Resumo: O presente trabalho aborda a possibilidade de compensação, via danos morais, por abandono afetivo. Inicialmente, trataremos da família como base da formação de cada indivíduo e da necessidade do Direito em amoldar-se as não raras mudanças em sua estruturação. Posteriormente abordaremos a responsabilidade por danos morais e seus requisitos. Mais adiante, versaremos acerca do abandono afetivo dos pais em face dos filhos e dos filhos em face dos pais, confirmando nossa hipótese pela análise da legislação e de julgados.
Sumário: 1. Introdução; 2. Da família na estruturação da sociedade; 3. Da responsabilidade civil; 4. Do abandono afetivo em face dos filhos; 5. Do abandono afetivo em face dos pais; 6. Conclusão; 7. Notas; 8. Referências Bibliográfica.
1. Introdução
O presente trabalho pretende abordar, sucintamente, o tema do abandono afetivo e a possibilidade de responsabilização civil por danos morais. Para tanto, inicialmente, versaremos sobre o relevante papel da instituição social denominada família na estruturação da própria sociedade, já que em seu seio é que se constrói a subjetividade dos indivíduos. Posteriormente, trataremos, de forma resumida, sobre a responsabilidade civil, visando, principalmente, o dano moral.
Logo após, adentraremos no tema propriamente dito, a saber, o abandono afetivo. Em primeiro lugar, nos dedicaremos ao abandono afetivo em face dos filhos, contemplando a legislação e julgados pertinentes. Ato contínuo, dissertaremos sobre o abandono afetivo em face dos pais, em regra maiores de 60 anos, considerando, especialmente, o Projeto de Lei 4.294 de 2008, bem como legislação e julgados cabíveis.
2. Da família na estruturação da sociedade
A sociedade, em toda sua pluralidade, reflete os diversos e pequenos grupos que a compõe. Embora a entidade familiar, ao longo de seu desenvolvimento histórico, tenha assumido diversas representações, a faceta hegemônica assumida foi a família monogâmica patriarcal.
No entanto, como era de se esperar, diversas mudanças sociais e jurídicas proporcionaram alterações cruciais na forma como vemos a família e seu papel. Com o advento da constituição cidadã, o respeito aos direitos humanos do indivíduo se tornou condição necessária para o desenvolvimento das interações sociais.
Daí surge diversas consequências jurídicas. Esse reflexo no direito, que é por excelência uma ciência social, se explica justamente porque ele se posiciona como o regulamentador das relações sociais. Dessa forma, se a sociedade muda de forma consistente, o direito deve, também, alterar suas bases de normatização social, sob pena de perder sua legitimidade.
Sendo assim, a família passou a ser um instrumento para alcançar a dignidade humana. Por esse novo paradigma, os integrantes dessa estrutura não podem ser utilizados, exclusivamente, como meio para alcançar um objetivo específico diverso como o aumento da renda familiar, por exemplo. Devem, sim, serem considerados como indivíduos merecedores de tratamento igualitário, solidário e afetuoso de forma recíproca. Tudo isso visa promover a formação integral de seus membros, de forma que os valores apreendidos no âmbito familiar possam ser replicados na sociedade.
Nesse escopo insere-se a necessidade, não somente da prestação de condições materiais para a subsistência de seus integrantes, mas também de todo osuporte afetivo que se fizer necessário para a consolidação da personalidade dos filhos. E se a família deve promover a dignidade da pessoa podemos aduzir que os deveres familiares devem ser recíprocos já que essa dignidade acompanha o indivíduo ao longo de sua existência, não importando, portanto, se são os descendentes ou ascendentes que carecem de auxílio.
3. Da Responsabilidade Civil
Juridicamente, a responsabilidade civil normalmente está ligada ao fato de respondermos pelos atos que praticamos. Sendo assim, extrai-se uma concepção de uma relação obrigacional secundária, revelando um dever, um compromisso. Na responsabilidade com dano, interessa-nos a responsabilidade por atos ilícitos, aquela atuação humana, omissiva ou comissiva, contrária ao direito que deve englobar alguns elementos, seja legal ou doutrinário.
Para que seja configurada esta responsabilidade devemos nos deparar com a existência de quatro elementos. A antijuridicidade, que aparece quando alguma ação ou omissão humana atentar contra o direito. A culpabilidade que irá caracterizar-se por uma ação ou omissão que demonstre negligência, imprudência ou imperícia, elencados no art. 186 do Código Civil1.
O dano apresenta várias espécies, porém, nos interessa neste momento, o dano moral. Localizado na esfera do dano pessoal, o dano moral consiste em constrangimento que alguém experimenta, em consequência de lesão a direito personalíssimo, como a honra, a boa fama, etc., ilicitamente produzida por outrem. Por último, não menos importante, deve estar presente o nexo causal, que é uma relação de causa e efeito entre a conduta culpável do agente e o dano por ela provocado. O dano deve ser fruto da conduta reprovável do agente. Não havendo essa relação, não se pode falar em ato ilícito.
No caso específico do dano moral, não se fala em indenização, mas em compensação. Anteriormente, havia-se duvida em relação a esta matéria e sua compensabilidade. No entanto, tal incerteza foi sanada pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso V, que assegura “odireito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.”.
4. Do abando afetivo em face dos filhos
Há alguns anos aumenta a demanda nos tribunais sobre o abandono afetivo, tema polêmico que encontra divergências na opinião da doutrina e da jurisprudência. Com o advento da Constituição da República Federal de 1988, a família deixou de ser um fim em si mesmo tornando-se espaço existencial de membros que são imprescindíveis às relações de afeto. A relação familiar não é meramente biológica e consanguínea, mas, também, afetiva.
A omissão ou negligência de um pai ou de uma mãe frente à criação dos filhos constitui ilícito, cabendo compensação pecuniária. Vemos com clareza tal possibilidade ao combinar o art. 927 do Código Civil2 com o art. 229 da Constituição3.Além dessas previsões legais, os arts. 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente asseguram meios para um desenvolvimento ideal a estes menores.
Pelo fato do abandono afetivo recair sobre a esfera moral, não se aplica a sanção de ordem pública, o que caracterizaria uma intromissão ilegítima nas relações de ordem individual e até a moralização do Direito. A indenização tem função pedagógica e preventiva, na medida em que a ausência do auxílio dos pais pode prejudicar de forma irreversível a personalidade dos filhos, trazendo-lhes dores imensuráveis e expondo-lhes a sofrimentos e humilhações sociais.
Esta situação de desamparo dos pais em relação aos filhos,em sua maioria, encontra-se relacionado com a ruptura da sociedade conjugal, em que os genitoresexpõem e disputam os filhos de forma nefasta, causando-lhes desequilíbrio emocional. Em muitos casos, a parte que não obteve a guarda do filho não se vê mais responsável pela sua criação.
A Ministra Nancy Andrighi foi clara em seu voto:
“Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.” Recurso Especial nº 1.159.242 – SP (2009/0193701-9).
O abandono afetivo é mais problemático do que o abandono material, pois este pode ser suprido pela assistência de terceiro e até mesmo pelo Estado. A responsabilidade de um dos pais pelo abandono dos filhos significa a omissão na participação integral em suas vidas e em sua criação, de forma a contribuir com a formação e subsistência emocional. Neste sentido é primordial demonstrar nexo de causalidade entre a conduta omissiva e voluntária do pai ou da mãe e o dano psicológico da criança, em que a negligência daqueles resultou em dano para o direito de personalidade do filho.
Por fim, a ausência de uma referência paterna ou materna e de seu apoio moral, afetivo ou psíquico provoca a violação dos direitos próprios da personalidade humana, ignorando valores como a honra, a dignidade e a reputação social.
5. Do abandono afetivo em face dos pais
Em 12 de novembro de 2008, o Deputado Carlos Bezerra apresentou o Projeto de Lei 4.294 que visa prever, no Estatuto do Idoso e no Código Civil, o abandono afetivo dos filhos em face de seus genitores, em regra idosos. Tal proposta busca acrescentar parágrafo ao art. 3º do Estatuto do Idoso4 dispondo que “o abandono afetivo sujeita os filhos ao pagamento de indenização por dano moral.”.
Segundo o art. 229 da Constituição, “os filhos maiores tem o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência e enfermidade.”Mais adiante, encontramos o art. 230 da Carta Maior5 prevendo que é dever da família, da sociedade e do Estado amparar pessoas idosas.
De fato, a análise dos requisitos indispensáveis à responsabilização civil em conjunto com a legislação destinada à proteção do idoso não deixa dúvidas de que é cabível a possibilidade de indenização por abandono afetivo.
Ora, entre as responsabilidades dos filhos maiores para com seus pais idosos não está somente o amparo material. É necessário, e talvez essencial, a assistência moral, o afeto, a atenção. É evidente que não se pode obrigar um filho a amar seus genitores, no entanto, deve-se, ao menos, permitir ao prejudicado compensação pecuniária pelo desamparo sofrido.
Apesar do abandono afetivo do idoso ser possibilidade cristalina no ordenamento jurídico brasileiro, até esta data não encontramos julgados que trate diretamente do assunto. No entanto, foi possível encontrar decisões que vislumbram a importância do cuidado e do afeto em relação ao idoso. Uma delas segue transcrita:
“Mandado de Segurança – Princípio da efetividade máxima de normas constitucionais – Pedido de redução da carga horária, com redução de salário, formulado por filho de pessoa idosa objetivando assistir-lhe diante da doença e solidão que o afligem – Cuidados especiais que exigem dedicação do filho zeloso, única pessoa responsável pelo genitor –Dever de ajuda e amparo impostos à família, a sociedade, ao Estado e aos filhos maiores ordem concedida”.AC 2005. 0110076865 – TJDF. 26.04.2007.
Acreditamos, portanto, que, apesar das controvérsias, paulatinamente está se consolidando o reconhecimento da possibilidade de indenização por danos morais por abandono afetivo e que no futuro a questão a ser analisada será apenas o preenchimento ou não dos requisitos necessários para a responsabilização civil.
6. Conclusão
Conforme foi exposto ao longo deste trabalho, a família é a base para a formação moral do indivíduo, bem como a garantidora de sua dignidade. Nesta feita, o Direito deve amoldar-se às mudanças da estrutura familiar no decorrer do tempo a fim de preservar os interesses de seus membros para que sejam realizados tanto na esfera moral quanto na material.
Neste sentido, vislumbramos a possibilidade de compensação, por meio da indenização por danos morais, pelo abandono afetivo dos pais em face dos filhos e dos filhos em face dos pais. Para confirmar esta hipótese, dissertamos acerca do instituto dos danos morais e seus requisitos. Posteriormente, analisamos julgados acerca do tema e confirmamos o entendimento dos tribunais brasileiros em compensar os filhos pelo abando afetivo dos pais.
Entretanto, no que tange ao abandono afetivo dos filhos em face dos pais, ou abandono inverso, concluímos que o entendimento vem paulatinamente se consolidando em nossos tribunais, o que se consolidará com a aprovação do PL 4.294.
7. Notas
1Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. (Código Civil de 2002).
2Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (Código Civil de 2002).
3Art. 229. Os pais tem o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores tem o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência e enfermidade. (Constituição Federal do Brasil de 1988).
4Art. 3º. É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. (Estatuto do Idoso)
5Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
7. Bibliografia
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 17º ed. aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003.
FIUZA, César. Direito Civil – Curso completo. 16º ed. Del Rey.
PAMPLONA FILHO, Rodolfo. GANGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. vol. 3. 10º ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
PAMPLONA FILHO, Rodolfo. GANGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de Direito Civil: Direito de Família. vol. 6. 11º ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREIRE, Estela Cardoso. Da possibilidade de indenização por danos morais por abandono afetivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jul 2015, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44888/da-possibilidade-de-indenizacao-por-danos-morais-por-abandono-afetivo. Acesso em: 23 dez 2024.
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