A subtração de peças de um veículo no valor de R$ 4 autoriza a aplicação do princípio da insignificância? Nem tudo que parece coisa óbvia para qualquer cidadão do povo é tão evidente assim na Justiça criminal brasileira. Por unanimidade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu (em 2/6/15) o Habeas Corpus 126.866, impetrado pela Defensoria Pública da União (DPU), em favor de um condenado por furto de duas peças de automóvel avaliadas em R$ 4.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJ-MG) não concordou com a aplicação do princípio da insignificância, porque o autor do fato já tinha registro de condenação criminal por homicídio, transitada em julgado. Esse homicídio acabou gerando para o réu “uma dupla” punição (violação do princípio do bis in idem). O réu, em virtude da subtração de R$ 4, “foi preso em flagrante e denunciado pela prática de furto qualificado pelo concurso de agentes (artigo 155, parágrafo 4º, inciso IV, do Código Penal). Em primeira instância foi absolvido, mas o Ministério Público interpôs apelação, provida pelo TJ-MG, que aplicou pena de 2 anos e 4 meses de reclusão, em regime semiaberto. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou seu recurso especial”.
O relator do HC no STF, o ministro Gilmar Mendes, com muita precisão observou que não há qualquer vínculo entre a natureza dos delitos. Daí a impossibilidade de a condenação por crime anterior impedir a aplicação do princípio da insignificância. Em março de 2015 referido ministro já tinha impedido o início da execução da pena (de mais de 2 anos). A jurisprudência das duas Turmas do STF é no sentido de afastar a aplicação do principio da insignificância aos acusados reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada. Contudo, explicou o ministro, “no caso em julgamento, embora o réu já tivesse cumprido pena por homicídio, não era possível identificar a característica do criminoso contumaz, uma vez que os delitos são de natureza diversa e não guardam entre si qualquer vínculo”.
O delito contra a vida praticado anteriormente pelo réu não o torna reincidente específico nos crimes contra o patrimônio. Não deveria o não TJ-MG ter chegado à conclusão de que ele seria afeito à prática de crimes. Lembrou ainda que, à época do furto, o réu encontrava-se em liberdade condicional e foi preso em flagrante, permanecendo sob custódia cautelar por sete meses, “mesmo diante da possibilidade da insignificância”. O relator, com todo acerto, votou pela concessão do HC para determinar a aplicação do princípio da insignificância e o consequente trancamento da ação penal.
O ministro Gilmar Mendes reconheceu, no caso, a bagatela própria (o crime já nasceu bagatelar, consoante a sua adequada visão). Não fosse o caso da bagatela própria, deveria incidir (in extremis) a bagatela imprópria, que ocorre quando o crime não nasce bagatelar, mas suas consequências são tão desproporcionais que tornam a pena final desnecessária. Quem fica sete meses preso por uma subtração de R$ 4, mesmo sendo reincidente genérico, não merece mais nenhum tipo de pena. A desnecessidade da pena, prevista no art. 59 do CP e ancorada na doutrina de Roxin, constitui a base teórica para o juiz julgar extinta a punibilidade do agente, como se faz no caso do perdão judicial. Por um caminho ou por outro o absurdo (desproporcional e desarrazoado) é um juiz condenar criminalmente uma pessoa pela subtração de um objeto de R$ 4. O bom senso faz parte do cabedal intelectual dos bons juízes.
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