Buscaremos no presente trabalho a prestar uma análise acerca das consequências jurídicas aplicáveis ou não ao sujeito que, uma vez detido pelo Estado, comete atos atentatórios contra o patrimônio dos entes da Federação, ou, em mais precisamente, ao patrimônio público. Buscaremos visualizar a conduta realizada por esses indivíduos e a possibilidade da incidência das regras e sanções do Direito Penal ao caso em questão
No decorrer do texto, faremos uma análise a partir de julgamentos das mais altas Cortes do país, bem como de alguns doutrinadores, expondo uma divergência de entendimentos que em muito importa para nossa atual realidade.
O tema realmente assusta e pode até parecer absurdo, afinal, por que diríamos que uma pessoa presa, condenada criminalmente pelo Poder Judiciário, após este ter seguido todo o devido processo legal, teria o direito de fugir, de se evadir do cumprimento de sua pena? É o que buscaremos entender neste artigo. Não são esses temas que geralmente fazem do Direito essa “ciência” tão apaixonante?
Nossa atual Constituição Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988, sem dúvidas trouxe mudanças políticas, jurídicas e sociais ao Brasil. Indiscutivelmente, nossa Carta Magna buscou abarcar a maior quantidade de direitos possíveis, principalmente em seu art. 5º, ponto fulcral da Constituição e cláusula pétrea desta. A preocupação de garantir direitos tem uma explicação, o Brasil acabara de sair de um período ditatorial militar, em que a liberdade de expressão, de locomoção e até os direitos mais básicos eram violados. Logo, para que isso não voltasse a ocorrer, promulgou-se a “Constituição-Cidadã”, buscando reestabelecer definitivamente o Estado Democrático de Direito.
Mas será que nessa ideia de protecionismo e de garantismo penal, nossa Lei Maior abarcou o direito daqueles encarcerados pelo Estado de fugirem? Em outras palavras, o indivíduo preso tem o direito de fugir e sair impune por tal fuga? Em nenhum ponto da Carta Constitucional consta algo expressamente ou ao menos semelhante a esse entendimento.
De fato, se imaginarmos que um indivíduo esteja preso em um veículo policial ou em uma sala aberta de uma delegacia e venha abrir a porta da viatura e sair correndo, ou, ainda, levantar-se e evadir-se da delegacia, sem causar nenhum dano, obviamente ele não poderia responder por nenhum crime, pois não há crime de “fuga”, tampouco poderia ser enquadro como “resistência” ou algo do tipo. E sabemos que “não há crime nem pena sem lei anterior que o defina” (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege) Estamos chegando ao ponto que interessa.
Imaginemos, agora, que esse mesmo sujeito esteja preso na viatura, numa cela da delegacia ou mesmo em um estabelecimento prisional. Se, para fugir na surdina, ele quebrar a janela da viatura, cerrar as grades da cela da delegacia ou fizer um buraco na parede do presídio, ele ainda ficaria “impune” ou responderia pelo crime de dano qualificado, em virtude de ser patrimônio público?
Ora, numa interpretação positiva ou literal da lei, diríamos que tal indivíduo deveria responder pelos danos causados, é essa a lógica do sistema. Mas o Direito não é matemática, não é só lógica. Esse entendimento estaria correto se o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não tivesse firmado posicionamento exatamente ao contrário. Para o STJ, o preso que destrói o patrimônio público para fugir não deve responder pelo crime de dano, seja simples ou qualificado. É o que se depreende dos julgados a seguir:
“HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DE RECURSO ORDINÁRIO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. DANO QUALIFICADO. PATRIMÔNIO PÚBLICO. BURACO NA PAREDE DA CELA. FUGA DE PRESO. DOLO ESPECÍFICO (ANIMUS NOCENDI). AUSÊNCIA. AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO. ILEGALIDADE PATENTE RECONHECIDA. NÃO CONHECIMENTO. CONCESSÃO DA ORDEM EX OFFICIO.
[...]
2. Segundo entendimento desta Corte, a destruição de patrimônio público (buraco na cela) pelo preso que busca fugir do estabelecimento no qual encontra-se encarcerado não configura o delito de dano qualificado (art. 163, parágrafo único, inciso III do CP), porque ausente o dolo específico (animus nocendi), sendo, pois, atípica a conduta. (grifo nosso)
3. Flagrante ilegalidade detectada na espécie.
4. Writ não conhecido, mas concedida a ordem, ex officio, para trancar a ação penal, por falta de justa causa. (HC 260.350/GO, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 13/05/2014, DJe 21/05/2014)”
“HABEAS CORPUS. CRIME DE DANO QUALIFICADO PRATICADO CONTRA O PATRIMÔNIO PÚBLICO ESTADUAL. 1. PRESO QUE SERRA AS GRADES DA CELA PARA EMPREENDER FUGA. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO (ANIMUS NOCENDI). 2. ORDEM CONCEDIDA.
1. Consoante entendimento firmado por esta Corte, o delito de dano ao patrimônio público, quando praticado por preso para facilitar a fuga da prisão, exige o dolo específico (animus nocendi) de causar prejuízo ou dano ao bem público. Precedentes. (grifo nosso)
2. Ordem concedida para declarar atípica a conduta do paciente.
(HC 226.021/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 21/06/2012, DJe 28/06/2012)”
É como se o STJ estivesse dando um incentivo aos presos para tentarem uma fuga: “você pode tentar fugir, inclusive destruindo o patrimônio público, pois ainda que o destrua, não lhe será imputado o crime de dano”.
Mas e o que nossa Suprema Corte, o Supremo Tribunal Federal (STF), tem a dizer sobre o assunto? Já não é novidade haver discrepâncias entre os dois Tribunais acima citados, e para o STF, em julgamento proferido no ano de 1996, sob a relatoria do Ministro Carlos Velloso, a situação descrita configuraria sim o crime de dano qualificado, bastando o dolo genérico. Vejamos o julgamento:
“EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. "HABEAS CORPUS". CRIME DE DANO. PRESO QUE DANIFICA A CELA PARA FUGIR. EXIGÊNCIA APENAS DO DOLO GENERICO. CP, art. 163, parágrafo único, III. I. - Comete o crime de dano qualificado o preso que, para fugir, danifica a cela do estabelecimento prisional em que está recolhido. Cód. Penal, art. 163, parag. único, III. II. - O crime de dano exige, para a sua configuração, apenas o dolo genérico. III. - H.C. indeferido. (HC 73189, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 23/02/1996, DJ 29-03-1996 PP-09346 EMENT VOL-01822-02 PP-00250)”
Vale dizer que a análise em questão é feita apenas quanto ao crime de dano, sem violência à pessoa, uma vez que se ocorrer esse fato, a situação muda, pois o Código Penal, em seu art. 352, prevê pena de detenção ao preso que se evade usando de violência contra a pessoa. Nesses casos, além do referido artigo, o agente responderia pela pena correspondente à violência.
Voltando aos julgados, é possível inferir que o STJ entende que caso o preso consiga, v.g., cerrar as grades de sua cela ou abrir um buraco na parede, este estará “amparado pela lei”. Sim, pois se entendem que não é crime, é porque não há proibição. Logo, entende-se que, segundo o Superior Tribunal de Justiça, o preso tem o direito de fugir, desde que não cometa violência contra a pessoa.
A doutrina também diverge quanto a essa questão. Para alguns, como Luiz Regis Prado, filiam-se ao STJ e entendem não ser cabível a imputação do crime de dano qualificado. De outro lado, Guilherme de Sousa Nucci e Rogério Greco se vinculam ao STF, entendendo ser perfeitamente possível o enquadramento do fato ao crime de dano qualificado. Ensina Rogério Greco:
“Entendemos que não se exige para a configuração do crime de dano o chamado animus nocendi. Basta que o agente tenha conhecimento de que com o seu comportamento está destruindo, inutilizando ou deteriorando coisa alheia, para que possa ser responsabilizado pelo delito em estudo, uma vez que o tipo não exige essa finalidade especial. ”
Reforçando a ideia que, segundo o STJ, o preso tem o direito de fugir, desde que não aja com violência contra a pessoa, temos a seguinte situação: se o indivíduo, após cerrar as grades da cela, empregasse violência contra o agente penitenciário, responderia pelo crime do art. 352, além do referente à violência. Entretanto, não podemos dizer que o crime de dano é crime-meio para o crime de evadir-se mediante violência, pois, se não houvesse violência, e puníssemos o agente pelo dano, estaríamos afirmando que, se ele tentasse fugir sem o emprego de violência, sua pena seria maior do que se, efetivamente, agredisse um funcionário público com a finalidade de ganhar a sua liberdade.
Situação curiosa surge, ainda baseando-se no entendimento da referida Corte Superior, se o preso tivesse o “animus” apenas de danificar sua cela, ou precisamente as grades. É dizer, se o indivíduo tivesse a intenção de destruir toda a cela e ficar lá dentro, ele deveria responder por dano qualificado, pois houve o “dolo específico”, mas se ele destruísse a cela e efetivamente fugisse, seria fato atípico.
É mister lembrar que o art. 163 do Código Penal não exige dolo específico para a configuração do delito de dano, sendo necessário apenas o dolo direto, genérico.
Portanto, entendemos ser mais plausível a posição do Supremo Tribunal Federal e somos filiados ao entendimento de Rogério Greco, o qual defende que o agente responde pelo crime de dano qualificado em concurso material, a depender do caso concreto, com os demais crimes que venha a cometer ou não durante a fuga.
Conclusão
Questionou-se sobre a possibilidade de um sujeito preso possuir o direito de fugir, sem responder penalmente por crime algum, ainda que venha a danificar os obstáculos que o mantém preso. Vimos que há divergência doutrinária e jurisprudencial acerca do tema, mas que o entendimento mais adequado parece ser aquele no qual não se pode permitir que um condenado ou preso, preventiva ou provisoriamente, danifique um patrimônio público, uma vez que tal ato não só gera insegurança jurídica, como também mostra a passividade e ineficiência do Estado.
Referências
Greco, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. vol. III. 12ª. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2015.
Cunha, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial. vol. Único. 7º ed. rev., amp. e atual.
Prado, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal: jurisprudência; conexões lógicas com os vários ramos do direito. 7ª.ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2012.
Estudante de Direito (Centro Universitário Christus - UNICHRISTUS)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FONTENELE, Edilson Sousa. Direito à fuga: direito coletivo, direito individual, direito? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jul 2015, 03:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44727/direito-a-fuga-direito-coletivo-direito-individual-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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