Resumo: O consumidor nem sempre é o lado vulnerável da relação de consumo, como previa o Código de Defesa do Consumidor - CDC. O presente trabalho de revisão bibliográfica avalia o efeito que a litigância de má-fé por parte de consumidores traz ao dia-a-dia da operacionalização do CDC, sua influência na atuação de juízes e advogados. A aplicação distorcida do CDC pelo consumidor, com vistas a vantagens pessoais, como o enriquecimento ilícito, tem fragilizado a prerrogativa de vulnerabilidade que lhe confere o código. A jurisprudência, frente à litigância de má-fé, provê proteção ao fornecedor, que nesses casos passa a ser o lado vulnerável. Advogados questionam garantias previstas no CDC, como a inversão do ônus da prova: o cliente nem sempre tem razão.
Palavras-chave: Consumidor. Boa-fé. Jurisprudência. Vulnerabilidade.
O Código de Defesa do Consumidor pretende defender o consumidor como o lado vulnerável da relação de consumo, porém vemos muitas vezes um comportamento de má-fé por parte de consumidores, que, cientes e bem fundamentados no que seria seu direito, especulam oportunidades de enriquecimento ilícito ou de vantagem indevida, a partir de equívocos cometidos por fornecedores durante oferta e publicidade de seus produtos, e através de ações de má-fé, baseadas na distorção da verdade ou na manipulação do direito, entre outras.
Neste trabalho, não há intenção de tomar partido do fornecedor ou duvidar da importância da criação do CDC. O código é um marco no direito brasileiro, representa a garantia de direito fundamental, atende a princípios e determinações constitucionais, fortaleceu o consumidor na relação de consumo. O enfoque aqui é sobre o consumidor, basicamente aquele que desvirtua a operacionalização do código, negligencia a boa-fé, tão necessária ao rito jurídico. Lembremos que um dos princípios do CDC é a:
Harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores (art. 4º, Par. 3º, CDC)
O acesso à justiça para reclamar direitos de consumidor é muito comum atualmente. A maioria de nós, principalmente no contexto de grandes cidades, se não buscou por esses direitos, ao menos conhece alguém que o fez. Essa facilidade de acesso, na maioria das vezes com resolução rápida da causa, com prerrogativa de mérito para o consumidor, tem favorecido o mau uso desse recurso jurídico. É comum conhecer pessoas, que, abdicando da resolução consensual de conflito com um fornecedor, já escolhem a esfera judicial como alternativa, visando à vantagem financeira alcançada com possível sentença favorável. Os casos são muitos, inclusive os mais articulados, como é o do consumidor que, de caso pensado, se submete a contratos abusivos, para depois questioná-los na justiça, retardando e diminuindo o pagamento de parcelas.
O presente estudo foi elaborado a partir da revisão da literatura disponível em artigos de sites científicos. Dentre os autores consultados, temos juiz e advogados que abordam princípios do Direito do Consumidor.
A boa-fé é regra de conduta a ser seguida por consumidores e fornecedores na relação de consumo, refletindo atitudes moldadas pela lealdade e por interesses legítimos.
A vulnerabilidade e a inversão do ônus da prova em favor do consumidor são princípios questionados por operadores do direito, que no dia-a-dia se vêm confrontados pela litigância de má-fé por parte do consumidor.
O que se pretende constatar no desenvolvimento desse estudo é a fragilidade do CDC diante da litigância de má-fé por parte do consumidor.
Desenvolvimento
As diversas transformações pelas quais passou a sociedade nas últimas décadas, alcançadas pelo progresso sócio-econômico-cultural e tecnológico, motivou uma renovação no direito, na busca por atender às necessidades de defesa do indivíduo e da coletividade frente às questões trazidas por essa revolução. Parte dessa renovação se deu na preocupação em possibilitar acesso à justiça, ao direito. O CDC (Código de Defesa do Consumidor) é exemplar nesse sentido, uma vez que facilita o acesso do consumidor à justiça, reconhecendo sua vulnerabilidade e definindo regras que o protegem na relação de consumo. A Constituição Federal já havia determinado no art. 5º, XXXII: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor, concedendo à defesa do consumidor mérito de direito fundamental” (CARVALHO, 2013).
Ao consumidor, cercado por uma multiplicidade de produtos e serviços, com suas pormenorizadas especificações, por vezes nocivos a sua saúde; inserido em relações de consumo que extrapolaram a negociação pessoal com um vendedor, numa loja qualquer em sua cidade, para alcançar o telemarketing, as redes virtuais, o mundo globalizado; exposto ao bombardeio diário de publicidade e propostas comerciais; perdido nas linhas e entrelinhas dos mais intrincados contratos, o CDC garantiu a hipossuficiência nas relações de consumo. A proteção do direito do consumidor baseia-se na vulnerabilidade do mesmo em contraposição ao fornecedor, detentor do conhecimento e dos meios para produção dos bens de consumo e, na maioria das vezes, detentor de maior capacidade econômica.
O CDC, no atendimento desse quesito, garante ao consumidor assistência jurídica, dispensando-o da necessidade de constituir defensor, bem como a inversão do ônus da prova em seu favor, facilitando a sua defesa no processo. Dessa forma, o consumidor pode procurar diretamente os órgãos de justiça quando se sentir lesado em seu direito e, além disso, não precisará provar, por exemplo, que o dano ocorrido em seu aparelho doméstico deveu-se à peça x ou ao encaixe y. Basta ao consumidor relatar o caso. Se o dano não advém da fabricação, como no caso de mau uso do produto, caberá ao fornecedor comprovar.
É momento de lembrar que para que tudo isso funcione é necessário que consumidores e fornecedores atuem seguindo o princípio da boa-fé. Neto (2002), comentando o novo código civil, destaca seu caráter civil-constitucional, sobretudo a função social do contrato, a boa-fé objetiva e a solidariedade contratual, os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da livre iniciativa. Interessa-nos muito a definição de boa-fé objetiva:
Já a boa-fé objetiva, também denominada boa-fé lealdade, significa o dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura e honestidade. Trata-se de uma regra de conduta, a ser seguida pelo contratante, pautada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses legítimos e expectativas razoáveis do outro contratante, visto como um membro do conjunto social (NETO, 2002).
É justamente no CDC que o princípio da boa-fé objetiva aparece pela primeira vez. O código define que as relações de consumo devem se basear na transparência, na harmonia de interesses dos participantes dessa relação, na necessidade de compatibilizar a proteção do consumidor com o desenvolvimento econômico e tecnológico, sempre com base na boa-fé e no equilíbrio na relação entre consumidores e fornecedores (NETO, 2002).
Importante frisar também que o CDC não é um código estanque. Em seu próprio texto há a determinação de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil e da Lei de Ação Civil Pública. Na operacionalização do código, nos casos julgados a cada dia, é que seus princípios são fortalecidos ou questionados. A vulnerabilidade do consumidor e a inversão do ônus da prova poderão ser relativizadas pelo Juiz, caso suspeite que o consumidor esteja agindo em litigância de má-fé. Se o código defende o equilíbrio da relação entre consumidor e fornecedor, a prática jurídica, em dados momentos, deverá proteger o fornecedor da provocação do consumidor.
Hoffman (2009) questiona a pretensa ingenuidade do consumidor ao alertar sobre as armadilhas do CDC:
Na área do direito material, viu-se com espanto o exagero de se prenderem pequenos lojistas imprudentes e desinformados, por não venderem seus produtos de forma especificada e detalhada, como exige a Lei 8.078/90, dando-lhe elastério impróprio e leviano, pois não se pode, sob o manto de proteger o consumidor, partir-se para a barbárie e para uma “caça às bruxas”. Não se deve, outrossim, entender o consumidor como sempre indefeso, ingênuo e coberto de razão.
Inúmeros são os exemplos de ações, nada indefesas, movidas por consumidores que, se valendo de interpretação deturpada, tendenciosa, oprimem fornecedores a disponibilizar produtos a preços irrisórios. Em Suzano, interior do Estado de São Paulo, uma faixa promocional afixada na entrada da agência de veículos, com os dizeres: “Deu a louca no gerente. Veículos a preço de banana”, motivou um consumidor a exigir que o veículo lhe fosse vendido pelo valor de um centavo. A questão tornou-se ação judicial, na qual o Juiz condenou o consumidor por litigância de má-fé. O Juiz alegou em sua decisão que “qualquer pessoa dotada de médio discernimento poderia chegar à compreensão inarredável de que a propaganda era simbólica”.
As próprias agências de proteção e defesa do consumidor, a fim de evitar procura indevida por seus serviços, buscam orientá-lo quanto aos direitos que acha que tem, mas não tem: a compra de produto por preço irrisório; a troca de presentes, por motivo que não seja defeito, que não é um direito, mas sim cortesia do fornecedor; a compra de produtos de fornecedor pessoa física não dá direito a reclamações utilizando o CDC; os fornecedores não são obrigados por lei a disponibilizar formas de pagamento alternativas ao dinheiro.
O objetivo desse trabalho é ressaltar o comportamento de parcela de consumidores que, num passo adiante ao da busca de um direito não legítimo, na maioria das vezes por desconhecimento, caminham no sentido de lesar fornecedores, forçando-os, via Juízo, a conceder-lhes benefícios indevidos, à custa de litigância de má-fé. Consumidores nada vulneráveis, que demonstram grande habilidade na manipulação do regramento do CDC. Exemplo disso temos em consumidores, às vezes organizados em grupos, que, em ação premeditada, assinam contratos de financiamento, para depois, questionando suas cláusulas na Justiça, conseguirem o bloqueio do pagamento, causando prejuízo ao fornecedor.
Diante disso, passou a ser prática corrente de Juízes que operam o CDC, o combate ao enriquecimento ilícito, visto que muitos consumidores veem na operacionalização do código uma oportunidade de apurar vantagem financeira. Podemos tomar como exemplo a multiplicidade de julgamentos negando indenizações em ações por danos morais a consumidores inadimplentes que alegam não terem sido notificados da inclusão de seus dados em cadastros de proteção ao crédito. Os juízes entendem que atender a este tipo de pleito equivale a premiar a inadimplência. A atual jurisprudência tem orientado que na ausência de notificação ao consumidor, a decisão judicial estabeleça, no máximo, que o cadastro em agência de proteção ao crédito seja excluído, até que a notificação seja feita. É importante frisar que a notificação prévia do consumidor é exigência do CDC, mas os juízes perceberam na prática dos consumidores um uso deturpado dessa prerrogativa.
Hoffman (2009) ressalta a importância da doutrina e da jurisprudência em dar significado ao direito. Num primeiro momento, os doutrinadores vão buscar aclarar o texto da lei, interpretá-la, na intenção de antecipar aos operadores do direito o que seria a sua aplicação. É o momento das polêmicas, do conflito de entendimento entre doutrinadores, que traçam teses distintas, diferentes caminhos para a aplicação da lei. Já a jurisprudência surge da realidade dos fatos, da aplicação da lei ao caso concreto, estabelecendo assim balizamento e orientação para os operadores do direito em futuros pleitos. É o momento da pacificação do direito, pois à medida que as decisões judiciais tomam uma mesma direção, as teses conflitantes são abandonadas e as jurisprudências passam a guiar novas decisões judiciais, e também orientam os advogados em seus pleitos, evitando-se o encaminhamento ao Judiciário de causas para as quais já existe previsão de decisão contrária.
A interpretação mal intencionada que parcela dos consumidores fazem do CDC, coloca em suspense não só a previsão de vulnerabilidade que lhe confere o código, mas também a garantia da inversão do ônus da prova, que passa a ser alvo de questionamento por parte dos operadores de direito.
Completamente equivocada a determinação do juiz que inverte o ônus da prova já ao receber a petição inicial, em cognição sumária, somente tendo por base a verossimilhança das alegações do autor ou a sua hipossuficiência, sem ouvir o fornecedor em contraditório, tratando-se de medida injustificável, de verdadeira distorção do espírito da lei. Acrescemos, todavia, que não se pode confundir inversão do ônus da prova com pedido de antecipação de tutela (HOFFMAN, 2009, págs. 13-14).
É prejudicial ao processo jurídico inverter o ônus da prova a favor do consumidor logo no recebimento da petição inicial, pois implica em pensar que o consumidor tem sempre razão. O momento mais adequado para a inversão, sendo o caso, é após a juntada da defesa do fornecedor, garantindo assim a isonomia e a ampla defesa a ambas as partes (HOFFMAN, 2009).
Conclusão
O Código de Defesa do Consumidor, tão aclamado como garantia de direito fundamental do cidadão, surgiu da necessidade de protegê-lo na relação de consumo, entendendo o consumidor como parte mais vulnerável nessa relação com o fornecedor, detentor dos meios e do conhecimento para produção e, em regra, detentor de melhor condição econômica. A inversão do ônus da prova é uma das garantias constantes do CDC, pela qual cabe ao fornecedor aparelhar de provas o processo, enquanto ao consumidor, apenas relatar o fato, a queixa.
Na prática, a operacionalização do CDC tem exigido dos Juízes o cuidado de identificar, em cada caso, se o consumidor é verdadeiramente vulnerável, ou se não se encontra em litigância de má-fé. A rotina processual tem encontrado consumidores nada vulneráveis, que operam o CDC de forma distorcida, objetivando o enriquecimento ilícito à custa do prejuízo dos fornecedores.
Amparado por outros estatutos, como o Código de Processo Civil, e na busca pelo necessário equilíbrio na relação de consumo, o judiciário se vê forçado a formar jurisprudência em situações em que se detecta má-fé do consumidor, tendo nesses casos que assumir a proteção do fornecedor. De outro lado, advogados combatem a aplicação do dispositivo de inversão do ônus da prova, entendendo que ferindo os princípios de isonomia e ampla defesa, coloca o fornecedor em condição mais vulnerável. Não interessa aqui a proporção dos casos em que isso acontece, mas apenas o que sinalizam.
Juízes e advogados, no dia-a-dia da operacionalização do CDC, não alcançarão o resultado justo se cegamente considerarem o consumidor como parte vulnerável e o fornecedor como vilão. Há uma tendência a desmistificar essa relação, no sentido em que o consumidor compareça ao processo como parte, como é regular em causas de outras esferas da justiça. Assim, o rito processual, conduzido à luz do CDC, cada vez mais atravessado por outros códigos e por jurisprudências, vai se despindo de seu caráter original, focado na relação vítima/vilão, para alcançar a maturidade e o equilíbrio da relação parte/parte.
Referências:
CARVALHO, Michele Maria Machado de. A inversão do ônus da prova no direito do consumidor. Disponível em: < http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/24748-24750-1-PB.pdf> Acesso em: 07 de fevereiro de 2015.
HOFFMAN, Paulo. Inversão do ônus da prova prevista no Código de Defesa do Consumidor – Critério de Julgamento (sob a ótica do juiz) e critério de procedimento (para o fornecedor). Disponível em: < http://hoffmanadvogados.com.br/adm/upload/0085001001383836437.pdf> Acesso em: 07 de fevereiro de 2015.
NETO, João Hora. O princípio da boa-fé objetiva no Código Civil de 2002. Disponível em: < http://www.diario.tjse.jus.br/revistaesmese/revistas/2.pdf#page=229> Acesso em: 07 de fevereiro de 2015.
Servidor do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Ordem Econômica e Tributária - Ministério Público de Minas Gerais. Bacharel em Psicologia pela UFMG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MUNIZ, Charles Martins. Abuso do direito pelo consumidor. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 mar 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43581/abuso-do-direito-pelo-consumidor. Acesso em: 23 dez 2024.
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