Resumo: O presente trabalho tem, basicamente, por escopo apresentar uma explanação quanto à tendência dos Tribunais em aferir automaticamente a figura do dolo eventual no homicídio praticado no trânsito pela simples constatação de embriaguez pelo condutor, merecendo rechaço toda e qualquer atribuição automática, uma vez que se retrata incompatível com os contornos do atual Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Homicídio. Embriaguez. Trânsito. Dolo. Culpa.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2. A TENDÊNCIA DOS TRIBUNAIS EM AFERIR AUTOMATICAMENTE O DOLO EVENTUAL NO HOMICÍDIO PRATICADO NO TRÂNSITO PELA SIMPLES CONSTATAÇÃO DE EMBRIAGUEZ PELO CONDUTOR. 3. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O artigo científico a ser proposto traça a controvérsia estabelecida na jurisprudência brasileira acerca do homicídio praticado na direção veículo automotor, sob a influência do álcool: dolo eventual ou culpa consciente.
Nesse mister, questiona-se: o indivíduo que comete o crime de homicídio praticado na direção de veículo automotor, sob a influência do álcool, deve ser punido na forma dolosa - na modalidade de dolo eventual e julgado pelo Tribunal do Júri - ou na forma culposa - na espécie de culpa consciente e julgado pelo juiz singular?
Dois institutos assentados na doutrina e jurisprudência brasileira, o dolo eventual e culpa consciente, como elementos do aspecto subjetivo do tipo, guardam, ainda hoje, grande discussão quando hão de ser tratados nos casos de homicídios praticados na direção de veículo automotor, sob a influência de álcool do condutor.
É cediço de maiores digressões que a distinção feita entre ambos os institutos encontra-se pacificada na doutrina e jurisprudência brasileira, não havendo mais controvérsias em suas definições, já que tratam de um tema secular do Direito Penal.
Sem muito esforço, permissa venia, pode-se aludir que o tema proposto é de fundamental relevância jurídica, vez que não se pode negar a existência de uma tendência da jurisprudência brasileira em enquadrar automaticamente os indivíduos que praticam o homicídio na direção de veículo automotor, na figura do tipo doloso, na modalidade dolo eventual.
De tal modo, a presente pesquisa visa fomentar a discussão acadêmica quanto à responsabilização do agente no caso concreto, de modo a não perder de vista que não se trata de uma fórmula absoluta e automática em conferir aquele que pratica o crime ora debatido o elemento doloso do tipo, permitindo-se, ao final, aperfeiçoar o entendimento da jurisprudência brasileira e, consequentemente, o próprio Direito Brasileiro.
Por fim, assume-se a isso, fazer uma análise crítica acerca da tendência dos Tribunais brasileiros em igualar, por si só, a embriaguez (seja ela qual for) ao dolo eventual em caso de homicídio no trânsito.
2. A TENDÊNCIA DOS TRIBUNAIS EM AFERIR AUTOMATICAMENTE O DOLO EVENTUAL NO HOMICÍDIO PRATICADO NO TRÂNSITO PELA SIMPLES CONSTATAÇÃO DE EMBRIAGUEZ PELO CONDUTOR.
Primeiramente, importa adentrar na verificação de que em diversos juízos e tribunais tem ocorrido a caracterização quase que automática do dolo eventual pela simples embriaguez do condutor, no que diz respeito aos crimes de homicídios praticados na direção de veículo automotor.
A discussão a ser enfrentada encontra-se na possibilidade de conclusão automática da ocorrência do dolo eventual apenas com base na embriaguez do agente. Partindo da premissa de que os crimes de trânsito, via de regra, são culposos, nas modalidades imprudência, negligência e imperícia, bastaria a constatação unicamente de embriaguez do agente para que se extraia o dolo eventual da conduta?
Urge aqui, a necessidade, desde logo, em mencionar a forte crítica levada a cabo pelos doutrinadores acerca da constitucionalidade do crime de perigo abstrato, tendo em vista que o mesmo ofende o princípio da lesividade (nullum crimen sine iniuria), uma vez que o direito só deverá intervir naquelas situações que representam lesões e ofensas significantes ao bem jurídico.
Visto isso, os crimes de perigo abstrato não necessitam de uma comprovação da situação de risco, uma vez que esta se presume jure et jure e “a lei contenta-se com a simples prática da ação que pressupõe perigosa.” (MIRABETE, 2002, p.146). Assim, Luis Regis Prado (2007, p.1) critica os crimes de perigo, discorrendo o seguinte:
Dessa forma, a mais acertada interpretação que se faz do art. 306 do CTB incide em que o referido requisito "alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência" exige, fundamentalmente, a combinação com algum outro (por exemplo, direção anormal), a fim de configurar um perigo efetivo ao bem juridicamente tutelado. É o posicionamento do Tribunal de Justiça da Bahia, literis:
DIREITO PENAL. RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO ESTRITO. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. AUSÊNCIA DE LESÃO AO BEM JURIDICAMENTE TUTELADO. MERA SUBSUNÇÃO DA CONDUTA AO TIPO PREVISTO. TIPICIDADE FORMAL [...] NÃO FAZ SENTIDO PUNIR UMA CONDUTA, AINDA QUE TÍPICA E CULPÁVEL, MAS IRRELEVANTE DO PONTO DE VISTA PENAL. SEGUNDO O PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE, NÃO BASTA PRATICAR O ATO DESCRITO NA NORMA PENAL, É NECESSÁRIO TAMBÉM OFENDER O BEM JURÍDICO TUTELADO PELA NORMA, QUE NO CASO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE É A SEGURANÇA VIÁRIA. NA QUESTÃO, APESAR DE DIRIGIR SOB EFEITO DE ÁLCOOL, ESSA CONDUTA DO RECORRIDO NÃO LESIONOU O BEM JURIDICAMENTE TUTELADO NA NORMA PENAL QUE A TIPIFICA. [...] (RESE 0154343-2/2009/BA, Rel. ABELARDO VIRGINIO DE CARVALHO, Primeira Câmara Criminal, julgado em 09/11/2010)
Seguindo tal linha teórica, a referida discussão reside no elemento subjetivo da conduta do indivíduo, a fim de caracterizar a forma dolosa ou culposa com que a conduta do agente foi direcionada.
Tal conjuntura era digna de acolhimento pelo magistrado, uma vez que, aquele que conduz o veículo sob o efeito do álcool estaria, notadamente, assumindo o risco de causar um acidente resultante em morte.
O certo é que, ainda que caracterizada a embriaguez do motorista, tal constatação, por si só, não poderia servir como elemento único de convicção do Estado-juiz. Deve existir nos autos, portanto, informações suficientes que identifiquem o elemento dolo eventual na conduta do agente, isto é, que, diante de todo um conjunto probatório, se permita aferir tal elemento da conduta do indivíduo e não a sua simples verificação de estado de embriaguez.
Não se pode apurar pelo simples estado de embriaguez, que o sujeito estava à indiferença de outra vida humana e, ainda que assim o fosse, que o mesmo estivesse em momento de indiferença à sua própria vida.
Certamente o grau de embriaguez do réu é elemento em seu desfavor, porém não é suficiente para que se atribua a competência do Tribunal do Júri. Por certo, a situação de embriaguez, por si só, não autoriza ao reconhecimento do dolo eventual, isto é, a par da embriaguez do agente, não se pode extrair automaticamente o dolo de sua conduta, fazendo-se necessária a demonstração de que o sujeito aceitou o risco de produzir o acidente, causando a morte da vítima.
Importa, portanto, observar todo o conjunto de elementos concretos que indiquem a existência do dolo eventual, a fim de demonstrar que o agente assumiu o risco do advento resultado morte, em flagrante indiferença ao bem jurídico tutelado.
Ainda que houvesse o flagrante desrespeito às normas de trânsito pelo sujeito, não se pode concluir que o mesmo tinha plena consciência que poderia produzir o resultado lesivo, assumindo o risco de causar a morte de um condutor ou pedestre. Útil aqui é o voto do Eminente Relator Desembargador George Lopes Leite, da 1ª Turma Criminal do TJDF:
[...]É inconcebível que a interpretação dessas normas penais fique submetida à ditadura da mídia, conforme a repercussão do caso perante uma opinião pública marcadamente sugestionada pela imprensa. Não se pode aceitar que, por uma questão de política criminal circunstancial, a doutrina sedimentada ao longo dos anos seja desconsiderada ao singelo pretexto da necessidade de aplicar pena mais severa, na vã ilusão de que isso resultará na diminuição da violência no trânsito. Não cabe ao Poder Judiciário usurpar a competência do legislador, que é atribuir à conduta a sanção adequada, sob pena de violação aos princípios da especialidade e legalidade. [...] (Reclamação 20100020036755RCL/DF, 1ª Turma Criminal, Rel. Des. George Lopes Leite, julgado em 03/09/2010).
Não é razoável aquiescer na possibilidade de que o agente após ter ingerido a substância alcoólica, tenha consentido previamente com o evento danoso, causando a morte de outro condutor/pedestre, prosseguindo tranquilamente com sua trajetória.
Em outras palavras, repisa-se que, sendo em regra culposos os crimes de trânsito, não há que se concluir que alguém assumindo a direção de um veículo acredite que, mesmo sendo possível algum resultado lesivo a outrem, assinta com a produção deste. Nesse sentido, mutatis mutandis, é o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, conforme ilustra as decisões abaixo:
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO E LESÃO CORPORAL NO TRÂNSITO. EMBRIAGUEZ. CRIME CULPOSO.
DOLO EVENTUAL.
Nos delitos cometidos, contra a pessoa, na direção de veículo automotor, mesmo que constatada a influência de álcool sobre o motorista, não é possível, preliminar e objetivamente, definir a conduta como dolosa (dolo eventual), sendo, como regra, a culpa o elemento subjetivo do tipo. A instrução criminal poderá demonstrar que o agente previu o resultado e assumiu o risco de produzi-lo revelando uma conduta dolosa.
[...]
(HC Nº 70036820090/RS, Rel. Des. Ivan Leomar Bruxel, Terceira Câmara Criminal, julgado em 24/06/2010).
Observa-se, sem muito esforço, que para caracterizar a conduta dolosa, mister se faz a exposição dos fundamentos concretos, com base em um minucioso exame do material fático-probatório, de quais fatores conduziram à conclusão de que o agente, totalmente consciente dos riscos de dirigir alcoolizado, tenha consentido com relação ao possível evento danoso, desapreciando, por completo, o bem jurídico tutelado.
Difícil, portanto, será a atuação do juiz, que deverá explorar as circunstâncias do evento, a fim de descobrir a motivação que animava o sujeito no exato momento em que agiu. Útil aqui é a lição de Shecaira (2006, p.355), segunda o qual:
A análise de seus elementos distintivos requer por parte do juiz um exame das representações e dos motivos que atuaram sobre a psique do sujeito, obrigando ao intérprete e aplicador da lei a investigação dos mais recônditos elementos da alma humana.
No mesmo sentido, mutatis mutandis, foi o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, decidindo por decisões unânimes, nos seguintes termos:
Incube ao Juiz a ardia tarefa de ponderar todas as circunstâncias do fato, para que, analisando a exteriorização da conduta do agente, possa inferir o pensamento que o animava ao praticar a ação. Em tema de acidente de trânsito, são limitadas as hipóteses nas quais, hipoteticamente, com algum esforço, se admite o dolo eventual. Uma delas é a disputa automobilística nas ruas, popularmente conhecida como “racha” ou “pega”. Essa circunstância de fato, segundo a jurisprudência ainda vacilante, implicaria a dúvida quanto à aceitação do resultado, que caracteriza o dolo eventual, dúvida essa que haveria de ser dirimida perante o Tribunal do Júri. (AgRg no Agravo de Instrumento 1.189.970- DF, Rel. Min. Celso Limongi, julgado em 04/05/2010)
Pode-se sustentar, diante da linha de fundamentação acima traçada, que ainda que se entenda pela decisão de pronúncia como um “mero juízo de suspeita”, não é razoável que se decida baseada no brocardo in dubio pro societate. Isso porque, ainda que baste a demonstração dos pressupostos da materialidade e indícios suficientes de autoria na fase do judicium accusationis, auferir automaticamente o dolo eventual pela simples embriaguez se mostra merecedor de rechaço.
Deve-se afastar a conclusão automática da ocorrência do dolo eventual, quando levado em consideração apenas a embriaguez do sujeito, havendo, necessariamente, que se comprove a existência de outros elementos a corroborar com o advento do dano pelo agente. Coadunando com tal posicionamento, a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Sergipe se posicionou:
HOMICÍDIO- CRIME DE TRÂNSITO – EMBRIAGUEZ – DOLO EVENTUAL - AFERIÇÃO AUTOMÁTICA - IMPOSSIBILIDADE - DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO - RECURSO PROVIDO, POR MAIORIA . 1. Em delito de trânsito, ou se demonstra o dolo direto, ou se reduz em demasia a possibilidade do dolo eventual ante a perspectiva de que o próprio agente ativo da relação penal substantiva poderia ser, também, vítima fatal do evento a que deu causa. 2. A embriaguez não autoriza a presunção de dolo eventual, o que importaria em odiosa conclusão automática da existência de um elemento subjetivo do tipo, indemonstrado. 3. Recurso provido para desclassificar o delito para homicídio culposo. 4. Decisão por maioria. (RESE 0016/2010/SE, Rel. JOSÉ DOS ANJOS, julgado em 02/08/2010)
Esse é o entendimento já remansoso na nossa doutrina, que, muito embora tenha sido revogado o inciso V do parágrafo único do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, tem total pertinência temática com a questão aqui analisada:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA. HOMICÍDIO PRATICADO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. absolvição sumária. DESCABIMENTO.
[...]
DOLO EVENTUAL. NÃO-OCORRÊNCIA. DESCLASSIFICAÇÃO OPERADA.
[...]
Quando praticado homicídio na direção de veículo automotor, estando o agente embriagado e/ou drogado, em tese, incidirá o art. 302, parágrafo único, do Código de Trânsito Brasileiro, e não o art. 121 do Código Penal. Para que incida o art. 121 do Código Penal é preciso que as peculiaridades do caso concreto divulguem, em tese, a aceitação do resultado pelo autor, uma conduta que, de tão grave, revela intensa reprovabilidade social-jurídica e indiferença quanto a isso por parte do réu. Na hipótese, porém, isso não ocorreu. Assim, por reputar inexistente crime doloso contra a vida, nos termos do art. 410 do Código de Processo Penal, fica desclassificada a infração para outra fora da competência do Tribunal do Júri, determinando-se a remessa dos autos ao juízo de primeira instância competente [...] RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (RESE Nº 70031701451, Rel. DES. MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA , Primeira Câmara Criminal, julgado em 25/11/2009)
Por sua vez, cumpre remeter, à dicção do art. 413 do CPP, in verbis: “Art. 413. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.”
Ora, o foco do referido art. gira em torno da compreensão do que seja a “materialidade do fato”. Isto é, o art. 413 do CPP – acima transcrito – faz menção à existência de qualquer crime ou tão-somente aqueles dolosos contra a vida?
Mais que isso, a pronúncia, na esfera processual penal, remete à demonstração da provável existência de um crime doloso contra a vida, assim como dos indícios da respectiva autoria. Isso porque, não havendo essa prova quanto à ocorrência de um fato constituinte de crime doloso, não há em que se falar na própria pronúncia, vez que se exige a prova segura da materialidade do fato – fato este que constitua evidentemente crime doloso contra a vida.
Não será o caso, portanto, de pronunciar-se o réu e encaminhá-lo a julgamento pelo Tribunal Popular, a fim de que este decida se o crime foi doloso ou culposo (quando não houver certeza quanto à materialidade do crime doloso contra a vida).
Deve-se esclarecer, que no tocante à existência do crime, em relação ao convencimento do juiz (exigido pelo art. 413, do CPP) não se admite que vigore o aforismo in dubio pro societate, cabendo ao juiz singular que fazer esta verificação, não sendo, portanto, da competência do Tribunal Popular.
A seu turno, prevalece que, acidente com vítima fatal direciona à conclusão sobre a ocorrência não de homicídio o doloso, mas culposo. Não se pode concluir, automaticamente, à premissa do dolo eventual, mas de negligência, imprudência e imperícia do dever de cuidado que fora inobservado pelo agente.
Em face ao envolvimento do próprio agente, difícil é conceber a presença do dolo eventual nos acidentes de trânsito. Mais que isso, o indivíduo, animado pelo estado emocional a que está sujeito, por conta da embriaguez, embora possa prever o resultado, acreditará que este jamais se concretizará, tendo em vista que se supõe, levianamente, capaz de superar qualquer incidente, com êxito, por mais perigoso que ele possa apresentar.
É justamente nesse cenário que, de um modo geral, compreende-se que o álcool traz uma exagerada confiança ao condutor do veículo - o que lhe distancia do risco de sofrer um acidente – de modo que o condutor acredita veemente que conduz o veículo com segurança.
Não se pode admitir que o indivíduo tenha tido a percepção clara do resultado de sua conduta e, mesmo assim, prosseguiu na ação, assumindo o risco de produzi-lo ou a ele se mantendo indiferente.
Por fim, é que, inexistindo prova do dolo eventual no homicídio cometido em acidente de trânsito, não se cogita da competência do Tribunal do Júri para o julgamento do caso concreto.
3. CONCLUSÃO
Diante de tudo o que foi exposto no corpo do presente trabalho, pode-se concluir que nos homicídios consequentes de acidentes com veículo automotor, envolvendo o estado de embriaguez no volante, o agente, via de regra, deverá responder a titulo de culpa consciente.
Assim sendo, apesar da linha diferenciadora entre o dolo eventual e a culpa consciente serem uníssonas na doutrina e jurisprudência, observa-se, que os referidos institutos guardam, até hoje, grande discussão ante a tendência difundida na jurisprudência brasileira em aferir automaticamente o dolo eventual, quando configurada a embriaguez do condutor.
Sustentou-se, outrossim, no capítulo 2 (dois), que a referida tendência atualmente alastrada não merece ser levada adiante, uma vez que a classificação da conduta em dolo eventual quando a regra para os crimes no trânsito é a culpa, nas modalidades negligência, imperícia e imprudência, só pode ser admitida quando observado todo o conjunto de elementos concretos, isto é, todas as circunstâncias externas que permitam aferir que o agente assumiu o risco do advento resultado morte, em flagrante indiferença ao bem jurídico tutelado.
Salvo melhor juízo, pôde-se defender que ainda que caracterizada a embriaguez do motorista, tal constatação, por si só, não poderia servir como elemento único do convencimento do nobre Julgador. Mais que isso, caberá a este último a difícil tarefa de ponderar as circunstâncias do fato, através de um minucioso exame dos aspectos fático-probatório com o fito de descobrir a motivação que animava o sujeito no exato momento em que agiu.
Não se pode apurar pelo simples estado de embriaguez que o sujeito estava à indiferença de outra vida humana e, ainda que assim o fosse, que o mesmo estivesse em momento de indiferença à sua própria vida. Isso porque, entendendo que o indivíduo ingeriu o álcool, o mesmo acabou por supervalorizar sua habilidade no volante, de modo a confiar em seu potencial de direção, acreditando conduzir o veículo com segurança.
Adotadas as premissas anteriores, observou-se que não é razoável ao Judiciário se utilizar indiscriminadamente a figura do dolo eventual, mediante punições mais severas, na ilusão de equacionar a violência extremada que tomou curso no trânsito.
Colocada assim a questão, o direito penal como ultima ratio que é, diante dos contornos estabelecidos em um Estado Democrático de Direito, só deve ser chamado quando os demais ramos do Direito não conseguirem proteger aqueles bens jurídicos definidos como os mais relevantes da vida em sociedade.
Em linha de arremate, constatou-se, ao longo do trabalho que, ainda que se entenda pela decisão de pronúncia quando existirem dúvidas quanto ao elemento subjetivo, não é razoável que se decida baseado no brocardo in dubio pro societate. Isso porque, ainda que baste a demonstração dos requisitos da materialidade dos fatos e os aspectos suficientes de autoria na fase do judicium accusationis, auferir automaticamente o dolo eventual pela simples embriaguez se mostra merecedor de rechaço. A embriaguez por si só, não é elemento determinante para que se desloque a competência ao Tribunal Popular. Aliás, outra solução não caberia diante do contexto de um direito penal mínimo e garantista.
REFERÊNCIAS
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CHOMPANIDIS, Marcella Guimarães. Homicídio praticado na direção de veículo automotor, sob a influência do álcool: dolo eventual ou culpa consciente? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 abr 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44062/homicidio-praticado-na-direcao-de-veiculo-automotor-sob-a-influencia-do-alcool-dolo-eventual-ou-culpa-consciente. Acesso em: 23 dez 2024.
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