RESUMO: Este trabalho pretende traçar, sinteticamente, noções gerais sobre a competência do crime de tráfico de drogas a partir da análise da transnacionalidade do delito, apontando as diretrizes que devem ser observadas para tanto, constantes da Lei nº 11.343/2006, tecendo as diferenças com a lei de drogas revogada e com outros delitos cuja competência da Justiça Federal pode ser reconhecida, à luz da jurisprudência dos tribunais superiores.
Palavras-chave: Direito Processual Penal. Tráfico de Drogas. Competência. Transnacionalidade. Lei nº 11.343/2006. Comparação com outros delitos.
INTRODUÇÃO
A transnacionalidade no delito de tráfico de drogas é essencial para se aferir a competência do órgão responsável por processar e julgar o crime.
A Lei nº 11.343/2006, em harmonia com o que dispõe a Constituição Federal, trata sobre a competência da Justiça Federal nos casos em que o crime de tráfico de drogas revelar o caráter transnacional do delito.
Neste trabalho, pretendem-se traçar breves considerações a respeito da competência para processar e julgar o crime de tráfico de drogas, as novas regras instauradas com a Lei nº 11.343/2006, as circunstâncias a serem avaliadas para fins de aferição da transnacionalidade do delito, além de se traçar um comparativo com outros delitos, tais como o tráfico de armas e a importação de medicamentos falsificados, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
1 COMPETÊNCIA PARA PROCESSAR E JULGAR O CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS
Dispõe a Constituição Federal:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
Para combater o crime de tráfico de drogas, existem várias convenções internacionais, dentre as quais se pode citar: a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988, aprovada pelo Decreto nº 154 de 26 de junho de 1991, a Convenção das Nações Unidas sobre as Substâncias Psicotrópicas de 1971, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 90, de 5 de dezembro de 1972 e a Convenção Única das Nações Unidas de 1961 sobre os Estupefacientes - Decreto Legislativo nº 5, de 1964.
Portanto, verificada a transnacionalidade do delito, a competência para processar e julgar referido crime é da Justiça Federal. É isso o que também dispõe a Lei 11.343/06:
Art. 70. O processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, se caracterizado ilícito transnacional, são da competência da Justiça Federal.
Parágrafo único. Os crimes praticados nos Municípios que não sejam sede de vara federal serão processados e julgados na vara federal da circunscrição respectiva.
A respeito, imperioso mencionar que a Lei nº 11.343/2006 constituiu inovação em relação à antiga Lei de Drogas, porque esta previa que, nas localidades em que não houvesse Vara Federal, o processo deveria tramitar na Justiça Estadual. Com efeito, dispõe o art. 27 da Lei nº 6.368/76:
Art. 27. O processo e o julgamento do crime de tráfico com exterior caberão à justiça estadual com interveniência do Mistério Público respectivo, se o lugar em que tiver sido praticado, for município que não seja sede de vara da Justiça Federal, com recurso para o Tribunal Federal de Recursos.
Sob a égide da lei revogada, o Supremo Tribunal Federal editou a seguinte súmula:
SÚMULA 522
Salvo ocorrência de tráfico para o exterior, quando, então, a competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados o processo e julgamento dos crimes relativos a entorpecentes.
Esse entendimento não foi modificado com a vinda da Lei nº 11.343/2006. Ao contrário, remanesce o posicionamento no sentido de que, apenas quando demonstrada a transnacionalidade do delito, é que a competência para processar e julgar o feito será da Justiça Federal, a teor do que dispõe o art. 70 daquele diploma legal.
2 CIRCUNSTÂNCIAS A SEREM AVALIADAS PARA FINS DE AFERIR A TRANSNACIONALIDADE DO DELITO
De início, é preciso mencionar que a doutrina tem feito diferenciação entre o caráter transnacional do delito de tráfico de drogas e a internacionalidade do mesmo delito. Com efeito, a transnacionalidade não pressupõe necessariamente o envolvimento de duas pessoas nacionais de estados diversos ou mesmo que sejam atingidos bens jurídicos em Estado diverso do Brasil. A esse respeito, vem a calhar o seguinte entendimento:
O conceito de delito transnacional é mais amplo que o de delito internacional.
A internacionalidade pressupõe transação criminosa envolvendo agentes de duas ou mais nações soberanas, vinculando as pessoas envolvidas. Tanto isso é exato que, sob a égide da lei antiga, reiteradas vezes se decidiu que a simples origem estrangeira da droga não era suficiente para o reconhecimento da internacionalidade do crime de tráfico (STF, HC 77.598/PR, 2ª T., rel. Min. Carlos Velloso, j. 22-9-1998, DJU de 6-11-1998, RT 760/551). Por outro vértice, para a configuração da transnacionalidade basta que o delito vá além dos limites do território brasileiro, que ultrapasse os limites que envolvem as demarcações do território, o espaço aéreo, águas internas e milhas marinhas, sem que necessite alcançar outra nação soberana, ou, alcançando, sem necessidade de identificação de vínculo entre os agentes envolvidos. Por ter alcance mais dilatado, também envolve a ideia de internacionalidade, que, uma vez identificada, também autoriza a incidência da causa de aumento de pena.
Em outras palavras, será transnacional o delito que ultrapassar os limites da soberania nacional, com ou sem identificação de vínculo entre nacionais e estrangeiros.
A natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido, bem como as circunstâncias do fato, servirão para evidenciar se a hipótese é ou não de delito transnacional.
Basta que a droga seja originária de outro país, sem outros questionamentos, para que se reconheça a majorante da transnacionalidade.
Todo delito internacional será sempre transnacional, mas nem todo delito transnacional pode ser considerado internacional, para os termos da Lei de Drogas.[1]
Damásio de Jesus (Lei antidrogas anotada. Comentários à Lei n. 11.343/2006. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010), citando Alexandre de Moraes de Gianpaolo Poggio Smanio (Legislação penal especial, 10. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 133), define que:
Crime transnacional é aquele cometido em mais de um país, ou que é cometido em um só país, mas parte substancial da sua preparação, planejamento, direção e controle tenha lugar em outro país, ou que é cometido em um só país, mas envolva a participação de grupo criminoso organizado que pratique atividades criminosas em mais de um país, ou, ainda, aquele praticado em um só país, mas que produza efeitos substanciais em outro país (definição constante da Convenção contra o Crime Organizado Transnacional, art. 3º, n. 2)
Considerando a assertiva de que o crime transnacional possui conceito mais amplo do que a expressão internacional, conclui-se com facilidade que, com a entrada em vigor da Lei nº 11.343/2006, alargaram-se as hipóteses em que deve ser reconhecida a competência da Justiça Federal para processar e julgar o delito de tráfico de drogas.
Não obstante, não se pode reconhecer a transnacionalidade do delito com base em conjecturas ou meros indícios de que o crime é transnacional. Isso porque a competência da Justiça Federal é prevista constitucionalmente, é portanto, absoluta. Assim, as circunstâncias da transnacionalidade devem estar concretamente e suficientemente demonstradas no processo, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. ART. 70 DA LEI N. 11.343/2006. INAPLICABILIDADE. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA TRANSNACIONALIDADE DOS DELITOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.
Nos termos do art. 70 da Lei n. 11.343/2006, quando demonstrada a transnacionalidade dos delitos previstos nos arts. 33 e 35 da Lei n. 11.343/2006, a competência para o processamento e julgamento do feito é da Justiça Federal.
Todavia, o que se vislumbra da leitura dos documentos que instruem o presente feito é que inexiste qualquer elemento apto a confirmar a eventual origem estrangeira da droga, restando ausente a demonstração da transnacionalidade do delito. O próprio Delegado de Polícia Federal deixou de indiciar os investigados pela prática do crime de tráfico transnacional de drogas, porquanto não vislumbrou elementos suficientes de sua ocorrência.
A mera constatação de domicílio em região fronteiriça ou de menção a localidades inseridas em região de fronteira não são suficientes para se concluir pela transnacionalidade da conduta, havendo necessidade de comprovação, ou pelo menos a existência de indícios concretos, da origem estrangeira das substâncias ilícitas.
Agravo regimental desprovido.
(AgRg no CC 137.240/MS, Rel. Ministro ERICSON MARANHO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/05/2015, DJe 27/05/2015)
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. ART. 70 DA LEI N. 11.343/2006. INAPLICABILIDADE. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA TRANSNACIONALIDADE DOS DELITOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.
- Nos termos do art. 70 da Lei n. 11.343/2006, quando demonstrada a transnacionalidade dos delitos previstos nos arts. 33 e 35 da Lei nº 11.343/2006, a competência para o processamento e julgamento do feito é da Justiça Federal.
- Todavia, o que se vislumbra da leitura dos documentos que instruem o presente feito é que, nos termos do Relatório expedido pela Polícia Federal, inexiste qualquer elemento apto a confirmar a eventual origem estrangeira da droga, restando ausente a demonstração da transnacionalidade do delito.
- A alegação da existência de suspeita de que um dos participantes da quadrilha tenha parente que possua refinaria de drogas na Bolívia, bem como o fato de que outro comparsa tenha residido naquele país, ou ainda, a proximidade do Município de onde originou o transporte da droga com a fronteira, não são suficientes para se concluir pela internacionalidade da conduta, havendo necessidade de comprovação, ou pelo menos a demonstração de indícios concretos, da origem estrangeira das drogas.
Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 3ª Vara Criminal de Cáceres - Mato Grosso/MT, o suscitante.
(CC 136.975/MT, Rel. Ministro ERICSON MARANHO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 10/12/2014, DJe 19/12/2014)
Dito isso, imperioso acrescentar que, para se avaliar a transnacionalidade do delito, algumas circunstâncias devem ser analisadas.
O art. 40, I, da Lei nº 11.343/2006 prescreve:
Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:
I - a natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido e as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade do delito;
É esse artigo quem define as diretrizes sobre o que deve ser avaliado para se aferir a transnacionalidade. São elas: a) natureza da substância ou produto apreendido; b) procedência da substância ou do produto apreendido; c) circunstâncias do fato.
Como se vê, referido dispositivo legal deixa uma gama de possibilidades para que o julgador, no caso concreto, avalie a competência para seguimento do feito.
Como já dito, para reconhecer a transnacionalidade do delito, não é preciso coautoria ou participação de agentes de Estados diversos, conforme se extrai da seguinte doutrina:
Embora a lei tenha substituído a expressão internacional, que constava da lei anterior, por transnacional, assim como se dá para o efeito de reconhecimento da competência da JF, não se exige, para a incidência da causa de aumento, a presença de agentes brasileiros e estrangeiros, ou de conluio entre eles (STJ, Resp. 593297, Laurita Vaz, 5ª T., u., 9.3.04; TRF3, AC 200860040010312, Cecília Mello, 2ª T., u., 23.11.10)
A literalidade do inciso I art. 40 da Lei 11.343/06 aponta no sentido de que basta para a caracterização do tráfico transnacional a natureza ou procedência da substância ou produto, bem como as circunstâncias do fato (TRF4, AC 20077210000167-2, Penteado, 8ª T., u., 15.8.07), o que confirma a improcedência da tese da necessidade da cooperação internacional, ou seja, de que o tráfico somente seria considerado internacional quando houvesse participação efetiva de agentes do Brasil em cooperação com outros localizados no estrangeiro.[2]
Também não é necessário comprovar que a droga efetivamente tocou dois Estados diversos. Ao contrário, basta que se demonstre que o agente tinha a intenção de remetê-la para país diverso ou que foi preso na iminência de embarcar para outro país, conforme entendimento do mesmo doutrinador:
Não se exige, tampouco, que a droga tenha efetivamente alcançado o país estrangeiro, sendo suficiente ao reconhecimento da causa de aumento a finalidade de que isso ocorresse (STJ, Habeas Corpus 123761, Arnaldo de Lima, 5ª T., 16.3.10; Tribunal Regional Federal da Segunda Região, AC 200102010334804, André Fontes, 2ª T., u., 10.4.07) ou o reconhecimento objetivo de que a droga era destinada a território estrangeiro, desde que seja para ele destinado (STJ, Habeas Corpus 16.572, Jorge Scartezzini, 5ª T., u., DJ 19.8.00; STJ, Resp. 593297, Laurita Vaz, 5ª T., u., 9.3.04; Tribunal Regional Federal da Segunda Região, AC 2.665, Dyrlund, 1ª T., u., DJ 21.6.01; TRF3, AC 11213, Ferreira da Rocha, 1ª T., u., DJ 16.10.03; TRF3, AC 20056119001681-3, Cecília Mello, 2ª T., u., 27.2.07), sendo apreendida a substância em vias de ser exportada (TRF3, AC 200461190012270, Ramza, 5ª T., u., 16.6.06).
Nesse ponto, destaca-se que o verbo do tipo imputado ao agente não precisa necessariamente ser o de "importar" ou "exportar" substância entorpecente. Qualquer verbo núcleo do tipo pode sofrer a incidência da causa de aumento e, consequentemente, pode ser julgado pela Justiça Federal, conforme segue:
A causa de aumento se aplicará não somente às condutas de importar e exportar a droga, ou seja, fazer a droga entrar nos limites territoriais do Brasil ou fazê-la sair, mas a todas aquelas em que se estiver demonstrado que o destino da droga seja outro país. Assim, um agente preso no aeroporto portando droga, com passagem aérea comprada com destino ao exterior (conhecido como "mula"), responderá pelo delito (na modalidade "trazer consigo") com a presente causa de aumento (...)
Em caso concreto no qual atuamos, o caráter internacional do crime de tráfico restou demonstrado em razão da apreensão, juntamente com a droga, de produtos provenientes do Paraguai, objeto de descaminho, bem como pelo fato de estar a droga no interior de sacolas pretas, tipicamente utilizadas no comércio informal daquele país. Porém, é relevante afirmar, não basta provar que a droga tenha sido produzida em outro país, pois isto, nada obstante demonstre que a droga foi internalizada, não indica a responsabilidade de seu detentor pela internalização.[3]
É possível, por exemplo, que o caráter transnacional seja reconhecido pelo intuito de transferir a droga de um país para o outro, sem necessidade de efetiva transposição de fronteiras. Nesse sentido:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. INVESTIGAÇÃO POLICIAL. TRÁFICO TRANSNACIONAL DE DROGAS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. INVIABILIDADE DE ANÁLISE DE FATOS E PROVAS. LICITUDE DAS PROVAS AUTORIZADAS POR JUÍZO APARENTEMENTE COMPETENTE. ESCUTAS TELEFÔNICAS. PRORROGAÇÕES SUCESSIVAS. POSSIBILIDADE. DECISÃO FUNDAMENTADA. 1. O caráter transnacional do delito de tráfico de drogas, assim considerado quando demonstrado o intuito de transferência da substância envolvendo mais de um país, ficou comprovado por intermédio de provas produzidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. Nesse contexto, qualquer conclusão desta Corte em sentido contrário demandaria o revolvimento de fatos e provas, o que é inviável em sede de habeas corpus. 2. O STF já decidiu que não há nulidade em medida cautelar autorizada por Juiz Estadual, que posteriormente declina a competência para Justiça Federal, quando evidenciado que na primeira fase das investigações não havia elementos de informação plausíveis no sentido de afirmar a transnacionalidade do tráfico de drogas, que somente ficou demonstrado com o avanço das diligências. 3. A interceptação telefônica é instrumento excepcional e subsidiário à persecução penal, cuja decisão autorizadora deve observar rigorosamente o disposto no art. 5º, XII, da Constituição Federal e na Lei 9.296/1996. Demonstrado que as razões iniciais legitimadoras da interceptação subsistem e o contexto fático delineado pela parte requerente indique a sua necessidade, como único meio de prova, para elucidação do fato criminoso, a jurisprudência desta Corte tem admitido a razoável prorrogação da medida, desde que respeitado o prazo de 15 dias entre cada uma delas. 4. Recurso ordinário desprovido. (RHC 113721, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 03/03/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-085 DIVULG 07-05-2015 PUBLIC 08-05-2015)
Em relação às circunstâncias do caso concreto, a apuração da transnacionalidade pode advir do local da prisão, se realizado em estrada rota para outro país, por exemplo, do relato de testemunhas, da apreensão de objetos outros que demonstrem que o réu esteve em outro país nos dias anteriores, entre outros. A esse respeito:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA ESTADUAL E JUSTIÇA FEDERAL. TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS. INDÍCIOS ACERCA DA ORIGEM ESTRANGEIRA DO ENTORPECENTE. TRANSNACIONALIDADE DA CONDUTA.
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. PRECEDENTES.
1. É competência da Justiça Federal processar e julgar os crimes previstos nos artigos 33 a 37 da Lei n. 11.343/2006, se caracterizada a transnacionalidade do delito.
2. Na espécie, evidencia-se a transnacionalidade do delito de tráfico de drogas, em face das circunstâncias do evento, do local da prisão do acusado, do relato dos policiais responsáveis pelo flagrante delito e do depoimento do acusado às autoridades policiais.
3. Conflito conhecido para declarar competente o JUÍZO FEDERAL DA VARA DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE PONTA PORÃ - SJ/MS, ora suscitado.
(CC 132.133/MS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/05/2014, DJe 03/06/2014)
Quanto à procedência estrangeira da substância, a jurisprudência nem sempre foi pacífica a respeito, como se extrai do seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal:
Habeas corpus. Processual Penal. Tráfico ilícito de entorpecentes. Alegação de caracterização da transnacionalidade do delito. Dilação probatória. Inadequação da via eleita. Prisão em flagrante mantida na sentença condenatória. Direito de apelar em liberdade. Fundamentação idônea. Precedentes. Writ denegado. 1. Compete à Justiça Federal o julgamento dos crimes de tráfico internacional de drogas. Entretanto, nem o simples fato de alguns corréus serem estrangeiros, nem a eventual origem externa da droga, são motivos suficientes para o deslocamento da competência para a Justiça Federal. 2. Somente a partir da análise profunda do material probatório poderia ser infirmada a conclusão das instâncias ordinárias quanto à não caracterização da transnacionalidade do delito, medida incabível na via do habeas corpus. 3. Não configura constrangimento ilegal a sentença penal condenatória que, ao manter a prisão em flagrante delito, veda ao paciente a possibilidade de recorrer em liberdade, com fundamento em uma ou mais hipóteses previstas no art. 312 do CPP. 4. Ordem denegada. (HC 103945, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 26/04/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 03-06-2011 PUBLIC 06-06-2011)
Porém, diante do dispositivo legal acima mencionado, e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema, prevalece hoje que a origem estrangeira da droga é, sim, motivação suficiente para o reconhecimento do caráter transnacional do delito.
3 COMPARATIVO COM OUTROS DELITOS
É imperioso mencionar que a sistemática de análise da transnacionalidade do delito no tráfico de drogas não é inteiramente aplicável a outros delitos.
Isso se deve ao fato de o tráfico de drogas ser altamente repreendido e nosso país e possuir regramento próprio, pelo qual se permite a consideração das circunstâncias do art. 40, I, da Lei nº 11.343/2006 para aferição do caráter transnacional desse crime.
Em relação a outros delitos, porém, deve ser observado o art. 109, V, da Constituição Federal.
É o caso, por exemplo, do tráfico internacional de armas de fogo. A competência da Justiça Federal é aferida em caso de internacionalidade do delito em razão dos tratados firmados pelo Brasil. A esse respeito a doutrina:
Ao incriminar as condutas relativas a armas de fogo, por meio do chamado Estatuto do Desarmamento, o Brasil deu cumprimento a compromissos assumidos no plano internacional ao firmar:
a) a Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Outros Materiais Correlatos, concluída em Washington, em 14 de novembro de 1997 (D. 3.229/99);
b) o Protocolo contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, suas Peças e Componentes e Munições (D. 5.941/06), que complementa a Convenção de Palermo.[4]
Para o reconhecimento da internacionalidade desse delito, não basta a origem estrangeira das armas e/ou munições apreendidas, conforme tem entendido o Superior Tribunal de Justiça:
PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME DE TRÁFICO INTERNACIONAL DE ARMA DE FOGO. ART. 18 DA LEI N. 10.826/2003. MUNIÇÕES PRETENSAMENTE ORIUNDAS DO PARAGUAI. TRANSNACIONALIDADE DO DELITO. DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA. NÃO COMPROVAÇÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.
01. Compete à Justiça Federal processar e julgar o delito previsto no art. 18 da Lei n. 10.826/2003 (CR, art. 109, incs. IV e V).
Todavia, "para a configuração do tráfico internacional de arma de fogo não basta apenas a procedência estrangeira do armamento ou munição, sendo necessário que se comprove a internacionalização da ação" (CC 105.933/RS, Rel. Min. Jorge Mussi, Terceira Seção, DJe 20/05/2010).
02. Não havendo prova segura de que a munição encontrada na residência do investigado foi importada, sem autorização da autoridade competente, caberá à Justiça estadual processar e julgar a ação penal que vier a ser deflagrada em razão desse fato.
03. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da Comarca de Ponta Grossa/PR, ora suscitado.
(CC 133.823/PR, Rel. Ministro NEWTON TRISOTTO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SC), TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/10/2014, DJe 15/10/2014)
Com base na regra acima mencionada (constante do art. 109, V, da Constituição Federal), verifica-se que o reconhecimento da competência da Justiça Federal por vezes não se justifica mas, ainda assim, é objeto da jurisprudência tranquila dos tribunais.
É o que ocorre com o crime do art. 273 do Código Penal. Não há qualquer tratado firmado pelo Brasil relativo ao combate do crime de falsificação de documentos, como se extrai do sítio eletrônico do Ministério das Relações Exteriores.[5]
Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a competência da Justiça Federal para julgar esse crime nos casos em que se comprova que os medicamentos são oriundos de país estrangeiro:
PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME DO ART. 273, § 1º-B, DO CÓDIGO PENAL. MANTER EM DEPÓSITO E EXPOR À VENDA PRODUTOS DESTINADOS A FINS TERAPÊUTICOS OU MEDICINAIS SEM O DEVIDO REGISTRO NO ÓRGÃO DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. TRANSNACIONALIDADE DO DELITO. NÃO CARACTERIZAÇÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.
1. De ordinário, o crime do art. 273 do Código Penal não é cometido "em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas".
Salvo se houver provas ou fortes indícios da transnacionalidade da conduta delitiva ou de conexão instrumental ou probatória com crime da competência da Justiça Federal, a competência para processar e julgar a ação penal a ele correspondente é da Justiça estadual.
2. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Jaú/SP, ora suscitado.
(CC 127.307/SP, Rel. Ministro NEWTON TRISOTTO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SC), TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 10/06/2015, DJe 15/06/2015)
Nesse ponto, o Tribunal Regional Federal da Quarta Região já decidiu que a competência advém da semelhança entre esse crime e o de contrabando, quando os produtos são provenientes do estrangeiro, procurando com isso justificar a competência da Justiça Federal:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. CRIME DO ARTIGO 273, §1º-B, DO CP. SUPOSTA IMPORTAÇÃO E REMESSA DE MEDICAMENTOS ESTRANGEIROS VIA POSTAL. MERCADORIAS APREENDIDAS EM PORTO ALEGRE ANTES DE CHEGAR AO SEU DESTINO. SÚMULA 151 DO STJ. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO. 1. Aplica-se o disposto na Súmula 151 do Superior Tribunal de Justiça ("a competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do juízo federal do lugar da apreensão dos bens") ao delito previsto no artigo 273, §1º-B, do Código Penal por se tratar de modalidade especial de contrabando. 2. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo da 3ª Vara Federal Criminal de Porto Alegre/RS para processamento do apuratório, considerando que a suposta importação e remessa de medicamentos estrangeiros via postal foi interceptada na Capital, local de apreensão das mercadorias, não chegando ao destino inicialmente previsto. (TRF4 5006727-18.2012.404.0000, Quarta Seção, Relator p/ Acórdão Victor Luiz dos Santos Laus, juntado aos autos em 02/07/2012)
Porém, sem descuidar dos precedentes acima, parece claro que a competência federal somente se justificaria no caso da prática desse crime em conexão com outro, da competência da Justiça Federal, nos exatos termos da Súmula 122 do Superior Tribunal de Justiça. Afora esses casos, parecem equivocadas as decisões que reconhecem a competência da Justiça Federal apenas pelo fato de os produtos ostentarem origem estrangeira, dada a inexistência de tratado internacional para o combate desse tipo de delito.
CONCLUSÃO
Como visto acima, o crime de tráfico de drogas somente é da competência da Justiça Federal nos casos em que se verifica a transnacionalidade do delito.
A par da regra existente no art. 109, V, da Constituição Federal, para o delito de tráfico de drogas existe regramento próprio para fins de análise da transnacionalidade do delito.
O art. 40, I, da Lei nº 11.343/2006 define as diretrizes sobre o que deve ser avaliado para se aferir a transnacionalidade do delito de tráfico de drogas. São elas: a) natureza da substância ou produto apreendido; b) procedência da substância ou do produto apreendido; c) circunstâncias do fato.
Vale dizer que esse dispositivo é aplicável apenas para os crimes de tráfico de drogas, sendo que, para outros delitos, tais como o tráfico internacional de armas, deve ser observada a regra geral de competência prevista no art. 109, V, da Constituição Federal.
REFERÊNCIAS
BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014;
BRASIL. Constituição Federal. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>; Acesso em 01/07/2015;
BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11343.htm>; Acesso em 25/06/2015;
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Disponível em < http://dai-mre.serpro.gov.br/>; Acesso em: 10/07/2015;
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em <http://www.stj.jus.br>; Acesso em: 10/07/2015;
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em <http://www.stf.jus.br>; Acesso em: 12/07/2015;
BRASIL. Tribunal Regional Federal da Quarta Região. Disponível em <http://www.trf4.jus.br>; Acesso em: 13/07/2015;
JESUS, Damásio de. Lei antidrogas anotada. Comentários à Lei n. 11.343/2006. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010;
MARCÃO, Renato. Tóxicos - Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 - Lei de Drogas Anotada e Interpretada. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014;
MENDONÇA, Andrey Borges de e CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de drogas comentada artigo por artigo. 2ª edição. São Paulo: Método, 2008.
[1] MARCÃO, Renato. Tóxicos - Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 - Lei de Drogas Anotada e Interpretada. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014
[2] BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014
[3] MENDONÇA, Andrey Borges de e CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de drogas comentada artigo por artigo. 2ª edição. São Paulo: Método, 2008
[4] BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014
[5] http://dai-mre.serpro.gov.br/
Técnico Judiciário da Justiça Federal de Primeira Instância; graduada pela Faculdade Novo Ateneu de Guarapuava; pós-graduada em Direito Constitucional pela UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA; pós-graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera - UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANNES, Ana Claudia Manikowski. Transnacionalidade do crime de tráfico de drogas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jul 2015, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44788/transnacionalidade-do-crime-de-trafico-de-drogas. Acesso em: 23 dez 2024.
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