtenção desses prêmios, também a premiação de virtudes, estimulará a adoção de mais atitudes virtuosas.
Por fim, considerada por nós a mais importante, bem como pelo próprio autor ao conceituá-la como o meio mais seguro, a melhora dos sistemas educacionais é o melhor meio para se constituir uma sociedade em que os delitos sejam raros. Contudo, por serem ações ligadas aos governos, essa medida torna-se, segundo Beccaria, difícil de ser concretizada, pois depende do bom senso de seus governantes.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final deste estudo, pode-se inferir que Cesare Beccaria, em sua obra, traz à luz do campo jurídico do mundo moderno, especialmente na esfera do direito penal, os parâmetros de uma nova concepção jurídica.
Por meio de suas análises do sistema penal vigente em sua época e observando os ideais filosóficos também circulantes, os quais tinham: à igualdade, à liberdade e à fraternidade como bem a ser alcançados, concluiu que não mais fazia sentido a adoção de todas aquelas arbitrariedades nas aplicações das penas, que muitas das vezes eram cruéis, desumanas e desproporcionais.
Defende, com todas as suas forças, a introdução de um caráter humanitário e pragmático para as penas, principalmente garantindo que elas não violem a dignidade do indivíduo, uma vez que o pacto social estabelecido deve mantê-la intacta. Dessa forma, pode-se se dizer que Beccaria retoma antigos ideais de valorização do homem e de seu bem-estar, amplamente evidenciados na Antiguidade e que se perderam no decurso de toda Idade Média.
Por fim, Beccaria não só tece críticas a esse sistema como também sugere algumas medidas a serem tomadas para que se alcance a prevenção dos delitos, o que é mais desejável do que a punição. Esclarece que: as leis precisam ser claras e justas para todos os homens, sem distinção; o conhecimento humano deve promover a evolução do pensamento da sociedade; o judiciário precisa ser estendido para coibir a corrupção e não pode estar sujeito a parcialidade dos magistrados; devem-se premiar ações virtuosas para que se estimulem outras tantas mais; e, por fim, esclarece que o desenvolvimento da educação é o melhor e o meio mais seguro para se alcançar uma sociedade justa, onde os delitos sejam raros, inexistentes ou de menor potencial ofensivo possível.
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. 3ª edição. Tradução de Lúcia Guidicini, Alessandro Berti Contessa; revisão de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Clássicos).
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2ª edição. Tradução de Eduardo Brandão; revisão da tradução de Carlos Eduardo Silveira Matos. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos).
LENZA, Pedro (Coord.). Direito penal esquematizado: parte geral/ André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves. São Paulo: Saraiva, 2012.
WEISS, Raquel. Sociologia e direito na teoria durkheimiana. In: SILVA, Felipe Gonçalves; RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). Manual de sociologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013.
Graduado com Licenciatura Plena em Ciências Naturais pela UNIVERSIDADE TIRADENTES - UNIT (2009). ATUALMENTE: Graduando do bacharelado em Direito pela UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE - UFS; Oficial Administrativo da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe - SEED/SE; Atua como Articulista Voluntário do Portal CONTEÚDO JURÍDICO (http://www.conteudojuridico.com.br), onde contribui com a publicação de artigos científicos; Atua como Articulista Voluntário do Portal WEBARTIGOS.com (http://www.webartigos.com), contribuindo aqui com artigos diversos; É idealizador do BLOG JURÍDICO: www.dissertandosobredireito.wordpress.com, onde escreve crônicas jurídicas e artigos de opinião. Atua também como editor e revisor, no próprio blog, uma vez que recebe contribuições externas de outros autores. http://lattes.cnpq.br/6328264229593421
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Luiz Tiago Vieira. O ideário de Beccaria e sua contribuição para o direito penal moderno Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 mar 2015, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43569/o-ideario-de-beccaria-e-sua-contribuicao-para-o-direito-penal-moderno. Acesso em: 23 dez 2024.
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