Resumo: O artigo a ser apresentado tem, basicamente, por desígnio analisar os aspectos relevantes acerca da figura do dolo eventual e da culpa consciente no homicídio praticado no trânsito diante da constatação de embriaguez pelo condutor. Para tanto, fez-se necessário um estudo dos referidos institutos em face do Código de Trânsito Brasileiro, a fim de avaliar minuciosamente a natureza do elemento subjetivo no caso concreto.
Palavras-chave: Dolo. Culpa. Trânsito. CTB. Alcoolemia. Homicídio.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 ASPECTOS RELEVANTES ACERCA DO TIPO DOLOSO E CULPOSO. 2.1 O TIPO DOLOSO. 2.2 O TIPO CULPOSO. 3. ABORDAGEM CRÍTICA DO DOLO EVENTUAL versus CULPA CONSCIENTE NOS CRIMES PRATICADOS NO TRÂNSITO, QUANDO PRESENTE A ALCOOLEMIA, A FIM DE CONFIGURAR A EMBRIAGUEZ. 3.1 DISTINÇÕES CONCEITUAIS ACERCA DO DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE. 3.2 A RESPONSABILIDADE PENAL DO INDIVÍDUO E A PROBLEMÁTICA VERIFICAÇÃO DA EMBRIAGUEZ. 3.2.2 Aspectos do Código de Trânsito Brasileiro e os crimes de perigo. 4. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O artigo científico a ser proposto traça a distinção acerca dolo eventual ou culpa consciente nos crimes de trânsito, mais especificamente o crime de homicídio praticado na direção de veículo automotor.
Trata-se, pois, de uma matéria muito delicada e, de manifesta saliência jurídica, vez que, o dolo eventual e culpa consciente, como elementos do aspecto subjetivo do tipo, guardam, ainda hoje, grande discussão quando hão de ser tratados nos casos de homicídios praticados na direção de veículo automotor, sob a influência de álcool do condutor.
É imperioso um exame acerca do instituto da embriaguez no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de traçar os liames necessários à configuração do dolo e/ou culpa nos crimes de homicídio praticados no trânsito.
Para tanto, afigura-se eficaz um recorte mais específico, no sentido de que sejam abordadas as formas que maior relevância apresenta para compreensão do dolo eventual e culpa consciente quanto à natureza do elemento volitivo, uma vez que as inovações trazidas pela legislação de trânsito trouxeram um viés diferenciado ao crime de homicídio que é praticado no trânsito, sob a influência do álcool.
Neste laço, faz-se necessário definir o tipo doloso e o tipo culposo; estabelecer a distinção entre os institutos do dolo eventual e culpa consciente; distinguir as modalidades de embriaguez e a sua aplicação no caso exposto, diante do Código de Trânsito Brasileiro;
Sem muito esforço, permissa venia, pode-se aludir que o tema proposto é de fundamental relevância jurídica, a presente pesquisa visa acrescentar à discussão acadêmica no que diz respeito à responsabilização do agente no caso concreto, de modo a não perder de vista que não se trata de uma fórmula absoluta e automática em conferir aquele que pratica o crime ora debatido o elemento doloso do tipo, permitindo-se, ao final, aperfeiçoar o entendimento da jurisprudência brasileira e, consequentemente, o próprio Direito Brasileiro.
2 ASPECTOS RELEVANTES ACERCA DO TIPO DOLOSO E CULPOSO.
2.1 O tipo doloso
O primeiro aspecto que merece destaque no presente trabalho é o conceito de dolo, tendo em vista a teoria finalista adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Nas palavras dos Mestres Zaffaroni e Pierangeli (2001, p.480), “[...] o dolo é o querer do resultado típico, a vontade realizadora do tipo objetivo.” Isto é, o mesmo consubstancia-se em praticar aquilo que se encontra descrito na norma penal incriminadora.
Por outro lado, observar-se-á que o dolo caracteriza-se por dois elementos: o elemento cognitivo ou intelectual e o elemento volitivo. Na sabedora de Rogério Greco (2008, p.183-184), o mesmo afirma, ainda, que:
A consciência, ou seja, o momento intelectual do dolo, basicamente diz respeito à situação fática em que se encontra o agente. O agente deve ter consciência, isto é, deve saber exatamente aquilo que faz, para que se lhe possa atribuir o resultado lesivo a título de dolo. [....] A vontade é outro elemento sem o qual se desestrutura o crime doloso. Aquele que é coagido fisicamente a acabar com a vida de outra pessoa não atua com vontade de matá-la.
Não se nega, outrossim, que restará desconfigurado o tipo doloso com a ausência de quaisquer dos elementos tratados supra.
Nessa linha de intelecção, já aqui, emerge a necessidade de discorrer sobre as quatro teorias estabelecidas, doutrinariamente, a respeito do conteúdo doloso.
Segundo Greco (2008, p.186-187), a teoria da vontade diz respeito à vontade livre e consciente do agente em querer praticar o tipo penal incriminador, ou seja, de efetivamente realizar o tipo objetivo.
Para a teoria do assentimento, fala-se em dolo quando o agente, prevendo o resultado lesivo da sua conduta, conforma-se e aceita o risco da produção do resultado. Aqui, sabe-se que não era sua intenção em um primeiro momento, mas em razão das circunstâncias, assume-se o risco de produzi-lo.
De outro modo, para a teoria da representação, não há distinção entre ambos os institutos. O dolo ocorre sempre que o agente puder prever em sua mente a produção do resultado, e mesmo assim se responsabiliza pela continuidade de sua conduta. Não se deve investigar se o indivíduo assumiu o risco em produzir o resultado ou se, prevendo aquele resultado, acreditava convictamente na sua não ocorrência, pois aqui o agente responderá sempre a título de dolo.
Por fim, diante da teoria da probabilidade, analisando a provável produção do resultado, entende-se pelo dolo eventual. Nas palavras do autor, “se de acordo com determinado comportamento praticado pelo agente, estatisticamente, houvesse grande probabilidade de ocorrência do resultado, estaríamos diante do dolo eventual”; quanto que a mera possibilidade da produção do resultado caracterizaria a imprudência consciente.
Sob outro aspecto, o dolo ainda distingue-se em direto e indireto. Entende-se por dolo direto aquele em que o agente pratica sua conduta querendo realizar o tipo penal incriminador, ou seja, o autor do fato age com o propósito final de produzir o resultado.
Nessa linha, cabe trazer à baila que, do conceito de dolo direto resulta, ainda, outra classificação importante: o dolo direto de primeiro grau ou imediato e o dolo direto de segundo grau ou mediato. O primeiro reflete aquele em que “o agente busca diretamente a realização do tipo legal, a prática do delito. O resultado delitivo era seu fim principal.” (PRADO, 2008, p.322).
Já o segundo, como bem destaca os Mestres Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2001, p.498), ocorre “quando o resultado é querido como consequência necessária do meio escolhido para a obtenção do fim”. Decorre, portanto, do meio escolhido para a prática da infração penal. “[...] o agente reconhece como necessárias, e aceita como inevitáveis, as consequências decorrentes de sua conduta que supõem a lesão a um bem jurídico” (PRADO, 2008, p.323).
Nos moldes do dolo indireto, este pode ser definido como aquele em que não há uma precisão acerca da vontade direcionada a um resultado certo e determinado. Isto é, “[...] o conteúdo do dolo não é preciso, definido.” (MIRABETE, 2008, p. 134)
Por outro lado, pode-se ainda subdividir-se o dolo indireto em alternativo e eventual. O primeiro diz respeito à alternatividade do aspecto volitivo do sujeito, isto é, o agente consente na ocorrência de quaisquer dos resultados. Nesse sentido:
Quando a alternatividade do dolo disser respeito ao resultado, fala-se em alternatividade objetiva: quando a alternatividade se referir à pessoa contra qual o agente dirige sua conduta, a alternatividade será subjetiva. Como por exemplo, de dolo indireto alternativo, tomando por base o resultado, podemos citar aquele em que o agente efetua disparos contra a vítima, querendo feri-la ou matá-la. [...] Percebe-se, por intermédio desse exemplo, que o conceito de dolo alternativo é um misto de dolo direto com dolo eventual. (GRECO, 2008, p.190)
Já o dolo eventual é caracterizado pelo risco de produção do resultado. Malgrado o agente não tenha diretamente vontade de praticar o tipo penal incriminador, ele não se abstém de agir e consente em cometer a infração penal prevista anteriormente. Segundo o entendimento de Prado (2008, p. 323), com embasamento na melhor doutrina, o agente se conforma com a possibilidade de realização do fato criminoso. E esclarece:
O agente não quer diretamente a realização do tipo, mas a aceita como possível ou provável. O agente conhece a probabilidade de que sua ação realize o tipo e ainda assim age. Vale dizer: o agente consente ou se conforma se resigna ou simplesmente assume a realização do tipo penal. [...] A vontade também se faz presente, ainda que de forma atenuada.
O dolo eventual traz a ideia de que o indivíduo não tinha, em um primeiro momento, a intenção de produzir o resultado constante do tipo penal. Contudo, após consciência e previsibilidade da produção daquele resultado, o agente o aceita, de forma a se responsabilizar pela sua eventual ocorrência. É o que dispõe a fórmula de Frank: “seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir”.
Nesse sentido, se posicionam os Profs. Zaffaroni e Pierangeli ao asseverar que “o dolo eventual, conceituado em termos correntes, é a conduta daquele que diz a si mesmo “que aguente”, “que se incomode”, “se acontecer, azar, ”não me importo. Observe-se que aqui não há uma aceitação do resultado como tal, e sim sua aceitação como possibilidade, como probabilidade” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2001, p.498).
Em outras palavras, o agente entrega ao acaso a ocorrência ou não ocorrência do resultado, assentindo para tanto, na possibilidade de lesão ao bem jurídico. E mais, representando mentalmente a possibilidade do resultado lesivo, o sujeito continua a agir ao ponto de provocá-lo. Segundo o Mestre Tavarez (2001, p.350):
[...] o agente deve dirigir sua conduta com ciência da seriedade das possibilidades de lesão e de perigo de lesão ao bem jurídico e, ademais, com indiferença a essa possibilidade de lesão ou colocação de perigo que ele admitiu como séria, isto é, uma possibilidade efetiva, concreta, atual. Em segundo lugar, que essa indiferença se traduza numa aceitação desse resultado de dano ou de perigo. A indiferença não se pode satisfazer simplesmente com uma decisão sobre a direção da conduta, mas pressupõe, para servir de base ao dolo, que o agente inclua na sua consciência que essa modalidade de atuação está sendo conduzida no sentido de uma séria possibilidade de lesão ou colocação em perigo do bem jurídico.
Para tanto, se afigura, doravante, essencial analisar as circunstâncias do caso concreto, tendo por parâmetro a séria possibilidade de colocar em perigo o bem jurídico.
Observa-se, a seu turno, que, diante da redação dada pelo art. 18 da legislação penal brasileira, o legislador optou pela adoção da Teoria da Vontade na primeira parte do inciso I - “quando o agente quis o resultado” – referindo-se ao dolo direito; e a Teoria da Aceitação ou Assentimento, quando faz menção ao dolo eventual, já que o indivíduo, embora não tenha uma vontade direta em produzir aquele resultado previsível, ele o consente na sua ocorrência.
2.2 O tipo culposo
Nos tipos culposos, há uma preocupação com o dever objetivo de cuidado, diferentemente dos tipos dolosos, em que a vontade é dirigida à produção do resultado lesivo ao bem jurídico tutelado.
A sua vez, observa-se que, em regra, no ordenamento jurídico brasileiro punem-se os crimes praticados de forma dolosa, uma vez que, para alguém ser punido a título de culpa, a norma penal incriminadora deverá o previr de forma expressa. É o que dispõe o parágrafo único do art. 18, do Código Penal, “in verbis”:
Art. 18 - Diz-se o crime:
I – [...]
II – [...]
Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.
Nesse cenário, visualiza-se que a culpa, calcada no art. 18, II, CP, traz em seu conceito a inobservância de um dever de cuidado.
Nas palavras dos Profs. Zaffaroni e Pierangeli, “assentado que o tipo culposo proíbe uma conduta que é tão final como qualquer outra, cabe precisar que, dada sua forma de limitar a conduta proibida, o elemento mais importante que devemos ter em conta nesta forma de tipicidade, é a violação de um dever de cuidado.” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2001, p.506).
Percebe-se, portanto, que o agente age com culpa quando desrespeita o dever de cuidado objetivo, praticando a conduta típica por negligência, imprudência ou imperícia.
Assim, para saber se houve ou não a inobservância desse dever de cuidado objetivo, a doutrina especializada busca avaliar a conduta praticada pelo agente, no caso específico, com a conduta que teria, nas mesmas condições, um homem de discernimento. Nesse sentido, posiciona-se Juarez Cirino dos Santos (2006, p.172-173) ao asseverar que:
O conceito de homem prudente, construído como modelo para determinar lesões do dever de cuidado ou risco permitido, é um referencial valioso para definir a natureza de comportamentos humanos. Um homem prudente é capaz de reconhecer e avaliar situações de perigo pra bens jurídicos protegidos, mediante observação das condições de realização da ação e reflexão sobre os processos subjacentes de criação e de realização do perigo. [...] O problema principal reside na dificuldade de definir o modelo adequado, em geral influenciado pelas experiências e distorções subjetivas do intérprete e, assim, evitar exigências excessivas, porque ações socialmente perigosas são normais dentro de determinados limites e, portanto, lesões do dever de cuidado somente são admissíveis em hipóteses de excedência do risco permitido: se em condições normais, o motorista urbano devesse considerar, sempre, a hipótese de pedestres invadirem a pista de rolamento, o tráfego urbano seria impossível.
Compreende-se, portanto, a figura do “homem médio” – padrão ideal de conduta - para que se afigure como um parâmetro à concretização do dever de cuidado objetivo, isto é, se indivíduo atender as expectativas exigíveis por esse padrão de conduta do “homem prudente”, a ele não seria razoável imputar-lhe a culpa.
Sob outro enfoque, para o doutrinador Cezar Roberto Bittencourt (2009, p.297), o legislador brasileiro ao estabelecer as modalidades de culpa se atentou, de forma exacerbada, a preciosismos técnicos que apresentam pouco resultado na vida prática. E tanto o é, que:
[...] na imprudência quanto na negligencia há a inobservância de cuidados recomendados pela experiência comum no exercício dinâmico do quotidiano humano. E a imperícia, por sua vez, não deixa de ser somente uma forma especial de imprudência ou de negligência.” (BITTENCOURT, 2009, p.304).
Assim, a imprudência tem como núcleo o caráter comissivo, ou seja, a prática de uma conduta arriscada. O sujeito age de forma imoderada, insensata. Na negligência, tem-se a imprevisão passiva do sujeito - o desleixo - é o não fazer o que deveria ser feito. O autor do crime não pensa na possibilidade do resultado. Por fim, a imperícia é o despreparo ou insuficiência de conhecimentos técnicos para o exercício de arte, profissão ou ofício. Não se confundindo, este último, com o erro profissional. O erro profissional, via de regra, não depende do uso correto e oportuno dos conhecimentos e regras da ciência.
Esclarecidas as modalidades de culpa, faz necessário ainda, mencionar as suas espécies. Nessa esteira, cumpre discorrer em breves linhas acerca da previsibilidade com que é tratado o tipo culposo.
A previsibilidade objetiva trata de um dever genérico de cuidado, isto é, da previsão do resultado por um homem razoável e não da previsão de algo excepcional e extraordinário. Já a previsibilidade subjetiva diz respeito à capacidade do indivíduo de prever o resultado, no caso concreto, conforme condições especiais a ele inerentes. Exige-se do sujeito, a previsão do resultado, com base naquilo que ele conhece. Este último, por sua vez, será objeto da culpabilidade.
Todavia, verificando que o fato é típico, observado a previsibilidade objetiva, só se verificará o grau de reprovabilidade da conduta – no âmbito de análise do estudo da culpabilidade - se o sujeito puder prevê-la.
Pode-se afirmar, nesse ínterim, que a ausência de previsibilidade subjetiva exclui a culpabilidade, muito embora a tipicidade da conduta seja mantida, ao contrário da ausência de previsibilidade objetiva, que implica na própria atipicidade da conduta. Se o resultado for além da previsibilidade do “homem prudente”, não há que se falar em culpa.
A sua vez, o injusto culposo pode ser dividido em culpa consciente e culpa inconsciente. Entende-se por culpa consciente quando o resultado é previsível tanto do ponto de vista objetivo quanto subjetivo. (FREITAS; CARDOSO, 2010, p. 394). O agente, mesmo prevendo o resultado, não o aceita e não assume o risco de produzi-lo. Apesar de prevê-lo, confia o sujeito em sua não-produção.
Ainda aqui, vale a referência de que o Código Penal brasileiro equipara a culpa consciente à inconsciente, designando a mesma pena abstrata para ambos os casos. Acompanhando o raciocínio do renomado Cezar Roberto Bittencourt (2009, p. 307):
Há culpa consciente, também chamada de culpa com previsão, quando o agente, deixando de observar a diligencia a que estava obrigado, prevê um resultado, previsível, mas confia convictamente que ele não ocorra. [...] na análise dessa espécie de culpa, deve-se agir com cautela, pois a simples previsão do resultado não significa, por si só, que o agente age com culpa consciente, pois mais que a previsão, o que caracteriza efetivamente é a consciência acerca da lesão ao dever de cuidado. Logo, nada impede que possa ocorrer erro de proibição, quando o agente se equivocar a respeito da existência, ou dos limites, do dever objetivo de cuidado.
D’outra banda, na culpa inconsciente, o agente não representa mentalmente a produção daquele resultado, apesar de previsível do ponto de vista objetivo.
Ainda no entendimento do Professor, “[...] apesar da presença da previsibilidade, não há a previsão por descuido, desatenção ou simples desinteresse. A culpa inconsciente caracteriza-se pela ausência absoluta de nexo psicológico entre o autor e o resultado de sua ação.” (BITTENCOURT, 2009, p. 308)
Por fim, seguindo por essa trilha teórica, perquirir-se-á nas linhas seguintes, uma abordagem crítica acerca do dolo eventual e culpa consciente nos casos de homicídio praticado no trânsito - principal ponto do presente trabalho.
3 ABORDAGEM CRÍTICA DO DOLO EVENTUAL versus CULPA CONSCIENTE NOS CRIMES PRATICADOS NO TRÂNSITO, QUANDO PRESENTE A ALCOOLEMIA, A FIM DE CONFIGURAR A EMBRIAGUEZ
3.1 Distinções conceituais acerca do dolo eventual e culpa consciente
Os referidos institutos guardam, ainda hoje, grande discussão quando hão de ser discutidos nos casos de homicídios praticados na direção de veículo automotor, sob a influência de álcool do condutor. Daí se origina, a título de esclarecimento, a necessidade de distinção entre o dolo eventual e culpa consciente, uma vez que em ambos há a previsão do resultado antijurídico, além de tratarem de condutas que se referem à natureza do elemento subjetivo, situando-se, acertadamente, no interior da psiquê humana.
Apesar desses traços característicos em comum, pode-se afirmar que na culpa consciente ou com representação, ao contrário do dolo eventual, o indivíduo não aceita a produção do resultado, repelindo-o mentalmente, para que o resultado lesivo não ocorra.
Nesse cenário, “o dolo compreende toda conseqüência possível ou real do resultado, que não pode ser imputada a culpa do autor, como consequência de sua leviandade ao agir, mas sim ao dolo, como consequência de sua vontade.” (PUPPE, 2006, p.130)
Nas palavras de Juarez Cirino dos Santos (2005, p.189-190):
[...] A literatura contemporânea trabalha, na área dos efeitos secundários típicos representados como possíveis, com os seguintes conceitos para definir imprudência consciente e dolo eventual: a imprudência consciente se caracteriza, no nível intelectual, pela representação da possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, pela leviana confiança na ausência ou exclusão desse resultado, por habilidade, atenção, cuidado etc. na realização concreta da ação; o dolo eventual se caracteriza, no nível intelectual, por levar a sério a possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, por conformar-se com a eventual produção desse resultado – podendo variar para as situações respectivas de contar com o resultado típico possível, cuja eventual produção o autor aceita.
Há que se ter em mente, portanto, que se o agente não deixa ao acaso a produção do resultado por confiar em sua habilidade, de modo que atua sem a vontade de lesionar o bem jurídico haverá somente responsabilidade do indivíduo a título de culpa consciente. No magistério de Zaffaroni (2007, p.446):
Chama-se culpa com representação, ou culpa consciente, aquela em que o sujeito ativo representou para si a possibilidade da produção do resultado, embora a tenha rejeitado, na crença de que, chegado o momento, poderá evitá-lo ou simplesmente ele não ocorrerá. Este é o limite entre a culpa consciente e o dolo. Aqui há um conhecimento efetivo do perigo que correm os bens jurídicos, que não se deve confundir com a aceitação da possibilidade de produção do resultado, que é uma questão relacionada ao aspecto volitivo e não ao cognoscitivo, e que caracteriza o dolo eventual. [...] Na culpa inconsciente, ou culpa sem representação, não há um conhecimento efetivo do perigo que, com a conduta, se acarreta aos bens jurídicos, porque se trata da hipótese em que o sujeito podia e devia representar-se a possibilidade de produção do resultado e, no entanto, não o fez. Nestes casos há apenas um conhecimento “potencial” do perigo aos bens jurídicos alheios.
Em outras palavras, na culpa consciente, o indivíduo, convictamente acredita na não ocorrência do resultado, enquanto que no dolo eventual, o mesmo aquiesce no advento do resultado. Assim, é de opinião unívoca que:
[...] na culpa consciente, o agente, embora prevendo o resultado, acredita sinceramente na sua não-ocorrência; o resultado previsto não é querido ou mesmo assumido pelo agente. Já no dolo eventual, embora o agente não queira diretamente o resultado, assume o risco de vir a produzi-lo. Na culpa consciente, o agente sinceramente acredita que pode evitar o resultado; no dolo eventual, o agente não quer diretamente produzir o resultado, mas, se este vier a acontecer, pouco importa. (GRECO, 2008, p. 207).
Tanto em um como em outro caso, existe a previsibilidade do resultado pelo indivíduo; na culpa consciente, o agente espera, sinceramente, a inocorrência do resultado; no dolo eventual, assente com o mesmo, quer dizer: a representação do evento danoso não previne que prossiga com sua conduta. Nesse espeque, entende-se que não basta apenas a previsibilidade do resultado danoso pelo agente, mas deve existir uma atitude de assentimento em relação à possibilidade de produção do resultado ou até mesmo o sentimento de indiferença quanto a este. Coadunando com tal entendimento, Luis Regis Prado (2006.p.367), assevera que “o critério decisivo se encontra na atitude emocional do agente. Sempre que, ao realizar a ação, conte com a possibilidade concreta de realização do tipo de injusto será dolo eventual. De outra parte, se confia que o tipo não se realize, haverá culpa consciente”.
No caso do dolo eventual, o valor positivo que o sujeito empregou à prática da ação foi mais forte do que a inibição da representação do resultado. Assim, entre desistir da ação ou praticá-la, o indivíduo arrisca-se a produzir o resultado lesivo. O agente age com o sentimento de egoísmo, pouco se importando com o evento lesivo.
Verifica-se, a sua vez, que apesar da semelhança de ambos os institutos no que se refere à previsibilidade ou representação do resultado lesivo, na culpa consciente há a compreensão de que não haverá a produção do resultado, por conta do agente confiar plenamente em sua habilidade; age, portanto, com leviandade, uma vez que o valor negativo do resultado possível foi mais forte para o agente que o valor positivo que atribuía à prática da conduta. No mesmo sentido se posiciona Mirabete (2008, p.142) ao estabelecer que:
A culpa consciente avizinha-se do dolo eventual, mas com ela não se confunde. Naquela, o agente, embora prevendo o resultado, não o aceita como possível. Neste, o agente prevê o resultado, não se importando que venha ele a ocorrer. [...] este se integra por esses dois componentes – representação da possibilidade do resultado e anuência a que ele ocorra, assumindo ao agente o risco de produzi-lo.
Por seu turno, reconhecendo-se a suficiência de posicionamento doutrinário firme, cuja proposta consista em delimitar um conceito de dolo eventual e culpa consciente, bem como diferenciá-los de modo coerente com o trabalho proposto, buscar-se-á defender adiante, de que maneira o indivíduo será responsabilizado pela prática do delito ora vergastado, dentre as concepções jurídicas válidas de embriaguez.
3.2 A responsabilidade penal do indivíduo e a problemática verificação da embriaguez
É imperioso um exame acerca do instituto da embriaguez no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de traçar os liames necessários à configuração do dolo e/ou culpa nos crimes de homicídio praticados no trânsito.
O Professor Mirabete (2008, p. 219) leciona que “a embriaguez pode ser conceituada como a intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool ou substancia de efeitos análogos que privam o sujeito da capacidade normal de entendimento.”
De acordo com o Código Penal adotado pelo Brasil, a embriaguez voluntária ou culposa não exclui a imputabilidade penal (MIRABETE, 2008, p.220). Para tanto, o art. 28, CP traz a seguinte redação:
Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal:
I – (...)
II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos. (grifo nosso)
§ 1º - É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
§ 2º - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Por certo, como bem o descreve Greco (2008, p. 404), existem duas modalidades ou formas de embriaguez que merecem a atenção do legislador penal brasileiro: a) a embriaguez voluntária, ou seja, não acidental ou intencional; e b) involuntária, também chamada de acidental, que trata dos casos provenientes de caso fortuito e força maior.
A primeira diz respeito àquela tipificada no art.28, II, do mencionado Código Penal descrito nas linhas alhures – que pela teoria da actio libera in causa, autoriza a punição do indivíduo - e a que, consequentemente, torna-se interessante para o presente trabalho.
Por sua vez, diante da teoria supramencionada “[...] o dolo ou a culpa do injusto devem ser deslocados para a vontade do sujeito, presente no momento em que ele se colocou no estado de incapacidade de culpabilidade.” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 455). Isto é, no momento em que o mesmo se embriagou, quando tinha liberdade para atuar na causa.
A embriaguez voluntária, entretanto, pode ser classificada em outras duas subespécies: a) embriaguez voluntária culposa e b) embriaguez voluntária em sentido estrito. A culposa é aquela em que o agente não tem o intuito de embriagar-se, mas o faz, imprudentemente, “deixando de observar o seu dever de cuidado, ingere quantidade suficiente que o coloca em estado de embriaguez.” (GRECO, 2008, p.405). Já a embriaguez em sentido estrito trata dos casos em que o agente, de fato, tem a consciência e intenção de embriagar-se.
Apesar da distinção doutrinária acerca da embriaguez culposa e aquela em sentido estrito, em se tratando da responsabilização do indivíduo frente à embriaguez voluntária lato sensu, o agente responderá pela sua conduta, “mesmo que, ao tempo da ação ou da omissão, seja inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” (GRECO, 2008, p.405).
Vale destacar, ainda, consoante se extrai da teoria da actio libera in causa, se o indivíduo agiu de forma livre e intencional, ou quando nada, de maneira culposa, acertadamente, ele será responsabilizado.
Assim é que, “havendo a previsibilidade do resultado criminoso, há actio libera in causa, seja por culpa ou dolo eventual; contudo, na hipótese de imprevisibilidade da conduta criminosa, não há que se falar em ação livre na sua causa, uma vez que a vontade do agente não poderia dirigir-se a fim impossível de ser previsto. (ADEONATO, 2007, p. 02)
Permissa venia, é necessário trazer a lume o instituto da embriaguez preordenada. Apesar de alguns autores (como exemplo, o mestre Cezar Roberto Bittencourt) discorrerem em seus manuais a embriaguez preordenada como uma das modalidades de embriaguez assume-se a isso, ao menos com a clareza que o Direito sugere, informar ter esta previsão no art. 61, inciso II, alínea l, CP, como uma circunstancia agravante. Neste sentido:
Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:
I – (...)
II - ter o agente cometido o crime:
(...)
l) em estado de embriaguez preordenada.
A sua vez, nada mais lógico o agente que decididamente embriaga-se com o fito de praticar a conduta delituosa tenha um maior grau de censura e reprovação quanto à sua conduta, sendo-lhe imputado o resultado a título de dolo agravado pela circunstância prevista no art. 61, II, l.
Por outro lado, a embriaguez involuntária não será aqui abordada, uma vez que não é o foco da presente pesquisa, já que o crime de homicídio praticado no trânsito aqui tratado reflete apenas a condição de embriaguez voluntária pelo condutor do veículo e não as diversas modalidades de embriaguez para todo e qualquer caso.
Tentar-se-á, nas linhas seguintes, a aferição da embriaguez, desde as inovações trazidas pelas Leis nº. 12.760/2012 e nº 12.971/14 ao Código de Trânsito Brasileiro.
3.1.2 Aspectos do Código de Trânsito Brasileiro e os crimes de perigo
Primeiramente, cabe recordar que com o advento da Lei nº. 11.705, de 19 de junho de 2008 que alterou a Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 - o Código de Trânsito Brasileiro, algumas inovações foram trazidas à legislação ao estabelecer, entre outras, a alcoolemia zero – intitulada de “tolerância zero” - aos motoristas que consumirem qualquer quantidade de bebida alcoólica e conduzirem veículos automotores.
Importante perceber aqui, que desde o advento da Lei nº. 11.275 de 7 de fevereiro de 2006, houve a alteração do dispositivo 165 do Código de Trânsito para a chamada “tolerância zero”. Isto é, no texto original do Código de Trânsito Brasileiro havia a seguinte previsão para a referida infração: "Dirigir sob a influência de álcool, em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica". Assim é que, com o advento dessa lei houve a supressão do limite de nível de álcool, passando a referida norma a viger com a seguinte redação, a fim de configurar a embriaguez no volante: “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. Atualmente, consta da redação dada pela Lei nº. 11.705/08, a saber: “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:”
Noutro espeque, com a chegada da Lei nº. 12.760/2012, houve ainda a alteração do art. 276 do Código de Trânsito Brasileiro que torna mais evidente a ausência de limites na infração de embriaguez ao volante, ao dispor que: "Qualquer concentração de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código". (grifo nosso).
D’outra banda, estabelece o CTB em seu art. 302, a prática do crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor. Com o advento da Lei nº. 11.705/08 cumpre verificar que foi revogado o inciso V do mesmo art., que previa uma causa de aumento de pena para os referidos crimes quando o condutor do veículo estivesse “sob a influência de álcool ou substancia tóxica ou entorpecente de efeitos análogos”. Útil aqui é a reflexão de André Abreu de Oliveira, segundo o qual:
[...] O motivo da revogação do inciso V do art. 302 do CTB, que continha a regra em questão, foi facilitar o enquadramento desses casos em homicídio doloso. [...] No sentido da tipificação como homicídio doloso, existem recentes decisões judiciais, como a do Superior Tribunal de Justiça, o qual negou um pedido de habeas corpus feito por um acusado que, estando este sob influência de álcool, envolveu-se em um acidente de trânsito fatal com vítima, sendo então condenado por homicídio doloso (HC 82.427-PR, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 17/12/2007, DJ 18/02/2008). (OLIVEIRA, 2008, p.1)
Em recente alteração ocorrida no ano de 2014 pela Lei. 12.971, acrescentou-se ao referido art. 302 uma qualificadora, qual seja:
§ 2º Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente
Nessa senda, importante o posicionamento crítico do advogado Marcelo Rodrigues da Silva a respeito do tema:
Incumbe salientar que com a previsão da referida forma qualificada ao homicídio culposo quando o agente conduzir veículo com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa ou determine dependência, tornou-se certa a impossibilidade de incidência concomitante do artigo 306 do CTB (que traz a figura típica do crime de embriaguez ao volante) de maneira a gerar concurso material de crimes ou formal de crimes (conforme alguns juízes e Tribunais vinham entendendo), sob pena de haver punição duas vezes pelo mesmo fato, violando o princípio do ne bis in idem (proibição de se punir duas vezes o mesmo fato). (SILVA, 2014, p.1)
Por seu turno, a Lei nº. 12.760/2012 trouxe inovações ao crime do art. 306 do CTB - embriaguez ao volante. A redação anterior prescrevia o seguinte: "Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". Com a nova redação trazida pela Lei nº. 12.760/2012 alterou-se o “caput” para abarcar apenas a alteração da capacidade psicomotora em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, bem como acrescentou-lhe o § 1º, incisos I e II, a fim de possibilitar a aferição da infração penal de embriaguez ao volante por meio de influência de outra substância psicoativa por meio do exame toxicológico. Cumpre obtemperar, assim, que a norma do art. 306 retrata um crime de perigo abstrato, bastando a simples conduta de dirigir embriagado.
Afigura-se imprescindível, portanto, trazer a lume alguns apontamentos a respeito dos crimes de perigo, para melhor entendimento das últimas alterações que foram feitas na legislação viária. Conforme leciona o professor Paulo Queiroz (2005, p.157):
[...] nos crimes de perigo, o legislador ao descrever o tipo, contenta-se com o só perigo que a ação representa para o bem jurídico. O perigo será concreto quando a descrição do tipo aludir a um perigo ocorrido, real, de lesão, devendo, portanto, ser comprovado. O perigo é abstrato ou presumido quando o legislador tipifica a conduta por julgá-la perigosa em si, independentemente de qualquer risco efetivo, isto é, a lei presume jure et de jure.
Observa-se que o crime de perigo é aquele que, representa uma ponderável ameaça ao bem jurídico. “Há consumação do delito com o simples perigo criado para o bem jurídico.” (MIRABETE, 2008, p.124).
O crime de perigo, por sua vez, subdivide-se em perigo concreto e perigo abstrato. O crime de perigo concreto é aquele em que se consome com a verificação efetiva do perigo. Diferentemente dos crimes de perigo abstrato que, para a sua configuração, não se exige a comprovação do perigo real, já que este é presumido pela norma.
Em outras palavras, nos crimes de perigo abstrato, a comprovação da existência da situação em que se colocou em perigo o bem jurídico protegido é dispensada, gerando a punição do indivíduo pelo mero descumprimento formal da lei. Isso porque, “o perigo é abstrato ou presumido quando o legislador tipifica a conduta por julgá-la perigosa em si, independemente de qualquer risco efetivo, isto é, a lei o presume jure et jure.” (QUEIROZ, 2005, p.157).
Assim é que, com o advento da Lei nº. 12.760/12, basta a mera condução de veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência para que se configure o crime tipificado no art. 306 do CTB. Bem assim, a atual legislação não se prendeu a uma concentração de álcool no sangue ou no ar alveolar, uma vez que a comprovação do estado perigoso na direção de veículo automotor pode ser produzida também por outros meios legais de prova, como por exemplo o exame clínico. Nessa senda, o condutor flagrado que dirigir nessas condições, de acordo com a nova lei, já cometeu o crime de trânsito, uma vez que se trata de mera presunção de perigo. Nas palavras do delegado civil Eduardo Cabette (2013, p.1):
[…] Calejado pela triste experiência da Lei 11.705/08, o legislador na nova Lei Seca, embora tenha voltado a mencionar índices de alcoolemia para aferição da alteração da capacidade psicomotora no inciso I, reservou o inciso II para tratar de outros sinais também capazes de indicar a mesma alteração. Doravante a constatação da dita alteração da capacidade psicomotora poderá ser aferida por exames e testes de alcoolemia nos termos do inciso I, que indiquem “concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar”. É crime dirigir com a capacidade psicomotora alterada por álcool ou outras substâncias, mas como se afere isso? Diz o § 1º., inciso I: através de exames e testes de alcoolemia que indiquem os índices legalmente previstos. Em resumo, por meio de testes e exames de alcoolemia temos a mesmíssima sistemática então vigente quando inalterada a antiga redação dada ao dispositivo pela Lei 11.705/08. Mudou-se apenas a forma, mas o conteúdo é idêntico. Por isso, com base em toda a experiência antecedente e manifestações jurisprudenciais e doutrinárias a respeito, entendemos que na modalidade de constatação de índice de alcoolemia acima do legalmente permitido o crime segue como de perigo abstrato, nada se modificando.
Em derradeiro, observa-se, portanto, que com a entrada em vigor do § 2º do art. 302, é de se reforçar o posicionamento adotado majoritariamente pelos Tribunais de maior hierarquia no sentido de que a alcoolemia ao volante, por si só, não deve ser considerada como suficiente para caracterização do dolo eventual quando houver morte na condução de veículo automotor.
4 CONCLUSÃO
Diante de tudo o que foi exposto no corpo do presente trabalho, pode-se concluir que nos homicídios consequentes de acidentes com veículo automotor, envolvendo o estado de embriaguez no volante, o agente, via de regra, deverá responder a titulo de culpa consciente.
Alcançou-se nos capítulos 2 (dois) e 3 (três), os objetivos específicos atinentes a definição estabelecida na doutrina especializada acerca do tipo doloso e culposo e a distinção acerca dos institutos do dolo eventual e culpa consciente, apontando as modalidades de embriaguez ante ao viés implementado pelas alterações no Código de Trânsito Brasileiro.
Apesar de terem traços característicos em comum, pode-se afirmar que na culpa consciente ou com representação, ao contrário do dolo eventual, o indivíduo não aceita a produção do resultado, repelindo-o mentalmente, para que o resultado lesivo não ocorra.
Assim sendo, muito embora a linha diferenciadora entre o dolo eventual e a culpa consciente serem uníssonas na doutrina e jurisprudência, observa-se, que os referidos institutos guardam, até hoje, grande discussão ante a tendência difundida na jurisprudência brasileira em aferir automaticamente o dolo eventual, quando configurada a embriaguez do condutor.
Sustentou-se, outrossim, que ainda que caracterizada a embriaguez do motorista, tal constatação, por si só, não poderia servir como elemento único do convencimento do nobre Julgador. Mais que isso, caberá a este último a difícil tarefa de ponderar as circunstâncias do fato, através de um minucioso exame dos aspectos fático-probatório com o fito de descobrir a motivação que animava o sujeito no exato momento em que agiu.
Em linha de arremate, considera-se que, diante das inovações trazidas pelas Leis nº. 12.760/2012 e nº 12.971/14 ao Código de Trânsito Brasileiro e principalmente com a entrada em vigor do § 2º do art. 302, é de se avigorar o entendimento que ultimamente têm sido adotado pelos Tribunais Superiores no sentido de que a alcoolemia do indivíduo na direção de veículo automotor, quando considerada isoladamente, não pode configurar o dolo eventual na hipótese de morte.
REFERÊNCIAS
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CHOMPANIDIS, Marcella Guimarães. Dolo eventual versus culpa consciente no crime de homicídio praticado no trânsito quando presente a alcoolemia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 abr 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44073/dolo-eventual-versus-culpa-consciente-no-crime-de-homicidio-praticado-no-transito-quando-presente-a-alcoolemia. Acesso em: 23 dez 2024.
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