RESUMO: A entrada em vigor da Nova Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), em especial seu artigo 28, gerou muita polêmica no mundo jurídico. Antes da entrada em vigor do artigo 28 da citada lei, aplicava-se o artigo 16 da Lei nº 6.368/76 (antiga Lei de Drogas) para o crime de uso e porte de substância entorpecente, cuja pena em abstrato variava entre 6 (seis) meses e 2 (dois) anos de detenção. A partir da vigência da Nova Lei de Drogas, a pessoa que for flagrada com droga, para consumo próprio, em desacordo com a legislação, está sujeita a penas alternativas, ou seja, não privativas de liberdade. Assim, surgiu a celeuma: houve a descriminalização ou somente a despenalização da conduta? Prevaleceu, na doutrina e na jurisprudência pátrias, o posicionamento de ter ocorrido apenas a despenalização da conduta, sendo ainda considerado crime o porte e uso de entorpecente para consumo próprio. Foi a partir daí que surgiu uma corrente defendendo ser aplicável o mesmo entendimento ao artigo 290 do Código Penal Militar, dispositivo que prevê o crime de uso ou porte de substância entorpecente, no âmbito militar. Após algumas variações na jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal, Corte máxima desse País, pacificou o entendimento, através de seu Pleno, de que não é possível aplicar o entendimento da despenalização do artigo 28 da Nova Lei de Drogas ao artigo 290 do Código Penal Militar, haja vista esta ser norma especial em relação àquela, regulada pelos pilares da hierarquia e disciplina.
Palavras-chave: Uso e porte de substância entorpecente; consumo próprio; despenalização; descriminalização; artigo 28 da Lei nº 11.343/2006; artigo 290 do Código Penal Militar.
1. INTRODUÇÃO
Na forma do art. 28 da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas), adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo próprio, substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, submete o agente às penas de advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa.
O §1º do art. 28, por sua vez, dispõe que se submete às mesmas medidas aquele que semear, cultivar ou colher plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de droga, para consumo pessoal.
Antes da edição da Lei nº 11.343/2006, as condutas acima mencionadas se enquadravam no art. 16 da Lei nº 6.368/76, que tinha como preceito secundário a pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e o pagamento de 20 (vinte) a 50 (cinquenta) dias-multa.
Diante da drástica mudança no tratamento dado ao consumo de drogas, o início da vigência da Lei nº 11.343/2006 foi marcado pela discussão acerca da descriminalização ou mera despenalização dessa conduta.
Para Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches, o art. 28 da Lei nº 11.343/2006 aboliu o caráter criminoso da posse de droga para consumo pessoal (descriminalização formal) e, simultaneamente, operou a despenalização da conduta, que, segundo os juristas, adquiriu o status de “infração penal sui generis”. Vejamos:
[...]
Para essa primeira corrente não teria havido descriminalização, sim, somente uma despenalização moderada.
Para nós, ao contrário, houve descriminalização formal (acabou o caráter criminoso do fato) e, ao mesmo tempo, despenalização (evitou-se a pena de prisão para o usuário de droga). O fato (posse de droga para consumo pessoal) deixou de ser crime (formalmente) porque já não é punido com reclusão ou detenção (art. 1º da LICP). Tampouco é uma infração administrativa (porque as sanções cominadas devem ser aplicadas pelo juiz dos juizados criminais). Se não se trata de um crime nem de uma contravenção penal (mesmo porque não há cominação de qualquer pena de prisão), se não se pode admitir tampouco uma infração administrativa, só resta concluir que estamos diante de infração penal sui generis. Essa é a nossa posição, que se encontra ancorada nos seguintes argumentos:
a) a etiqueta dada ao Capítulo III, do Título III, da Lei 11.343/2006 ("Dos crimes e das penas") não confere, por si só, a natureza de crime (para o art. 28) porque o legislador, sem nenhum apreço ao rigor técnico, já em outras oportunidades chamou (e continua chamando) de crime aquilo que, na verdade, é mera infração político-administrativa (Lei 1.079/1950, v.g., que cuida dos "crimes de responsabilidade", que não são crimes). A interpretação literal, isolada do sistema, acaba sendo sempre reducionista e insuficiente; na Lei 10.409/2002 o legislador falava em "mandato" expedido pelo juiz (quando se sabe que é mandado); como se vê, não podemos confiar (sempre) na intelectualidade ou mesmo cientificidade do legislador brasileiro, que seguramente não se destaca pelo rigor técnico;
b) a reincidência de que fala o § 4º do art. 28 é claramente a popular ou não técnica e só tem o efeito de aumentar de cinco para dez meses o tempo de cumprimento das medidas contempladas no art. 28; se o mais (contravenção + crime) não gera a reincidência técnica no Brasil, seria paradoxal admiti-la em relação ao menos (infração penal sui generis + crime ou + contravenção);
c) hoje é sabido que a prescrição não é mais apanágio dos crimes (e das contravenções), sendo também aplicável inclusive aos atos infracionais (como tem decidido, copiosamente, o STJ); aliás, também as infrações administrativas e até mesmo os ilícitos civis estão sujeitos à prescrição. Conclusão: o instituto da prescrição é válido para todas as infrações (penais e não penais). Ela não é típica só dos delitos;
d) a lei dos juizados (Lei 9.099/1995) cuida das infrações de menor potencial ofensivo que compreendem as contravenções penais e todos os delitos punidos até dois anos; o legislador podia e pode adotar em relação a outras infrações (como a do art. 28) o mesmo procedimento dos juizados; aliás, o Estatuto do Idoso já tinha feito isso;
e) o art. 48, parágrafo 2°, determina que o usuário seja prioritariamente levado ao juiz (e não ao Delegado), dando clara demonstração de que não se trata de "criminoso", a exemplo do que já ocorre com os autores de atos infracionais;
f) a lei não prevê medida privativa da liberdade para fazer com que o usuário cumpra as medidas impostas (não há conversão das penas alternativas em reclusão ou detenção ou mesmo em prisão simples);
g) pode-se até ver a admoestação e a multa (do § 6º do art. 28) como astreintes (multa coativa, nos moldes do art. 461 do CPC) para o caso de descumprimento das medidas impostas; isso, entretanto, não desnatura a natureza jurídica da infração prevista no art. 28, que é sui generis;
h) o fato de a CF de 88 prever, em seu art. 5º, inc. XLVI, penas outras que não a de reclusão e detenção, as quais podem ser substitutivas ou principais (esse é o caso do art. 28) não conflita, ao contrário, reforça nossa tese de que o art. 28 é uma infração penal sui generis exatamente porque conta com penas alternativas distintas das de reclusão, detenção ou prisão simples.
A todos os argumentos lembrados cabe ainda agregar um último: conceber o art. 28 como "crime" significa qualificar o possuidor de droga para consumo pessoal como "criminoso". Tudo que a nova lei não quer (em relação ao usuário) é precisamente isso. Pensar o contrário retrataria um grave retrocesso punitivista (ideologicamente incompatível com o novo texto legal). Em conclusão: a infração contemplada no art. 28 da Lei 11.343/2006 é penal e sui generis. Ao lado do crime e das contravenções agora temos que também admitir a existência de uma infração penal sui generis.[i] (grifo nosso).
O Ministro Sepúlveda Pertence, em voto proferido no RE 430.105-QO/RJ, alertou para as sérias consequências jurídicas dessa tese e assim concluiu:
[...]
Assim, malgrado os termos da Lei não sejam inequívocos – o que justifica a polêmica instaurada desde a sua edição –, não vejo como reconhecer que os fatos antes disciplinados no art. 16 da L. 6.368/76 deixaram de ser crimes.
O que houve, repita-se, foi uma despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento – antes existente apenas com relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibilidade material de execução (CF/88, art. 225, §3º; e L. 9.605/98, arts. 3º; 21/24) – da tradição da imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal.
Esse o quadro, resolvo a questão de ordem no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107, III). (grifos nossos).[ii]
Atualmente, tal questão já se encontra superada. Conforme entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, ao cominar somente penas restritivas de direito aos “usuários” de drogas, o art. 28 operou a despenalização da posse de drogas para consumo próprio, de modo que o consumo de drogas continua sendo crime, mesmo após a Lei nº 11.343/2006. Nesse sentido, vejamos:
EMENTA: I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 - nova lei de drogas): natureza jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP - que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção - não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime - como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 - pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo "rigor técnico", que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado "Dos Crimes e das Penas", só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). 3. Ao uso da expressão "reincidência", também não se pode emprestar um sentido "popular", especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de "despenalização", entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107). II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinário julgado prejudicado.
(Supremo Tribunal Federal. 1ª Turma. Questão de Ordem em Recurso Extraordinário 430.105-9/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Publicação DJ: 27/04/2007).[iii] (grifo nosso).
Assim, o entendimento que prevaleceu e se solidificou na doutrina e na jurisprudência foi o de que a Nova Lei de Drogas não descriminalizou a posse de drogas para consumo próprio, mas apenas afastou as penas privativas de liberdade, implicando mera despenalização em sentido estrito.
Note-se que, de acordo com a Lei nº 11.343/2006, não é apenas a reduzida quantidade de droga apreendida o fator determinante para definir se a substância é destinada ao consumo pessoal ou ao tráfico. Para tanto, o §2º do art. 28 prevê como critérios, além da quantidade da substância apreendida, a sua natureza, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente.
2. TRATAMENTO JURÍDICO APLICÁVEL À POSSE DE ENTORPECENTES, PARA CONSUMO PRÓPRIO, NO ÂMBITO DAS ORGANIZAÇÕES MILITARES
Superadas essas questões introdutórias, o que e pretende, com o presente artigo, é analisar outra grande polêmica criada a partir da edição da Lei n. 11.343/2006, qual seja, a possibilidade de sua aplicação aos crimes cometidos no âmbito de organizações militares.
Assim dispõe o art. 290 do CPM:
Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão, até cinco anos.[iv] (grifo nosso).
Como se pode observar, o CPM não distingue o usuário de drogas daquele que pratica o tráfico, ambos contemplados no mesmo tipo penal e submetidos à mesma pena: reclusão, até 5 (cinco) anos.
2.1. A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA INSIGNIFICÂNCIA E DA PROPORCIONALIDADE À POSSE DE DROGAS, PARA CONSUMO PRÓPRIO, E A TESE DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 290, CPM, DIANTE DA EDIÇÃO DA LEI Nº 11.343/2006
A partir da edição da Lei nº 11.343/2006, a discrepância de tratamento entre o usuário de drogas civil e o militar deu origem às teses de aplicação do princípio da insignificância no direito penal militar e de inconstitucionalidade do art. 290 do CPM, por violação ao princípio da proporcionalidade.
Para os defensores da tese do princípio da insignificância, este seria aplicável às hipóteses de apreensão de drogas em quantidades ínfimas, no âmbito de organizações militares, denotando destinarem-se ao consumo próprio. A aplicação desse princípio acarretaria o reconhecimento de atipicidade material da conduta.
Já os que defendem a tese de inconstitucionalidade do art. 290, CPM, argumentam que a norma viola os princípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, na medida em que não distingue as figuras do traficante e do usuário, viciado ou não, divergindo do tratamento conferido pela Lei nº 11.343/2006. Assim, o dispositivo legal em questão seria incompatível com a Constituição Federal e com as Convenções de Nova York e Viena.
O Superior Tribunal Militar rechaçou ambas as teses, desde o princípio, firmando-se no sentido da constitucionalidade do art. 290, CPM e da inaplicabilidade da Lei nº 11.343/2006 e do princípio da insignificância, conforme reiterados julgados, a exemplo das ementas adiante transcritas:
APELAÇÃO – SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE APREENDIDA EM LOCAL SUJEITO À ADMINISTRAÇÃO MILITAR – IDENTIFICAÇÃO MEDIANTE LAUDO PERICIAL COMO SENDO COCAÍNA – CONDENAÇÃO EM PRIMEIRA INSTÂNCIA COMO INCURSO NO ART. 290 DO CPM.
- Revista realizada no interior do alojamento – Apreensão de trouxinhas contendo cocaína – Droga de alta periculosidade quanto aos seus efeitos para a saúde – Lesão ao bem jurídico tutelado, Administração Militar, é à higidez mental e física do acusado.
- Princípio da proporcionalidade – Inaplicabilidade em razão da natureza da substância apreendida.
- Negado provimento ao recurso defensivo.
- Decisão unânime.
(Superior Tribunal Militar, Apelação FO 2008.01.050887-2/RS, Rel. Min. Carlos Alberto Marques Soares).[v] (grifos nossos).
APELAÇÃO. DEFESA. EX-SOLDADO DO EXÉRCITO. TRÁFICO, POSSE OU USO DE ENTORPECENTE OU SUBSTÂNCIA DE EFEITO SIMILAR (ART. 290 DO COM) LEI 11.343/2006. INAPLICABILIDADE NA JUSTIÇA CASTRENSE. ALEGAÇÃO DE PEQUENA QUANTIDADE. ARGUIÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL OU BAGATELA. INVIABILIDADE. ESPECIALIDADE DO DIREITO PENAL MILITAR. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA ISONOMIA.
I – Inaplicabilidade dos preceitos da Lei nº 11.343/2006 à Justiça Castrense, uma vez que o Direito Penal Militar é especial, apresentando diretrizes e princípios próprios, calcados na hierarquia e disciplina, de tal forma que prevalecem sobre as de Direito Penal Comum, que não as derroga nem ab-roga.
II – No que tange ao princípio da insignificância penal, não há que se falar na sua aplicação no âmbito do Direito Penal Militar, quando se tratar de crime de tráfico, posse ou uso de entorpecente, consoante firme e reiterada jurisprudência deste Tribunal.
III – Não há que se cogitar inconstitucionalidade do art. 290 do Código Penal Militar, face sua precedência à Constituição Federal em vigor.
IV – Sendo o Direito Penal Militar ramo especial do Direito, assim reconhecido pela própria Constituição Federal, a imposição de decreto condenatório, em razão de conduta tipificada pelo art. 290 do CPM, não viola o princípio da dignidade da pessoa humana. Tampouco o princípio da isonomia.
V – Apelo que se negou provimento.
VI – Decisão unânime.
(Superior Tribunal Militar. Apelação FO nº 2009-01.051296-9. Rel. Min. José Coêlho Ferreira).[vi] (grifos nossos).
O Supremo Tribunal Federal, no entanto, demorou um tempo até pacificar a questão. A Primeira Turma do STF proferiu julgados acompanhando o entendimento do STM. Vejamos:
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL MILITAR E PROCESSUAL PENAL MILITAR. PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE EM LUGAR SUJEITO À ADMINISTRAÇÃO MILITAR (ART. 290 DO CPM). NÃO-APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CRIMES RELACIONADOS A ENTORPECENTES. PRECEDENTES. INCONSTITUCIONALIDADE E REVOGAÇÃO TÁCITA DO ART. 290 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. NÃO-OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. É pacífica a jurisprudência desta Corte Suprema no sentido de não ser aplicável o princípio da insignificância ou bagatela aos crimes relacionados a entorpecentes, seja qual for a qualidade do condenado. 2. Não há relevância na argüição de inconstitucionalidade considerando o princípio da especialidade, aplicável, no caso, diante da jurisprudência da Corte. 3. Não houve revogação tácita do artigo 290 do Código Penal Militar pela Lei nº 11.343/06, que estabeleceu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, bem como normas de prevenção ao consumo e repressão à produção e ao tráfico de entorpecentes, com destaque para o art. 28, que afasta a imposição de pena privativa de liberdade ao usuário. Aplica-se à espécie o princípio da especialidade, não havendo razão para se cogitar de retroatividade da lei penal mais benéfica. 4. Habeas corpus denegado e liminar cassada.
(Supremo Tribunal Federal. 1ª Turma. HC 91.759/MG, Rel. Min. Menezes Direito, Publicação DJe: 29/11/2007).[vii] (grifos nossos).
HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE PARA USO PRÓPRIO PREVISTO NA LEI N. 11.343/06: LEI MAIS BENÉFICA. NÃO-APLICAÇÃO EM LUGAR SUJEITO À ADMINISTRAÇÃO MILITAR: ART. 290 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. O art. 290 do Código Penal Militar não sofreu alteração em razão da superveniência da Lei n. 11.343/06, por não ser o critério adotado, na espécie, o da retroatividade da lei penal mais benéfica, mas sim o da especialidade. O cuidado constitucional do crime militar - inclusive do crime militar impróprio de que aqui se trata - foi previsto no art. 124, parágrafo único, da Constituição da República. Com base nesse dispositivo legitima-se, o tratamento diferenciado dado ao crime militar de posse de entorpecente, definido no art. 290 do Código Penal Militar. 2. A jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal é no sentido de reverenciar a especialidade da legislação penal militar e da justiça castrense, sem a submissão à legislação penal comum do crime militar devidamente caracterizado. 3. Habeas corpus denegado.
(Supremo Tribunal Federal. 1ª Turma. HC 91.767/SP, Rel. Min. Carmen Lúcia, Publicação DJe: 10/10/2007).[viii] (grifos nossos).
A Segunda Turma do STF, no entanto, firmara entendimento diametralmente oposto ao do STM, admitindo a incidência do princípio da insignificância, decorrente do princípio da proporcionalidade, aos crimes de posse de substância entorpecente em quantidade ínfima, mesmo em lugar sujeito à administração militar, conforme julgados a seguir transcritos:
CRIME MILITAR (CPM, ART. 290) - PORTE (OU POSSE) DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE - QUANTIDADE ÍNFIMA - USO PRÓPRIO - DELITO PERPETRADO DENTRO DE ORGANIZAÇÃO MILITAR - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - APLICABILIDADE - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - PEDIDO DEFERIDO. - Aplica-se, ao delito castrense de porte (ou posse) de substância entorpecente, desde que em quantidade ínfima e destinada a uso próprio, ainda que cometido no interior de Organização Militar, o princípio da insignificância, que se qualifica como fator de descaracterização material da própria tipicidade penal. Precedentes.
(Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. HC 97.131/RS, Rel. Min. Celso de Mello, Publicação DJe: 26/08/2010).[ix] (grifos nossos).
CRIME MILITAR (CPM, ART. 290) - POSSE (OU PORTE) DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE - QUANTIDADE ÍNFIMA - USO PRÓPRIO - DELITO PERPETRADO DENTRO DE ORGANIZAÇÃO MILITAR - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - APLICABILIDADE - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - PEDIDO DEFERIDO. - Aplica-se, ao delito castrense de posse (ou porte) de substância entorpecente, desde que em quantidade ínfima e destinada a uso próprio, ainda que cometido no interior de Organização Militar, o princípio da insignificância, que se qualifica como fator de descaracterização material da própria tipicidade penal. Precedentes.
(Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. HC 101.759/MG, Rel. Min. Celso de Mello, Publicação DJe: 26/08/2010).[x] (grifos nossos).
A questão somente foi pacificada no STF com o julgamento do HC 103.684/DF, oportunidade em que o Plenário decidiu pela impossibilidade de aplicação do mencionado princípio aos casos de posse de reduzida quantidade de entorpecente em unidade militar, nos termos da ementa a seguir transcrita:
HABEAS CORPUS. CRIME MILITAR. CONSCRITO OU RECRUTA DO EXÉRCITO BRASILEIRO. POSSE DE ÍNFIMA QUANTIDADE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE EM RECINTO SOB ADMINISTRAÇÃO CASTRENSE. INAPLICABILIDADE DO POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL. INCIDÊNCIA DA LEI CIVIL Nº 11.343/2006. IMPOSSIBILIDADE. RESOLUÇÃO DO CASO PELO CRITÉRIO DA ESPECIALIDADE DA LEGISLAÇÃO PENAL CASTRENSE. ORDEM DENEGADA. 1. A questão da posse de entorpecente por militar em recinto castrense não é de quantidade, nem mesmo do tipo de droga que se conseguiu apreender. O problema é de qualidade da relação jurídica entre o particularizado portador da substância entorpecente e a instituição castrense de que ele fazia parte, no instante em que flagrado com a posse da droga em pleno recinto sob administração militar. 2. A tipologia de relação jurídica em ambiente castrense é incompatível com a figura da insignificância penal, pois, independentemente da quantidade ou mesmo da espécie de entorpecente sob a posse do agente, o certo é que não cabe distinguir entre adequação apenas formal e adequação real da conduta ao tipo penal incriminador. É de se pré-excluir, portanto, a conduta do paciente das coordenadas mentais que subjazem à própria tese da insignificância penal. Pré-exclusão que se impõe pela elementar consideração de que o uso de drogas e o dever militar são como água e óleo: não se misturam. Por discreto que seja o concreto efeito psicofísico da droga nessa ou naquela relação tipicamente militar, a disposição pessoal em si para manter o vício implica inafastável pecha de reprovabilidade cívico-funcional. Senão por afetar temerariamente a saúde do próprio usuário, mas pelo seu efeito danoso no moral da corporação e no próprio conceito social das Forças Armadas, que são instituições voltadas, entre outros explícitos fins, para a garantia da ordem democrática. Ordem democrática que é o princípio dos princípios da nossa Constituição Federal, na medida em que normada como a própria razão de ser da nossa República Federativa, nela embutido o esquema da Tripartição dos Poderes e o modelo das Forças Armadas que se estruturam no âmbito da União. Saltando à evidência que as Forças Armadas brasileiras jamais poderão garantir a nossa ordem constitucional democrática (sempre por iniciativa de qualquer dos Poderes da República), se elas próprias não velarem pela sua peculiar ordem hierárquico-disciplinar interna. 3. A hierarquia e a disciplina militares não operam como simples ou meros predicados institucionais das Forças Armadas brasileiras, mas, isto sim, como elementos conceituais e vigas basilares de todas elas. Dados da própria compostura jurídica de cada uma e de todas em seu conjunto, de modo a legitimar o juízo técnico de que, se a hierarquia implica superposição de autoridades (as mais graduadas a comandar, e as menos graduadas a obedecer), a disciplina importa a permanente disposição de espírito para a prevalência das leis e regulamentos que presidem por modo singular a estruturação e o funcionamento das instituições castrenses. Tudo a encadeadamente desaguar na concepção e prática de uma vida corporativa de pinacular compromisso com a ordem e suas naturais projeções factuais: a regularidade, a normalidade, a estabilidade, a fixidez, a colocação das coisas em seus devidos lugares, enfim. 4. Esse maior apego a fórmulas disciplinares de conduta não significa perda do senso crítico quanto aos reclamos elementarmente humanos de se incorporarem ao dia-a-dia das Forças Armadas incessantes ganhos de modernidade tecnológica e arejamento mental-democrático. Sabido que vida castrense não é lavagem cerebral ou mecanicismo comportamental, até porque – diz a Constituição – “às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar” (§ 1º do art. 143). 5. O modelo constitucional das Forças Armadas brasileiras abona a idéia-força de que entrar e permanecer nos misteres da caserna pressupõe uma clara consciência profissional e cívica: a consciência de que a disciplina mais rígida e os precisos escalões hierárquicos hão de ser observados como carta de princípios e atestado de vocação para melhor servir ao País pela via das suas Forças Armadas. Donde a compatibilidade do maior rigor penal castrense com o modo peculiar pelo qual a Constituição Federal dispõe sobre as Forças Armadas brasileiras. Modo especialmente constitutivo de um regime jurídico timbrado pelos encarecidos princípios da hierarquia e da disciplina, sem os quais não se pode falar das instituições militares como a própria fisionomia ou a face mais visível da idéia de ordem. O modelo acabado do que se poderia chamar de “relações de intrínseca subordinação”. 6. No caso, o art. 290 do Código Penal Militar é o regramento específico do tema para os militares. Pelo que o princípio da especialidade normativo-penal impede a incidência do art. 28 da Lei de Drogas (artigo que, de logo, comina ao delito de uso de entorpecentes penas restritivas de direitos). Princípio segundo o qual somente a inexistência de um regramento específico em sentido contrário ao normatizado na Lei 11.343/2006 é que possibilitaria a aplicação da legislação comum. Donde a impossibilidade de se mesclar esse regime penal comum e o regime penal especificamente castrense, mediante a seleção das partes mais benéficas de cada um deles, pena de incidência em postura hermenêutica tipificadora de hibridismo ou promiscuidade regratória incompatível com o princípio da especialidade das leis. 7. Ordem denegada.
(Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. HC 103.684/DF, Rel. Min. Ayres Britto, Publicação DJe: 12/04/2011).[xi] (grifos nossos).
Conforme ressaltado no voto do Ministro Relator Ayres Britto, no HC 103.684/DF, “[...] o uso de drogas e o dever militar são como água é óleo: não se misturam”.
Com efeito, apesar da divergência inicial, o entendimento pacificado no STF, atualmente, é no sentido de que o Direito Penal Militar, por ser um direito penal especial, prevalece sobre as normas de caráter geral, como é o caso da Lei nº 11.343/2006.
Assim, o art. 290 do CPM é a norma aplicável aos militares, que têm deveres diferenciados para com o Estado.
3. CONCLUSÃO
O Plenário do STF, acompanhado o entendimento da Justiça Castrense, consolidou a ideia de que a condição de militar do agente não pode ser ignorada pelo Poder Judiciário, de modo que não há que se falar em tratamento isonômico entre civis e militares. Civis e militares não são equiparáveis.
Assim, resta consagrado o entendimento de que o art. 290 do CPM está revestido pelo princípio da especialidade, o que impede a aplicação do art. 28 da Lei nº 11.343/2011, que é norma de caráter geral.
Considerando, portanto, que as teses de inconstitucionalidade do art. 290 do CPM e de aplicação do princípio da insignificância não prosperaram, não há que se cogitar a descriminalização ou mesmo despenalização do porte de drogas, para consumo próprio, no âmbito das organizações militares.
Afinal, a legislação penal militar, enquanto ramo específico do ordenamento jurídico brasileiro, deve resguardar os maiores vetores das organizações militares, quais sejam, a hierarquia e disciplina – o que seria fatalmente prejudicado pela indevida aplicação do art. 28 da Lei nº 11.343/2006, no âmbito das organizações militares.
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
[i] GOMES, Luiz Flávio; SANCHES, Rogério Cunha. Posse de drogas para consumo pessoal: crime, infração penal "sui generis" ou infração administrativa? Disponível em: http://www.lfg.com.br. 12 dez. 2006. Acesso em: 11 jun. 2015.
[ii] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 430.105 - QO/RJ. Relator(a): Ministro Sepúlveda Pertence. Julgamento: 13/02/2007 Órgão Julgador: STF T1 – PRIMEIRA TURMA Publicação DJ: 27/04/2007.
[iii] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 430.105 - QO/RJ. Relator(a): Ministro Sepúlveda Pertence. Julgamento: 13/02/2007 Órgão Julgador: STF T1 – PRIMEIRA TURMA Publicação DJ: 27/04/2007.
[iv] BRASIL. Código Penal Militar. Disponível em <http:// http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1001.htm>. Acesso em 12/06/2015.
[v] BRASIL. Superior Tribunal Militar. Apelação FO 2008.01.050887-2/RS. Relator(a): Ministro Carlos Alberto Marques Soares. Julgamento: 16/09/2008 Publicação DJ: 31/10/2008.
[vi] BRASIL. Superior Tribunal Militar. Apelação FO 2009.01.051296-9. Relator(a): Ministro José Coêlho Ferreira. Julgamento: 09/09/2009 Publicação DJ: 29/10/2009.
[vii] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 91.759/MG. Relator(a): Ministro Menezes Direito. Julgamento: 09/10/2007 Órgão Julgador: STF T1 – PRIMEIRA TURMA Publicação DJe: 29/11/2007.
[viii] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 91.767/SP. Relator(a): Ministra Carmen Lúcia. Julgamento: 04/09/2007 Órgão Julgador: STF T1 – PRIMEIRA TURMA Publicação DJe: 10/10/2007.
[ix] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 97.131/RS. Relator(a): Ministra Celso de Melo. Julgamento: 10/08/2010 Órgão Julgador: STF T2 – SEGUNDA TURMA Publicação DJe: 26/08/2010.
[x] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 101.759/MG. Relator(a): Ministra Celso de Melo. Julgamento: 10/08/2010 Órgão Julgador: STF T2 – SEGUNDA TURMA Publicação DJe: 26/08/2010.
[xi] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 103.684/DF. Relator(a): Ministra Ayres Britto. Julgamento: 21/10/2010 Órgão Julgador: STF – PLENO Publicação DJe: 12/04/2011.
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal (UDF). Delegado de Polícia Civil do Distrito Federal. Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade Projeção. Pós-graduado em Gestão de Polícia Civil pela Universidade Católica de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SALES, Alexandre Pereira. A Despenalização do Uso de Entorpecentes e o Código Penal Militar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jun 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44616/a-despenalizacao-do-uso-de-entorpecentes-e-o-codigo-penal-militar. Acesso em: 23 dez 2024.
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