RESUMO: Trata-se de breve reflexão sobre a aplicação da multiparentalidade como forma de resolução dos conflitos decorrentes da coexistência de diferentes filiações, que podem ser registral, biológica ou socioafetiva. É o que ocorre, por exemplo, nos casos em que a paternidade ou a maternidade biológicas ou registrais não são coincidentes as socioafetivas. Como é sabido o conceito de família sofreu mudanças ao longo da história da sociedade, o que inevitavelmente trouxe um formato distinto para a filiação, bem como teve repercussão constitucional. A nova perspectiva da família prevista na Constituição Federal de 1988, especialmente em seu artigo 226, passou a ser de uma comunidade fundada na igualdade e no afeto. Por conseguinte, a relações familiares passaram a ser respaldadas não só no vínculo biológico, mas como também na valorização do afeto existente entre os indivíduos.
Palavras-chave: Família. Filiação. Afetividade. Multiparentalidade.
O conceito de família ao longo da história vem sendo modificado diante da constante alteração da realidade contemporânea social que vem paulatinamente rompendo os antigos paradigmas, o que tem repercutido na delimitação dos critérios de classificação da filiação.
Por conseguinte, esta pesquisa objetivou a análise da filiação sob o prisma dos critérios registral, biológico e socioafetivo, para, então, verificar a aplicação do instituto da multiparentalidade como forma de resolução dos conflitos nas hipóteses em que diferentes filiações coincidam em uma única pessoa, o que é possível quando a filiação biológica ou registral não for igual a socioafetiva.
Nesta perspectiva, abordou-se na fase propedêutica o conceito constitucional de família, dando-se enfoque aos princípios expressos na Constituição Federal e, em especial, ao fenômeno da afetividade como um princípio implícito e fundamental para a compreensão das relações familiares atuais.
Na sequência, os critérios determinantes de filiação foram destacados, são eles: critério legal, critério biológico e critério socioafetivo ou da desbiologização. E, ao final, a pesquisa foi arrematada com breves considerações acerca da possibilidade da aplicação da multiparentalidade, ou seja, da coexistência harmoniosa de plurais paternidades e/ou maternidades.
1 PREVISÃO CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE FAMÍLIA E SEUS PRINCÍPIOS NORTEADORES
A promulgação da Constituição Federal de 1988 consistiu em um marco importante e decisivo para as transformações dos valores da sociedade, o que repercutiu no conceito de família. Merece especial destaque o artigo 226 que estabeleceu em seu caput um conceito plural e indeterminado de família, resultando em uma verdadeira cláusula geral de inclusão. A partir de então, não mais importa o modo de formatação do instituto familiar para que este desfrute de proteção constitucional. (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p.44).
O novo paradigma conceitual das relações familiares decorreu da própria evolução dos valores da sociedade, que são reflexos do desenvolvimento tecnológico, dos avanços científicos, da globalização, das alterações econômicas e financeiras, da flexibilização de moralismos culturais instituídos, dentre tantos outros.
Acerca do assunto os doutrinadores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald nos ensinam sabiamente que “a transição da família como unidade econômica para uma compreensão igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma nova feição, agora fundada no afeto”. (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p.06).
A instituição atual da família tem um caráter instrumental uma vez que visa a promoção do desenvolvimento da personalidade de seus membros, segundo o qual, ela deixa de ser o fim almejado para tornar-se o meio pelo qual seus integrantes venham a prosperar enquanto seres humanos.
Assim, a proteção jurídica da família deslocou-se da instituição para o sujeito como se insere na primeira parte do § 8º do art. 226 da CF, in verbis: “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos componentes”.
Corroborando tal visão, Maria Helena Diniz (2007, p. 13) conceitua a família como “o instrumento para a realização integral do ser humano” e Paulo Luiz Netto Lôbo (2008, p.62) agrega que “não é a família per si que é constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana”.
Diante da nova perspectiva familiar, as aspirações jurídicas passaram a ser direcionadas à busca da felicidade dos indivíduos, é a denominada família eudemonista, que, por sua vez, está fundamentada nas relações de afeto, de solidariedade e de cooperação.
O atual conceito de família é norteado por princípios expressamente previsto na Constituição Federal, tais como: o da Dignidade da Pessoa Humana previsto no 1º artigo, inciso III, o do Pluralismo das Entidades Familiares nos termos do art.226, nos parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º e o da Solidariedade Familiar, o da Paternidade Responsável de acordo com art. 226, § 7º e o da Convivência Familiar insculpido no art. 227, caput.
Além dos princípios expressos, tem-se o Princípio da Afetividade, que embora não tenha previsão no texto constitucional, ele foi contemplado implicitamente pela Constituição e é, hoje, o principal fundamento das relações familiares.
Nesta esteira, Lôbo (2008, p. 36 e 47) explica que:
Os princípios constitucionais são expressos ou implícitos. Estes últimos podem derivar da interpretação harmonizadora de normas constitucionais específicas (por exemplo, o princípio da afetividade)”. Sendo que, conclui, “o princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico.
Ainda sobre o enquadramento constitucional do princípio em comento, afirma LÔBO (2002):
Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de afeto, após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procracionais, econômicas, religiosas e políticas.
Ademais, há que se abandonar esta maior ênfase atribuída ao biologismo da paternidade, tão comum nos países latinos, e considerá-la no âmbito da proteção e carinho dedicados a alguém que, por opção, escolheu como filho. Há que se considerar, sobretudo, a ‘paternidade social’, nitidamente configurada na relação familiar decorrente da inseminação artificial e da adoção (LÔBO, 2008, p. 42).
No mesmo sentido, Tartuce e Simão (2010, p.47) ressaltam que:
O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto do texto maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade da pessoa humana.
Observa-se, pois, que a Constituição Federal atribuiu, explicitamente, a este princípio um valor incomensurável, de sorte que proporcionou reconhecimento legal e jurídico às relações de parentesco consubstanciadas na afetividade e em contrapartida relativizou a supremacia do vínculo genético.
Ademais, observa-se que as decisões proferidas por magistrados de todo o país tem aplicado o princípio afetividade, dentre elas, destaca-se o trecho do Informativo nº 407 do Supremo Tribunal de Justiça:
(...) O que deve balizar o conceito de “família” é, sobre tudo, o princípio da afetividade, que “fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico (...) (STJ, REsp n. 945.283, Rio Grande do Norte. Rel. Luis Felipe Salomão, j. em 15/09/2009)
Registra-se que o princípio da afetividade tem grande impacto nos critérios de determinação da filiação, conforme se analisará na sequência.
2 FILIAÇÃO E SEUS CRITÉRIOS DETERMINANTES
A filiação no Código Civil de 1.916 era regida pela conhecida presunção pater is est, pela qual atribuía-se a paternidade ao marido da mulher cujos filhos foram gerados na constância do casamento e os oriundos de relações não matrimoniais eram apenas considerados ilegítimos e ignorados pelo ordenamento jurídico.
Na concepção atual, sobretudo em observância aos princípios constitucionais que regem as relações familiares já explanados neste trabalho, a filiação se origina da relação de parentesco estabelecida entre dois indivíduos, na qual um é tido como filho do outro, podendo ser mãe ou pai, independentemente da existência ou não de vínculo biológico.
Dentro desse novo cenário, todas as modalidades de filiação são equiparadas e igualmente protegidas, não importando se o vínculo paternal se formou por mecanismos biológicos, por adoção, por fertilização medicamente assistida ou pela pura e simples concretização do elo afetivo da condição paterno-filial.
Sobre o assunto, vale a pena citar a definição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p.564):
Assim, sob o ponto de vista técnico-jurídico, a filiação é a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que estão no primeiro grau, em linha reta entre uma pessoa e aqueles que a geraram ou que a acolheram e criaram, com base no afeto e na solidariedade , almejando o desenvolvimento da personalidade e da realização pessoal. (FARIAS; ROSENVALD 2011, p.564).
Dessa forma, considerando-se a amplitude do contemporâneo conceito de filiação e as múltiplas e plurais variações de possibilidades de constituição dos vínculos filiais, necessária se torna a análise dos critérios determinantes de filiação, são eles: critério legal, critério biológico e critério socioafetivo ou da desbiologização.
O primeiro critério é o legal, no qual a paternidade é reconhecida de acordo com aquilo que estiver estabelecido pela lei. É a presunção pater is est quem justae nuptiae demonstrant que consiste na máxima de que os filhos concebidos na constância do matrimônio presumir-se-ão descendentes do marido da mãe.
No ordenamento jurídico pátrio, tal presunção é consagrada pelo artigo 1.597 do vigente Código Civil (2002), o qual dispõe:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I- nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II- nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III- havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários,
decorrentes de concepção artificial homóloga;
V- havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Contudo, apesar desse critério decorrer imperativamente da lei, as hipóteses de presunções por ele abarcadas são relativizadas pelo critério biológico, que se baseia nos métodos de sequenciamento do genoma humano, que são cientificamente confiáveis e têm inexpressiva margem de erro.
Importa, ainda, destacar que ante ao alto grau de certeza técnica conferido ao exame de DNA, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 301, in verbis, “em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”.
Por fim, chega-se ao critério da verdade afetiva que reside, substancialmente, na posse do estado de filiação, que, por sua vez, consiste na situação fática na qual uma pessoa desfruta do status de filho em relação à outra pessoa, independentemente dessa situação corresponder à realidade legal. (LÔBO, 2008, p.210).
A filiação socioafetiva é sedimentada através do amor, afetividade e cuidado, sendo que todos esses elementos são imprescindíveis na definição da personalidade da criança e na formação da sua identidade, bem como na caracterização das verdadeiras relações filiais.
O estado de filho é definido por Fujita (2011, p.115):
[...] se traduz pela demonstração diuturna e contínua da convivência harmoniosa dentro da comunidade familiar, pela conduta afetiva dos pais em relação ao filho e vice-versa, pelo exercício dos direitos e deveres inerentes ao poder familiar, visando ao resguardo, sustento, educação e assistência material e imaterial do filho.
De sorte que o artigo 1.593 do Código Civil de 2002 merece especial destaca posto que dispõe: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”.
É no elemento normativo “outra origem” que está a lacuna a ser preenchida pelas novas modalidades de filiação, abarcando critérios que sejam diferentes do legal ou do biológico ou da registralidade e, permitindo assim, a contemplação do critério afetivo.
Nesta esteira, Dias (2010, p.363) atesta que “a filiação que resulta da posse de estado de filho constitui modalidade de parentesco civil de ‘outra origem’, isto é, de origem afetiva (CC 1.593)”.
Apesar de ainda não haver na legislação brasileira a filiação socioafetiva, a doutrina e a jurisprudência vem reconhecimento dos laços de afeto.
Nesse contexto, a filiação socioafetiva, que encontra alicerce no art. 227, § 6º, da CF/88, envolve não apenas a adoção, como também ‘parentescos de outra origem’, conforme introduzido pelo art. 1.593 do CC/02, além daqueles decorrentes da consanguinidade oriunda da ordem natural, de modo a contemplar a socioafetividade surgida como elemento de ordem cultural. (STJ, AC. unân.3ªT., REsp 1000356/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j.25.5.10, DJe 7.6.10)
Verifica-se, portanto, que perante as mudanças no Direito das Famílias, as relações familiares baseadas na existência do vínculo socioafetivo passaram a embasar a doutrina especializada e as decisões judiciais.
A progressiva valorização do afeto nas relações familiares acarretou uma mudança de paradigma, ou seja, a figura de pai e de mãe vem se desvinculando do sujeito determinado, ou seja, aquele que carrega a carga genética do filho ou que consta em seu registro de nascimento.
Nos dias atuais é possível detectar a filiação socioafetiva em inúmeras situações, como por exemplo na adoção (tradicional, “a brasileira” ou homoafetiva), na técnica de reprodução assistida heteróloga, nos filhos “de criação” e na originária da posse do estado de filho. (FUJITA, 2011).
3 A APLICAÇÃO DA MULTIPARENALIDADE OU MULTIPLICIDADE PARENTAL
Após as breves ponderações tecidas acerca do conceito constitucional e princípios atinentes à família, bem como as novas delimitação da filiação, chega-se a temática central do presente estudo que almeja refletir sobre a aplicação da multiparentalidade face ao reconhecimento das relações socioafetivas, que nem sempre são coincidentes com as estabelecidas pelo vínculo biológico ou registral, e é de vital importância para a garantia dos direitos de família.
A multiparentalidade ou multiplicidade parental vem ocorrendo de forma crescente nos dias atuais, independentemente da existência ou não de prescrição normativa, caracterizando-se como um fenômeno sociológico contemporâneo.
Como é o caso, por exemplo, das famílias recompostas que são formadas por pessoas que antes integravam outras entidades familiares, visto que o padrasto e a madrasta inevitavelmente exercem a função de pai e mãe, sem que os genitores biológicos deixem de desempenhar suas atribuições.
Assim, o desafio do Direito de Família, neste atual momento, revela-se em estender a proteção jurídica hoje destinada à filiação singular aos plurais vínculos filiais que empiricamente venham a ocorrer no caso concreto.
A multiparentalidade tornou-se uma realidade no ordenamento jurídico brasileiro a partir da compreensão de que a paternidade e a maternidade são funções exercidas. Com isto desenvolveu-se em nossa doutrina e foi absorvida pela jurisprudência a compreensão da filiação afetiva. (PEREIRA, 2013, online).
Nesse sentido, ressalta-se os nobres ensinamentos do trecho do Informativo nº 0552 de 17 de dezembro de 2014 do Superior Tribunal Justiça:
Efetivamente, em atenção às novas estruturas familiares, baseadas no princípio da afetividade jurídica (a permitir, em última análise, a realização do indivíduo como consectário da dignidade da pessoa humana), a coexistência de relações filiais ou a denominada multiplicidade parental, compreendida como expressão da realidade social, não pode passar despercebida pelo direito. (Negrito e grifo nossos).
Ademais, existem entendimentos jurisprudenciais recentes reconhecendo a multiparentalidade ou multiplicidade de parental com base nos princípios da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança e do adolescente. Vejamos:
APELAÇÃO CÍVEL. DECLARATÓRIA DE MULTIPARENTALIDADE. REGISTRO CIVIL. DUPLA MATERNIDADE E PATERNIDADE. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. INOCORRÊNCIA. JULGAMENTO DESDE LOGO DO MÉRITO. APLICAÇÃO ARTIGO 515, § 3º DO CPC. A ausência de lei para regência de novos - e cada vez mais ocorrentes - fatos sociais decorrentes das instituições familiares, não é indicador necessário de impossibilidade jurídica do pedido. É que "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil). Caso em que se desconstitui a sentença que indeferiu a petição inicial por impossibilidade jurídica do pedido e desde logo se enfrenta o mérito, fulcro no artigo 515, § 3º do CPC. Dito isso, a aplicação dos princípios da "legalidade", "tipicidade" e "especialidade", que norteiam os "Registros Públicos", com legislação originária pré-constitucional, deve ser relativizada, naquilo que não se compatibiliza com os princípios constitucionais vigentes, notadamente a promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo ou qualquer outra forma de discriminação (artigo 3, IV da CF/88), bem como a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (artigo 227, § 6º, CF), "objetivos e princípios fundamentais" decorrentes do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Da mesma forma, há que se julgar a pretensão da parte, a partir da interpretação sistemática conjunta com demais princípios infra-constitucionais, tal como a doutrina da proteção integral o do princípio do melhor interesse do menor, informadores do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como, e especialmente, em atenção do fenômeno da afetividade, como formador de relações familiares e objeto de proteção Estatal, não sendo o caráter biológico o critério exclusivo na formação de vínculo familiar. Caso em que no plano fático, é flagrante o ânimo de paternidade e maternidade, em conjunto, entre o casal formado pelas mães e do pai, em relação à menor, sendo de rigor o reconhecimento judicial da "multiparentalidade", com a publicidade decorrente do registro público de nascimento. DERAM PROVIMENTO. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70062692876, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Pedro de Oliveira Eckert, Julgado em 12/02/2015). Negritos nossos.
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE BIOLÓGICA. CRIANÇA SUPOSTAMENTE CONCEBIDA EM RELAÇÃO ADULTERINA. MÃE CASADA DESDE O ANO DE 1999 COM O PAI REGISTRAL. SENTENÇA TERMINATIVA. DECRETAÇÃO DE CARÊNCIA DE AÇÃO POR ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO PAI BIOLÓGICO E IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO, ANTE A EXISTÊNCIA DE PAI REGISTRAL E AFETIVO (MARIDO DA MÃE). RECURSO DO AUTOR. PLEITO PELA ANULAÇÃO DA SENTENÇA. ALEGAÇÃO DE SER LEGITIMADO A PROPOR AÇÃO VISANDO O RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE DO FILHO BIOLÓGICO. SUBSISTÊNCIA. VINCULAÇÃO BIOLÓGICA COMPROVADA POR EXAME GENÉTICO EXTRAJUDICIAL NÃO IMPUGNADO. LEGITIMAÇÃO AD CAUSAM DA PESSOA NATURAL QUE SE CONSIDERA PAI DO INDIVÍDUO PARA IMPUGNAR A VERACIDADE DO REGISTRO CIVIL, E O ESTADO DE FILIAÇÃO POR ELE PUBLICIZADO. DIREITO PERSONALÍSSIMO DOS SUJEITOS DIRETAMENTE ENVOLVIDOS NA RELAÇÃO PARENTAL. EXEGESE DO ARTIGO 27 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. EXISTÊNCIA DE LAÇOS AFETIVOS COM O PAI REGISTRAL, ADEMAIS, QUE NÃO SE AFIGURA OBSTÁCULO INTRANSPONÍVEL AO RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. POSSIBILIDADE DO REGISTRO CIVIL DA MULTIPARENTALIDADE. RECURSO PROVIDO. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM, INTERESSE DE AGIR E POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO RECONHECIDAS. SENTENÇA CASSADA. - Segundo o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito ao reconhecimento do estado de filiação é personalíssimo. Isso significa que tão-somente os sujeitos diretamente vinculados à relação parental sub examine detém legitimidade para reclamar a intervenção judicial nos registro públicos de nascimento. O texto do referido diploma legal não circunscreve à pessoa do filho o direito de perseguir o (re)conhecimento de sua verdade familiar biológica ou afetiva (declaração de posse do estado de filho), mas significa igualmente poder o pai biológico ou afetivo buscar o reconhecimento judicial dessa situação. (TJSC, Apelação Cível n. 2011.021277-1, de Jaraguá do Sul, rel. Des. Denise Volpato, j. 14-05-2013). Negritos nossos.
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE REGISTRO CIVIL - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA - REQUERENTE QUE EM IDADE ADULTA TOMA CONHECIMENTO DE QUE SEU PAI BIOLÓGICO SERIA DIVERSO DO PAI REGISTRAL - EXISTÊNCIA DE VÍNCULO SOCIOAFETIVO COM O PAI REGISTRAL QUE NÃO TEM O CONDÃO DE EXTIRPAR DA REQUERENTE O DIREITO AO CONHECIMENTO DE SUA ORIGEM GENÉTICA - PRECEDENTES - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - RECUSA DO INVESTIGADO EM SE SUBMETER AO EXAME DE DNA - FATOR QUE, ALIADO ÀS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO, IMPORTA NA PRESUNÇÃO DE EXISTÊNCIA DE VÍNCULO DE PATERNIDADE BIOLÓGICA - SÚMULA 301 DO STJ - IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE NULIDADE DO REGISTRO PELO PAI REGISTRAL ANTE A EXISTÊNCIA DE VÍNCULO SOCIOAFETIVO - RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE - SENTENÇA REFORMADA - PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INVESTIGATÓRIO - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO DECLARATÓRIO DE NULIDADE - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. TJPR, Processo: 1244540-2, Acórdão: 34712, rel. Des. Denise Kruger Pereira, j.04/02/2015). Negritos nossos.
Verifica-se que, embora não tenha previsão legal, é estreme de dúvida que a proteção constitucional alcança tal instituto através dos princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade familiar, do pluralismo das entidades familiares, da paternidade responsável e, fundamentalmente, da afetividade, que convergem todos na direção da aceitação da acumulação de parentalidades.
Por último, enfatiza-se que, a aplicação da multiparentalidade assegurará às pessoas envolvidas todos os direitos e deveres inerentes à filiação assegurados, tais como o vínculo de parentesco, o nome de família, os alimentos, a guarda do menor, o regime de visitas e a herança.
CONCLUSÃO
O presente trabalho teve por escopo ressaltar que o conceito de família sofreu transformações ao longo da história, implicando em profundas mudanças nas questões concernentes à filiação, isto porque atualmente é incontroversa a importância da afetividade nas relações familiares, independentemente do vínculo biológico.
A Constituição Federal de 1988 é a responsável direta por esta conquista uma vez que insculpiu em seu texto normativo os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade familiar, do pluralismo das entidades familiares, da convivência familiar, da paternidade responsável e, implicitamente, da afetividade.
Por conseguinte, as relações familiares socioafetivas passaram a receber a mesma proteção constitucional dirigida às biológicas e a serem respaldadas na valorização jurídica do afeto. Entretanto, embora não haja qualquer distinção quanto à qualidade de filho, contemporaneamente a filiação vem recebendo diferentes classificações de acordo com o critério que se adote em sua determinação, quais sejam: o registral, o biológico e o afetivo.
Nesse contexto, surge a multiparentalidade como solução para as hipóteses em que, independentemente da existência de previsão legal, ela efetivamente está caracterizada, ou seja, quando na realidade fática se verifica que uma pessoa possui dois diferentes pais ou mães. Tal opção privilegia a prevalência absoluta dos interesses da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana pela dupla oferta de afeto e garantias emanadas dos efeitos jurídicos decorrentes da filiação.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Letícia Figueiredo de. A aplicação da multiparentalidade face ao reconhecimento das relações familiares socioafetivas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jun 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44635/a-aplicacao-da-multiparentalidade-face-ao-reconhecimento-das-relacoes-familiares-socioafetivas. Acesso em: 23 dez 2024.
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