Resumo: Estado e contribuinte negligenciam princípios constitucionais na criação e operacionalização das leis tributárias. O presente trabalho de revisão bibliográfica apresenta o posicionamento de alguns autores, incluindo-se auditores fiscais, em torno dos princípios de legalidade, igualdade e capacidade contributiva, aplicados à questão tributária. Leis tributárias publicadas após a promulgação da Constituição Federal aumentaram a carga tributária sobre os mais pobres e a classe média, e aliviaram a carga de empresários e investidores internacionais, contrariando os princípios da igualdade e da capacidade contributiva. Constantes alterações na legislação criam lacunas que favorecem a elisão fiscal por parte do contribuinte e fragilizam o trabalho dos auditores fiscais.
Palavras-chave: Tributo. Princípio. Negligência. Elisão. Simulação.
Introdução
A questão tributária no Brasil tem sido fonte de grande polêmica e insatisfação. Reclamam os contribuintes em função da elevada carga tributária, ao mesmo tempo em que o Estado reclama não conseguir, a partir do imposto arrecadado, cumprir a obrigação de oferecer bons serviços à sociedade. Na visão das empresas, a legislação tributária, sendo alvo de constantes mudanças, é de difícil operacionalização. Fator que também angustia os auditores fiscais, que reclamam das restrições causadas à fiscalização pelas deficiências da legislação.
Os mais velhos ensinam que se nos sentimos sem direção, é sábio voltar ao ponto de partida e começar de novo. O objetivo do presente trabalho é identificar possíveis deficiências da legislação tributária a partir do princípio: os princípios constitucionais. A Constituição Federal fornece as diretrizes básicas para a elaboração e aplicação das demais leis. Pretende-se aqui confrontar a questão tributária e os princípios constitucionais, avaliando se, no momento tributário em que vivemos, ela corresponde ao que foi planejado pelo constituinte.
As manifestações populares deflagradas em todo o Brasil no período da Copa das Confederações em 2013, justamente pela multiplicidade das causas evidenciadas em faixas e cartazes, com protestos do tipo: “a solução para o Brasil é desmanchar tudo e fazer de novo”, demonstrou a insatisfação da população com o caminho que estamos trilhando como nação. Essa sensação de que há algo errado em nosso país, em nós, vem me acompanhando e esteve intensificada neste breve tempo de estudo, o que me impulsionou aos princípios constitucionais, enquanto norteadores do Direito Tributário.
O Direito Tributário reflete, como não poderia deixar de ser, os valores sociais vigentes, não só naquilo que têm de harmônico, como também de conflituoso. Os princípios constitucionais tributários, não obstante seu caráter normativo, conservam sua índole política, refletindo as tensões e o equilíbrio possível entre os ideais de liberdade de iniciativa e intervencionismo estatal, entre as garantias individuais e a justiça social, entre a segurança jurídica e as transformações da sociedade. (PRATES, 1992, pg. 36)
O princípio da legalidade diz da necessidade de clareza no texto das leis, que devem procurar prever com máximo esforço as situações encontradas no dia-a-dia da sua aplicação. O presente estudo propõe confrontar a legislação tributária a esse principio.
Outros dois princípios constitucionais importantes para a questão tributária são o da igualdade e o da capacidade contributiva, critério básico para a definição de alíquotas na elaboração das leis tributárias.
Não somente a legislação tributária, mas também a aplicação que dela fazem contribuintes e fiscais é confrontada aos princípios constitucionais, com enfoque no mecanismo de elisão fiscal, utilizado pelo contribuinte para redução de imposto a pagar. Elisão, também chamada de evasão lícita, que auditores fiscais se veem restritos em combater, devido à carência de legislação específica.
O presente estudo foi elaborado a partir da revisão da literatura disponível em livros e artigos de sites científicos. Dentre os autores consultados, temos professores e advogado atuante no Direito Tributário, bem como auditores fiscais, garantindo enfoques diferenciados ao tema aqui tratado.
Se o distanciamento dos princípios constitucionais é fator causal da atual crise do sistema tributário é o que se pretende constatar nas próximas linhas.
Desenvolvimento
Conforme definição do Código Tributário Nacional, “tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. A função do tributo é primordialmente gerar recursos financeiros para o Estado, a fim de que este cuide do interesse público. O Estado é o titular do poder de tributar, e, sendo Estado de Direito, deve respeitar os regramentos jurídicos que o limitam em sua atuação. No passado, a relação tributária entre o governante e o indivíduo era uma relação baseada apenas no poder, portanto exclusivamente dependente do titular do poder. Com a chegada da Idade Moderna e, com ela, o Constitucionalismo e o Direito Público, a relação ganhou caráter jurídico.
No Estado Democrático de Direito, tanto a instituição do tributo quanto o poder de tributar são regidos por legislação (MACHADO, 2012). Prates (1992), tratando da interpretação tributária, nos ensina que a Constituição assegura a unidade do ordenamento jurídico através da adoção de uma pauta de valores que passa a constituir a base das normas jurídicas. Nesse aspecto, Machado (2012) nos aponta uma primeira negligência aos princípios:
Ocorre que na relação tributária o Estado muitas vezes viola a norma, fazendo prevalecer seu poder. Já na instrução do tributo, o Estado muitas vezes legisla em desobediência às normas da Constituição. E na aplicação da lei tributária também viola as regras, lançando e cobrando tributos indevidos. E, finalmente, na apreciação dos conflitos gerados pela resistência eventualmente oposta pelo contribuinte, também o Estado, por seu Poder Judiciário, muitas vezes viola o Direito. É importante registramos o equívoco consubstanciado na invocação do interesse público. Este é inegável, e constitui a causa primária do tributo; entretanto, uma vez disciplinada em lei a relação tributária, o interesse público mais relevante reside precisamente no cumprimento da lei. (MACHADO, 2012, pg. 34).
Pelo princípio da legalidade, distanciando-se do entendimento que se tem no Direito Privado, de que é possível fazer tudo o que a lei não proíba, a operacionalização do Direito Tributário irá se pautar pelo entendimento do Direito Público, no qual, somente se pode fazer o que a lei ordena. Nesse sentido, as leis tributárias devem revestir-se de todos os elementos necessários para sua operacionalização, não podendo valer-se de conceitos abstratos ou indeterminados, analogias, ressaltando assim a necessidade de clareza ao texto das leis, não havendo espaço para discricionariedades (PRATES, 1992).
O princípio da igualdade proíbe a distinção entre iguais. Colocando-se em questão a justiça social, esse princípio implicará em não se tratar igualmente os economicamente desiguais. Assim, a tributação deve corresponder à capacidade contributiva do cidadão (PRATES, 1992).
Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte (art. 145, Par. 1º, CF).
Prates (1992) alerta para que não se hipervalorize o princípio da igualdade, A intenção de cuidar do princípio da igualdade não deve ferir o princípio da legalidade, que implica em previsão legal para atuação do aplicador da lei. A capacidade contributiva deve ser anteriormente definida em lei, de forma que o aplicador da lei não se guie por analogias e discricionariedades.
Ao Estado é vetado “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos” (art. 150, II, CF).
O SINDIFISCO (Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), em publicação na qual expõe suas reflexões sobre os temas tributários, enfatiza que “um país que tenha como objetivo a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, deve utilizar o sistema tributário como instrumento de redistribuição de riqueza”.
O SINDIFISCO alerta para incoerência do sistema tributário nacional ao manter diferenciação de alíquotas entre as rendas advindas do salário, maiores, e aquelas advindas do rendimento do capital, menores, ferindo o princípio da igualdade e da capacidade contributiva. Os auditores fiscais denunciam que, contrariando o princípio de igualdade estabelecido pela Constituição Federal, alterações tributárias realizadas após a Promulgação da Carta Magna, agravam a carga tributária sobre o consumo, dessa forma atingindo prioritariamente as camadas mais pobres da população e a classe média, esta última sendo ainda responsável pela maior parcela de contribuição do Imposto de Renda. Enquanto isso, boa parcela de profissionais liberais e empresários utilizam-se de artifícios de elisão, para diminuir ou se isentar ao Imposto de Renda. Outras alterações na legislação cuidaram de reduzir a carga tributária de empresas, isentaram de imposto a remessa de capital ao exterior, beneficiando bancos e investidores estrangeiros. Outro fator de desigualdade elencado pelos auditores foi a não implementação do imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição Federal. Esse conjunto de fatores é responsável por uma tributação injusta, que fere os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, que sobrecarrega de impostos as classes baixa e média, enquanto favorece os mais ricos.
Retomando a questão do interesse público, a avaliação que o contribuinte faz do que seja um sistema tributário justo reside na qualidade dos serviços públicos oferecidos pelo Estado. Uma pesada carga tributária, acompanhada de um mau atendimento do interesse público, favorece a ocorrência da evasão fiscal (MACHADO, 2012).
Não é objetivo deste trabalho abordar o crime de evasão fiscal, já tão primariamente contrário às leis e aos princípios constitucionais. O objetivo aqui é tratar do certo que soa como errado, das leis propostas pelo Estado, que, como já exposto, contrariam os princípios constitucionais, e dos mecanismos de que se vale parcela de contribuintes para se esquivar da devida contribuição com o atendimento do interesse público. Vejamos então os conceitos de elisão fiscal e simulação.
A Elisão fiscal é o conjunto de atividades perfeitamente lícitas, através das quais o contribuinte alcança a diminuição, adiamento ou eliminação da carga tributária. Se o contribuinte pode escolher entre diversos caminhos tributários, mais ou menos onerosos, para satisfação do que exige a lei, seria exigir muito que ele escolha o caminho mais oneroso (DECOMAIN, 2008).
O planejamento tributário é atividade preventiva e de economia fiscal, sendo lícito que o contribuinte se valha das lacunas da lei para contribuir da forma menos onerosa possível. “Portanto, resta inquestionável que a economia tributária, se resultante da adoção de uma alternativa legal, menos gravosa, ou de lacuna da lei, denomina-se elisão fiscal”, é lícita. O Estado, pelas constantes alterações na legislação tributária, através da edição e reedição de medidas provisórias, produz uma sensação de instabilidade jurídica, além de produzir contradições entre as leis, criando essas lacunas (SOUZA, 2005).
Decomain (2008) distingue a elisão fiscal da simulação, explicando que a segunda se dá quando o contribuinte age no sentido de “dissimular o ato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”, dando uma roupagem diferente ao negócio realizado. O objetivo aqui é obter vantagem econômica, para isso incorrendo em falsidade ideológica, buscando iludir o fisco e burlar o recolhimento de imposto.
O SINDIFISCO exemplifica algumas práticas de simulação correntes nas empresas: sócios que declaram receber pequeno rendimento a título de pro labore, ficando assim posicionados em faixa de isenção de imposto de renda, enquanto, por outro lado declaram grande rendimento resultante da distribuição dos lucros da empresa, que por força de legislação, não são alcançados pelo imposto de renda; substituir o vínculo empregatício pelo de prestação de serviços, assim, o empregado, constituindo-se como pessoa jurídica, deixa de recolher imposto de renda, pela forma já explicada acima, e a empresa deixa de recolher a contribuição patronal para a Previdência Social.
O SINDIFISCO ressalta a dificuldade de se combater essas práticas, pela ausência de legislação específica, respeitando-se aí o princípio da legalidade. Os auditores fiscais defendem a regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, alterado pela lei complementar nº 104/01, que permitirá desconsiderar atos e negócios que visem ocultar a ocorrência do fato gerador e aplicar alíquotas corretas ao contribuinte:
“A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.
Essa alteração passou a ser muito discutida por operadores do Direito Tributário, sob a denominação de lei antielisão. Souza (2005) elenca alguns questionamentos que nos interessam aqui, como a denominação de lei antielisão, pois, entendendo-se a elisão como lícita, não há porque ser combatida. Sugere que melhor denominação seria a de lei antievasão. Quanto à elisão, esta se encontra nas lacunas da lei, conferindo ao operador a liberdade de ação, já que não houve por parte da legislação a definição de obrigações ou proibição de fazer. Outro fator apontado contra a referida alteração legal é o fato de atribuir aos auditores fiscais poderes discricionários, permitindo-lhes decidir por critérios próprios a respeito da regularidade das ações do contribuinte em situações não regulamentadas por lei.
Conclusão
Diante do exposto, percebe-se que a questão tributária encontra-se carente de profundas reformas, situação já tão alardeada na mídia. Entre outros tantos motivos para isso, salientamos aqueles vistos no presente estudo: tanto o Estado, quanto parcela dos contribuintes, lida com o tributo em negligência aos princípios constitucionais. O Estado, que por obrigação constitucional, observando o princípio da legalidade, deveria propor leis detalhadas, bem definidas e tipificadas, que orientassem da forma mais clara possível o agir do contribuinte e do fiscal. E, o contribuinte, que por vários mecanismos, mesmo os considerados lícitos, procura reduzir ou omitir a contribuição ao Estado, do qual faz parte, pelo qual precisa zelar, negligenciando os princípios da capacidade contributiva e da igualdade.
A elisão fiscal constitui negligência aos princípios, uma vez que mascara a capacidade contributiva do contribuinte. Soa confusa a fronteira entre a elisão fiscal, defendida por contribuintes, e a simulação, combatida por auditores fiscais. Por outro lado, a regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, alterado pela lei complementar nº 104/01, não atende ao princípio da legalidade, uma vez que confere poderes discricionários aos auditores fiscais.
A fronteira entre a elisão fiscal e a evasão fiscal é a lei. Necessária se faz a formulação de legislação tributária coesa, detalhada, que atenda aos princípios constitucionais da legalidade, igualdade e capacidade contributiva, que oriente de forma inequívoca os contribuintes, evitando a elisão fiscal, e que oriente de forma precisa a atuação de auditores fiscais.
Referências:
DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. 4.ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Constitucional Tributário. 1.ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2012.
MARIA, Elizabeth de Jesus (org.). LUCHIEZI JR, Álvaro (org.). Tributação no Brasil, em busca da Justiça Fiscal. 1.ed. Brasília: SDS, 2010.
PRATES, Renato Martins. Interpretação tributária e a questão da evasão fiscal. 1.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1992.
SOUZA, Marcus Vinícius Saavedra Guimarães de. Elisão e evasão fiscal. Disponível em: <http://marcus-saavedra.jusbrasil.com.br/artigos/111686325/elisao-e-evasao-fiscal.> Acesso em: 27 de janeiro de 2015.
Servidor do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Ordem Econômica e Tributária - Ministério Público de Minas Gerais. Bacharel em Psicologia pela UFMG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MUNIZ, Charles Martins. Direito Tributário - negligência a princípios constitucionais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 mar 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43582/direito-tributario-negligencia-a-principios-constitucionais. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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