Letícia Pelisson Senna: pós-graduada em direito tributário pela PUC/SP. Advogada do Barbosa, Mussnich Aragão
INTRODUÇÃO
Em consonância com as medidas de ajuste fiscal iniciadas pelo Governo Federal em 2015, a recente promulgação do Decreto 8.426/15 reestabeleceu a incidência parcial das contribuições sociais do PIS e da COFINS sobre as receitas financeiras para os contribuintes optantes pela sistemática não cumulativa (Lei 10.637/02 e Lei 10.833/03).
O Decreto 5.442/05, o qual foi expressamente revogado pelo Decreto 8.246/15, até então estava em vigor e previa a isenção de PIS/COFINS sobre as receitas financeiras destes contribuintes. À época, essa redução foi vista pelo Governo e pela Receita Federal como contrapartida à extinção da possibilidade de apuração de créditos em relação às despesas financeiras decorrentes de empréstimos e financiamentos.
O aumento das alíquotas das contribuições sociais incidentes sobre as receitas financeiras foi, respectivamente, de 0,65% para o PIS e 4% para a COFINS e passa a valer a partir de 1º de julho de 2015, em observância ao princípio da anterioridade nonagesimal (art. 150, III, “c” da Constituição Federal).
A estimativa é de que cerca de 80 mil empresas sejam afetadas pela nova regra, a partir das quais o Governo Federal espera um aumento na arrecadação em torno de R$ 2,7 bilhões de reais.
Ocorre, no entanto, que a promulgação do Decreto traz à tona algumas controvérsias jurídicas relevantes, tais como: (a) a (i)legalidade do aumento da alíquota das contribuições por meio de Decreto; (b) a (im)possibilidade de delegação de competência tributária ao Poder Executivo.
O presente artigo tem como objetivo oferecer algumas impressões acerca de ambas as questões supracitadas.
2. DA (I)LEGALIDADE DO AUMENTO DA ALÍQUOTA DAS CONTRIBUIÇÕES POR MEIO DE DECRETO
A primeira controvérsia que pode surgir é a de se um decreto do Poder Executivo tem legitimidade para aumentar a alíquota das contribuições sociais, tendo em vista o princípio da estrita legalidade/tipicidade em matéria tributária.
Como se sabe, é nuclear no sistema constitucional o princípio de que ninguém é obrigado a fazer ou não fazer algo senão em virtude de lei (art. 5, II – CF/88). Em matéria tributária, prevê o art. 150, inciso I como garantia ao Contribuinte que os entes federativos não poderão exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.[1]
Não fosse suficiente, a própria definição de tributo prevista no Código Tributário Nacional (art. 3) denota tratar-se de prestação pecuniária compulsória instituída em lei.
É possível perceber, portanto, a importância que o constituinte e o legislador pátrio outorgaram ao princípio da legalidade. E faz sentido que assim seja: afinal, o contribuinte não pode ficar à mercê do arbítrio arrecadatório estatal, sob pena de uma situação de insegurança jurídica continua e insustentável.
Daí a garantia de que a eventual instituição ou majoração tributária será, como regra geral, submetida necessariamente à apreciação do Congresso Nacional, que é a representação política do povo brasileiro.
É verdade que o próprio constituinte reconheceu que o primado da legalidade merece algumas exceções. Tratam-se dos tributos de natureza regulatória e extrafiscal, os quais têm por objeto não a simples arrecadação, mas a intervenção pontual de forma a estimular ou desestimular certos setores e dadas relações econômicas.
Para essas situações, a morosidade da aprovação legislativa poderia se mostrar um grande obstáculo a inviabilizar em definitivo a efetividade dos ajustes momentâneos que venham a ser exigidos.
Reconhecendo essa situação peculiar, o constituinte outorgou ao Poder Executivo, em caráter excepcional, a competência para alterar as alíquotas dos tributos que se enquadrem na referida natureza regulatória/extrafiscal (art. 153, §1). É o caso do Imposto de Importação, Imposto de Exportação, o Imposto de Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Para estes tributos, e somente estes, o constituinte expressamente dispensou a necessária garantia de estrita legalidade.
Como se vê, o constituinte optou por listar taxativamente as hipóteses em que admitiu o afastamento da legalidade tributária. É dizer que, inexistindo expressa previsão na Constituição Federal que dispense a garantia da legalidade, há de prevalecer a regra geral da estrita tipicidade em matéria tributária.
Nesse contexto, há de se observar que a Constituição Federal em momento algum dispensa a exigência de lei quando o assunto são as contribuições. O art. 153, §1º não enumera as contribuições na lista excepcional. Tampouco o Código Tributário Nacional faz essa exceção (art. 97, II). Aliás, a própria Constituição Federal exigiu que o exercício da competência da União no que tange às contribuições deve observar o princípio da legalidade, seja no art. 149 (contribuições em geral), seja no art. 195 (contribuições sociais).[2]
Nesse sentido, entendemos que não há autorização constitucional nem legal para que o Poder Executivo aumente, por decreto, as alíquotas das contribuições para o PIS e para a COFINS, em observância ao princípio da estrita legalidade em matéria tributária.
Há, porém, um ponto sustentado pela Receita Federal a ser considerado.
É que a Lei 10.865/04 (art. 27, §2) autorizou o Poder Executivo a reduzir e restabelecer a incidência de PIS/COFINS sobre as receitas financeiras até os percentuais originais (1,65% do PIS e 7,60% da COFINS). Dessa forma, havendo permissivo legal, então não há que se falar em violação à legalidade por parte do Decreto 8.426/2015.
Ocorre, no entanto, que esse permissivo legal é inconstitucional e ilegal, na medida em que viola o princípio da separação de poderes (art. 2, CF/88), a rígida competência em matéria tributária e o mandamento legal que prevê a indelegabilidade do exercício da competência tributária (art. 7, CTN).
É o que demonstrará no próximo tópico.
3. DA (IM)POSSIBILIDADE DE DELEGAÇÃO DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA AO PODER EXECUTIVO
O princípio da separação de poderes tem como principal objetivo evitar que o poder se concentre nas mãos dos mesmos entes, de forma que a evitar abusos e arbítrios. A fórmula de separação de poderes consagrada na Constituição Federal é a da tripartição do poder entre a função executiva, legislativa e judiciária.
Em regra, é ao Poder Legislativo que caberá a função de legislar. As eventuais exceções estão expressamente previstas na Constituição Federal, não se admitindo que o legislador infraconstitucional amplie tais possibilidades.
Vale lembrar que, em matéria tributária, a Constituição Federal estabeleceu expressamente a competência do Congresso Nacional para legislar sobre sistema tributário (art. 48, I). Não só, a própria Carta fez uma divisão rígida das competências tributária, vedando qualquer forma de delegação que fuja às regras ali previstas.
No que tange às contribuições, o exercício da competência tributária, isto é, da previsão dos elementos da hipótese de incidência (fato gerador, contribuinte, aspecto temporal e espacial, base de cálculo e alíquota) é de exclusividade da União (art. 149, 195). E, em virtude do princípio da separação de poderes, há de ser dito que o ente competente para a instituição e majoração das contribuições é o poder legislativo federal.
À exceção das expressas hipóteses previstas na Constituição (art. 153, §1), não se admite a delegação do exercício da competência tributária ao Poder Executivo Federal ou a qualquer outro ente federativo.
Além da previsão constitucional, o CTN também reforça a ideia de rígida divisão de competência em matéria tributária, prevendo a impossibilidade de sua delegação (art. 7).
Conforme já sedimentado pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal[3], o “exercício de competência tributária” significa a previsão de todos os elementos da hipótese de incidência do tributo: fato gerador, contribuinte, aspecto temporal e espacial, base de cálculo e alíquota.
Isso significa que a alíquota, enquanto integrante da hipótese incidência tributária, não pode ser objeto de delegação por parte do ente competente para a instituição e/ou majoração do tributo.
Nesse sentido, entendemos que a delegação genérica feita pela Lei 10.865/04 ao Poder Executivo para majorar as alíquotas de PIS/COFINS incidentes sobre as receitas financeiras mostra-se ilegal e inconstitucional. Inconstitucional, pois viola o princípio da separação de poderes e da rígida competência em matéria tributária. Ilegal, porque maltrata a previsão do CTN que veda a delegação do exercício dos elementos da hipótese de incidência da competência tributária.
O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade consignar a impossibilidade de delegação ao Poder Executivo para estabelecer elementos da hipótese de incidência tributária, dentre os quais está a “alíquota”. Outro não é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal.
Nesses termos, a conclusão é a de que a majoração de alíquota de PIS/COFINS promovida pelo Decreto 8.246/15 padece de vícios graves de legalidade e constitucionalidade, abrindo margem à discussão por parte das empresas que venham a ser afetadas.
4. DAS CONCLUSÕES
Pelo exposto, no que tange à majoração das alíquotas de PIS e COFINS incidentes sobre as receitas financeiras por meio do Decreto 8.246/15, a reflexão feita é no sentido de que existem elementos consistentes a sustentar uma eventual discussão no âmbito judicial acerca da ilegalidade e inconstitucionalidade da previsão, na medida em que:
a) Viola o princípio da estrita legalidade em matéria tributária, uma vez que a Constituição Federal e a legislação complementar exigem que a majoração de contribuições se dê por meio de lei, não se admitindo a via paralela do Decreto.
b) Afronta o princípio da separação de poderes, da rígida divisão de competências tributárias e da indelegabilidade da competência tributária, dentro da qual se encontra a definição de alíquotas, conforme já sedimentado pela jurisprudência do STJ e STF.
[1] Esse mandamento é replicado no art. 97, incisos I e II do Código Tributário Nacional.
[2] Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo; Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais.
[3] RE 597098 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 04/10/2011; RE 290079, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 17/10/2001, DJ 04-04-2003; RE 269700, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 17/10/2001; RE 628848 ED, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 19/08/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-175 DIVULG 09-09-2014 PUBLIC 10-09-2014; AI 726144 AgR, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 30/11/2010, DJe-075 DIVULG 19-04-2011 PUBLIC 25-04-2011.
Bacharel em Direito pela FGV em São Paulo. Advogado de Contencioso Tributário no BMA - Barbosa, Mussnich Aragão.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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