Resumo: O presente artigo tem por objetivo conceituar diferentes pontos de vista a respeito do interdito de vida, prática presente em algumas das tribos existentes no Brasil. Após esta análise, tanto o relativismo cultural quanto a universalização de direitos fundamentais estudados, questionando a intervenção estatal por meio do direito penal.
Palavras chaves: infanticídio indígena; relativismo cultural; universalização de direitos.
O ensaio a ser desenvolvido busca analisar antropologicamente o Art 2º, incisos I a IX do Projeto de Lei 1.057/2007 que se encontra pronto para pauta no plenário da Câmara dos Deputados. O projeto, segundo seu próprio texto: “Dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais.”. Os incisos citados dizem respeito, mais especificamente, ao chamado infanticídio indígena - que não deve ser confundido com o artigo 123 do código penal, pois este se trata de homicídio doloso cometido pela mãe durante o estado puerperal, enquanto aquele ocorre segundo as tradições de cada tribo.
Esta prática é presente em algumas das mais de 200 tribos indígenas brasileiras, e, segundo o projeto Hanaki - que tem por objetivo erradicar o interdito de vida-, tem sido registrada nas etinias uaiuai, bororo, mehinaco, tapirapé, ticuna, amondaua, uru-eu-uau-uau, suruwaha, deni, jarawara, jaminawa, waurá, kuikuro, kamayurá, parintintin, yanomami, paracanã e kajabi, dentre outras. O “infanticídio” pode ocorrer por diversas razões, o não conhecimento do pai, a gemeleidade e deformidades congênitas, entre outras.
A metodologia será feita pela análise: (i) da exposição de motivos e pareceres da Lei em questão; (ii) das opiniões presentes nos sítios eletrônicos cristãos; (iii) da dissertação de mestrado “Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena” da autora Marianna Assunção Figueiredo Holanda e; (iv) da tese de doutorado “A caminhada de Tanyxiwè: Uma teoria Javaé da História” da autora Patrícia Mendonça Rodriguez.
O ensaio tem por objetivo expor as divergências entre a opinião cristã universalista sobre o infanticídio, ilustrada pelos tópicos i e ii, e o ponto de vista aproximado do indígena sobre este conceito, representado pelos tópicos,iii e iv.
O projeto de Lei 1.057/2007.
O artigo primeiro do projeto de lei em questão pretende reafirmar “o respeito e o fomento a práticas tradicionais indígenas e de outras sociedades ditas não tradicionais”[1]desde que “estejam em conformidade com os direitos humanos fundamentais, estabelecidos na Constituição Federal e internacionalmente reconhecidos”[2]. Para isso, a lei determina quais seriam as práticas nocivas a esses direitos, entre elas, o homicídio de recém-nascidos e jovens:
Para fins desta lei, consideram-se nocivas as práticas tradicionais que atentem contra a vida e a integridade físico-psíquica, tais como:
I. Homicídios de recém-nascidos, em casos de falta de um dos genitores;
II. Homicídios de recém-nascidos, em casos de gestação múltipla;
III. Homicídios de recém-nascidos, quando estes são portadores de deficiências físicas e/ou mentais;
IV. Homicídios de recém-nascidos, quando há preferência de gênero;
V. homicídios de recém-nascidos, quando houver breve espaço de tempo entre uma gestação anterior e o nascimento em questão;
VI. Homicídios de recém-nascidos, em casos de exceder o número de filhos considerado apropriado para o grupo;
VII. Homicídios de recém-nascidos, quando estes possuírem algum sinal ou marca de nascença que os diferencie dos demais;
VIII. Homicídios de recém-nascidos, quando estes são considerados portadores de má-sorte para a família ou para o grupo;
IX. Homicídios de crianças, em caso de crença de que a criança desnutrida é fruto de maldição, ou por qualquer outra crença que leve ao óbito intencional por desnutrição[3].
A lei prevê, ainda, a possibilidade de detenção por omissão de socorro para qualquer pessoa que tenha conhecimento de algum destes casos e não notifique a FUNASA, FUNAI, Conselho Tutelar, autoridade judiciária, ou policial. Segundo a norma, Caso alguma destas autoridades não adotem imediatamente as medidas cabíveis.
Com o objetivo de proteger a vida dos índios jovens e recém-nascidos, a lei possibilita sua retirada provisória ou definitiva, além de determinar que “Serão adotadas medidas para a erradicação das práticas tradicionais nocivas, sempre por meio da educação e do diálogo em direitos humanos[4]”.
O projeto seria justificado pela postura de órgãos governamentais de não interferir em práticas tradicionais, com base no “relativismo radical[5]”, o que figuraria como um atentado contra o ordenamento jurídico brasileiro e à legislação internacional.
A vida como direito universal.
Para entender o conflito entre a lei e a prática do interdito de vida, é fundamental estudar as diferentes perspectivas sobre infanticídio, assim como as noções de vida. Afinal, como se mostrará a frente, enquanto um lado defende a universalização do direito à vida, adquirida, no mínimo, no ato do parto; o outro concebe o conceito de vida de forma diversa, sendo adquirida, entre outros meios, através do convívio social.
O Direito a vida no Projeto de Lei
Ainda na Câmara dos Deputados, é possível observar a preocupação com a legitimação legal e constitucional do Projeto de Lei, a exposição de motivos expõe diversos trechos de diplomas legais que possibilitariam a aprovação do PL, como a Resoluções da ONU A/RES/56/128, A/S-27/19 e a Constituição Brasileira. Segundo o parecer estas normas:
[...] garantem o direito à vida como o direito por excelência. Desta maneira, o Estado brasileiro deve atuar no sentido de amparar todas as crianças, independentemente de suas origens, gênero, etnia ou idade, como sujeitos de direitos humanos que são. Obviamente, as tradições são reconhecidas, mas não estão legitimadas a justificar violações a direitos humanos, como dispõe o art. 8, nº 2, do Decreto 5.051/2004, o qual promulga a Convenção 169 da OIT.[6]
E continua:
Desta maneira, não se pode admitir uma interpretação desvinculada de todo o ordenamento jurídico do art. 231 da Constituição, o qual reconhece costumes e tradições aos indígenas. É necessário que este artigo seja interpretado à luz de todos os demais artigos mencionados acima, bem como o art. 5º sobre os direitos fundamentais da Constituição, o qual norteia todo o ordenamento jurídico nacional[7]
Este primeiro momento aparentemente trata de uma discussão entre dispositivos jurídicos, contudo, ele também pode ser entendido como um conflito entre o conceito de vida. Isto porque o conceito cristão e universalizante da vida é adotado por várias legislações[8], inclusive a brasileira. Então, o discurso que aparentemente aborda o conflito entre o ordenamento jurídico pode ser, na verdade, a imposição ou não de um conceito hegemônico já estabelecido.
Após reconhecer a juridicidade do PL, o parecer da Comissão de Constituição e Justiça de Cidadania aponta para a universalidade dos direitos humanos:
Direitos humanos são para todos, sem distinção. São direitos inatos, inerentes a todos os seres humanos. Eles não são privilégios de alguns. A natureza universal dos direitos humanos é inquestionável. Independente das perspectivas culturais, o Estado tem a obrigação de implementar a observância desses direitos.[9]
E o parecer continua:
O exposto acima não significa que negamos os direitos culturais indígenas, que são legítimos aos diversos grupos étnicos presentes em todo território nacional. O direito à diversidade cultural é limitado até o ponto em que infringe qualquer outro direito fundamental da pessoa humana, como o direito à vida. Isso significa que o direito à diversidade cultural não pode ser evocado para justificar a violação do direito fundamental inerente ao ser humano.[10]
Ainda segundo o parecer, o estado deve “assegurar o exercício dos direitos à vida e à saúde de crianças indígenas”, mas não há, explicitamente, determinação de qual conceito de vida é esse. Apontar que um direito é universal não quer dizer que todos os seres humanos adotam a mesma definição para ele, mas, no contexto da lei, que o Estado e a Sociedade Civil podem usar dos meios que utilizar adequados para impor o “melhor conceito” ainda que o polo passivo dessa ação não esteja em concordância com ele.
Desta forma, faz-se necessário analisar as diferenças entre os conceitos de vida, seja o cristão ocidental – que aparentemente parece embasar o ordenamento jurídico – e o indígena – que não é considerado.
AVida segundo opiniões cristãs
Segundo o sítio www.estudosdabiblia.net, o velho testamento poderia dar a entender que a vida começaria somente após o nascimento: “Algumas pessoas usam Gênesis 2:7 para "provar" que a vida começa quando a pessoa respira pela primeira vez, assim sugerindo que o embrião, feto ou nascituro não tem vida.”[11]. Para o caso em tela essa discussão é inoportuna, tendo em vista que o que se discute não é o aborto, mas o interdito de vida após o nascimento.
Uma vez que é indiscutível que a vida, para a Bíblia, já estaria presente no atoda respiração, deve-se analisar quais são as características dela:
A vida humana é santificada porque o homem foi feito à imagem de Deus.
Os seres humanos foram especificamente postos acima de todas as plantas e todos os animais. Podemos matar e comer animais, mas é expressamente proibido cometer homicídio[12].
Ainda nesse sentido, o sítio www.jesusvoltara.com.br: “Por que a vida humana é tão valiosa? Porque os seres humanos foram criados à imagem de Deus[13]”. E complementa “Cada momento de vida é um dom de Deus[14]”.
Desta forma, nem mesmo os seres humanos dispõem da vida, pois “só Deus pode tirar a vida. [...] Diz que Deus deu a vida e determinou o limite para cada um de nós e diz que daquele limite não passará[15]”.
Ou seja, por ser um dom divino e por ser criado à imagem de Deus, qualquer ser humano que já tenha respirado representa a imagem do Divino, e por isso deve ser defendido, inclusive, nos casos de eutanásia, suicídio, aborto e o homicídio[16] (a questão do infanticídio indígena é considerada, para muitos cristãos, como homicídio[17]).
Associando este raciocínio com o papel evangelizador - pois “Viver altruistamente em favor do evangelho dá mais valor à vida[18]”– somado ao primeiro mandamento – “Amar a deus sobre todas as coisas[19]” e; ao quinto mandamento – “Não matar[20]”; tem-se que os cristãos devem defender a vida humana, a todo o momento e em qualquer local ou cultura.
Este conceito parece ser idêntico ao Direito universal à vida presente tanto no parecer da Comissão de Constituição e Justiça quanto no próprio projeto de lei e sua justificação. É este ponto de vista que aparentemente embasa não só o projeto de lei, como também campanhas, ONG’s e outras associações para impedir a prática do infanticídio.
O Infanticídio Indígena segundo opiniões cristãs
A universalização do conceito de vida implica na campanha pela aplicação deste conceito a todos os indivíduos, inclusive àqueles com culturas e princípios diversos aos do padrão hegemônico. Este processo compõe-se de diversos meios, inclusive a demonização da prática e interpretações do exterior para o interior, não levando em consideração a cultura inerente destes povos e o significado de suas ações.
Neste sentido está exposto o Projeto Hakani, que tem por objetivo erradicar a prática do infanticídio no Brasil. O projeto, nomeado em homenagem a uma menina indígena que supostamente fora enterrada viva, salva pelo seu avô e abandonada por sua tribo[21]. A história de Hakani embasou o Documentário “Quebrando o silêncio”, filme do gênero docu-drama (segundo o próprio sítio) que simula o soterramento da índia.
Segundo o sítio eletrônico do projeto:
A cada ano, centenas de crianças indígenas são enterradas vivas, sufocadas com folhas, envenenadas ou abandonadas para morrer na floresta. Mães dedicadas são muitas vezes forçadas pela tradição cultural a desistir de suas crianças. Algumas preferem o suicídio a isso[22]
E Define o Infanticídio Indígena como assassinato de crianças indesejadas[23]. Já o sítio do Evangeliza Brasil esclarece que:
Ainda hoje essa prática está acontecendo no Brasil; quando uma criança nasce com deficiência física, deve ser enterrada viva ou abandonada na aldeia enquanto todos vão embora. Os índios alegam que “os espíritos” roubaram a alma daquelas crianças, assim, elas têm que morrer ou ser abandonadas para que a tribo toda não seja amaldiçoada.[24].
O sítio ainda aponta sobre a possibilidade de interferir na prática, sem afetar a cultura local:
Sem ser ignorantes da questão de contextualização e aculturação, por exemplo, temos conosco que o Evangelho não tem cultura, isso é inegociável. Ele é o poder de Deus para a salvação dos pecadores, como diz o apóstolo Paulo. Poderíamos pensar sobre a cultura judaica em que o Evangelho foi recebido, no entanto, o evangelho foi colocado na cultura, ele não é judaico, ele é evangelho do Reino de Deus, incontaminado da ação humana. No que diz respeito a qualquer “prática cultural” aqui entre os indígenas no Brasil ou qualquer outro povo na Indonésia, por exemplo, deve haver prioridade do Evangelho à tal cultura ou à prática. O apóstolo Pedro queria obedecer às autoridades, desde que as mesmas fossem conforme as leis de Deus[25].
Completando que eles (os evangelizadores) têm “muito que falar, apreender e agir em favor da evangelizaçao e salvação deles[26]”
Observa-se, de modo geral a preocupação com a universalização da vida, como se toda e qualquer interpretação que não homenageie a concepção hegemônica é errada e cruel, devendo ser erradicada. Esta concepção torna-se vazia no momento em que ela impõe o seu ponto de vista sobre a cultura de outrem, supondo que o outro tem, ainda que de uma forma “primitiva”, suas concepções. Considerando então que o outro é um “eu” não evoluído, com crenças e conceitos que ainda vão se lapidar e se aperfeiçoar para alcançar o estágio em que as concepções hegemônicas se encontram.
Conclui-se que este ponto de vista é perigoso, pois as culturas não podem ser avaliadas com parâmetro no desenvolvimento de outros povos, pois estas sociedades não têm os contextos culturais, não dispõe dos mesmos recursos e sofreram influências externas distintas ao longo da história. Assim, para entender melhor o tema deve-se analisar o conceito de vida ameríndio, assim como seu ponto de vista sobre o interdito de vida.
A vida para os povos indígenas.
Ainda que a generalização não abarque totalmente as concepções de vida para estes povos, o presente tópico procura se aproximar deste ponto de vista, trazendo, ou ao menos tentando explicar melhor, qual a relação indígena aproximada deste conceito.
Em termos gerais, na cultura ameríndia os seres não nascem humanos, eles são entes que, por meio de sua interação com seus pais, ancestrais -mágicos ou não- e os indivíduos da tribo se tornam humanos. Para estes povos, o interdito não é para seres humanos, mas para entes ainda não humanizados. Um indivíduo que não tem um pai ou que não é capaz de produzir para a tribo tem uma parte de sua humanidade negada. Marianna Assunção esclarece:“Em contextos sociais baseados nas atividades de subsistência, parte da humanidade de uma pessoa está no que ela oferece ao grupo, no que contribui para a continuidade de seu mundo social[27]”.
Ainda mais elucidante, na Revista de Direito da Universidade de Brasília, v.01, n.01, de janeiro-julho, Rita Laura Segato transcreve Patricia de Mendonça Rodrigues- etnóloga dos Javaé:
O fato de que nasce como um estranho absoluto, segundo acredito, justifica a prática do infanticídio. Os Javaé não dizem isso abertamente, mas tudo indica que a justificação consciente para o infanticídio, na maior parte dos casos, é que o bebê não tem um provedor (seja porque a mãe não sabe quem é o pai, seja porque o pai a abandonou, ou por outra razão) não somente para sustentá-lo economicamente, mas, e, sobretudo, para se encarregar do requerido para os longos e complexos rituais que o identificarão novamente com seus ancestrais mágicos, conferindo-lhe sua identidade pública de corpo fechado. Cabe ao pai, principalmente, a responsabilidade social pela transformação pública do filho de corpo aberto num parente de corpo fechado, isto é, um ser social. Um filho sem pai social é o pior insulto possível para um Javaé e um motivo plenamente aceitável para o infanticídio.[28]
Segundo a Autora, para os Javaé o recém-nascido é uma alteridade radical, um “outro” não humano que deve ser humanizado ritualmente pelo carinho e cuidado providos pelos pais. Eles nascem “com o corpo aberto”, uma mistura das substâncias de seus progenitores, isto é, o sangue da mãe e o sémen do pai. Este ente deve ser humanizado, para que se constitua como sujeito individual e social.
Já nas tribos estudadas por Figueiredo Holanda, o reconhecimento da humanidade se dá por diferentes formas:
Para os Araweté, o reconhecimento da humanidade de um ser ocorre com a “tomada deconsciência” – quando a criança começa a interagir, a responder a estímuloscomunicativos – aí então recebe o nome. Um dos caminhosde transferênciada alma a uma pessoa é a nominação, um processo de aquisição depessoalidade que envolve trocas; a conquista de um nome é mais um passo naelaboração da pessoalidade e na pertença à humanidade.[29]
No mesmo sentido os Bororo acreditam que:
[...] um dos momentos de consolidação de paz na aldeia é representado pelo processo de outorga de nomes pessoais, profundamente ritmado pelo ciclo funerário. É por esta razão que, para se falar de vida, devemos, antes de mais nada, entendê-la como não-morte[30].
O que demonstra a importância da alteridade para afirmar o social, no mesmo sentido, para a cerimônia Nheemongarai:
O Nheemongaraié a principal cerimônia realizada na casa de reza e ocorre quando os cultivos tradicionais são colhidos e abençoados; o ritual deve coincidir com a época dos “tempos novos” (ara pyau), caracterizado pelos fortes temporais que ocorrem no verão. Portanto, há uma associação entre a colheita do milho e a cerimônia do seu benzimento com a atribuição dos nomes-almas, relacionados os calendário agrícola da aldeia. Tudo isso afirma sociológicas e elabora as dinâmicas relacionais que compõem o cosmos.
Além disso, para que uma criança possa ser nomeada, participando da cerimônia do batismo, é necessário que elas tenham um ano ou mais, quando seu corpo “já está firme”. Não se pode ser inserido no social sem que se dê provas de que dele podemos participar. A aquisição de um nome é outorga de pertença, uma transformação ontológica que inicia a criança em novas relações. Uma fronteira importantíssima para ser humano[31].
A partirda diferença entre as concepções, tem-se que as noções sobre o infanticídio são totalmente diversas, enquanto aquela via o interdito como um ato bárbaro e desumano, aqui esta intervenção tem um significado diferente.
O interdito de vida para os povos ameríndios
Uma vez que a vida para os ameríndios está intimamente ligada o social, tem-se que o “infanticídio” não envolve morte, pois o ser nunca foi realmente vivo:
Morrer é retirar-se plenamente do social. Chegamos então ao ponto: estamos falando de sistemas em que para morrer é necessário, antes, pertencer. Isso indica que, no intuito de pensar a negação do status de pessoa a alguns entes não estamos falando de morte, nem de crime, nem de movimento.
O despertencimento do universo social é um processo tão gradual como a aquisição de humanidade; esta é, inclusive, a função dos ritos funerários, retirar o consubstancial. Ritos que não são efetuados para neonatos que nunca vieram a pertencer. Nenhuma marca social é registrada nestes entes. Tampouco eles apresentam índices de potencial metamórfico. Contudo, é justamente por estarem fora do sistema de relações que compõe o mundo, inclusive do sistema vida e morte, humanos e não-humanos que, paradoxalmente, podem ser constitutivos de toda esta sócio-lógica ameríndia: eles falam de tudo que se ausentam. Parte indispensável de mundos onde a negação é presença de afirmação, onde o que não é elabora cuidadosamente o que deve ser, mesmo pelos vazios.[32]
Como exemplo disso, diversos relatos de missionários
que presenciaram situações de interdito de vida a um neonato e tentaram evitar, decidindo cuidar do bebê. Entretanto, os relatos etnográficos sugerem que quando o interdito de vida não se efetua, a criança começa a ser resignificada e inicia-se a sua inserção no plano doméstico. Uma socialização que encontra como determinante principal a amamentação e, portanto, o início de suaconsubstancialização. Ela começou a tornar-se humana e, por isso, suas mães reivindicaram seus parentes. As portas do social se abrem e a partir daí torna-se difícil uma extrusão.[33]
O interdito geralmente não é anunciado nem tampouco celebrado, a prática também pode ocorrer das mais diversas maneiras, como o abandono, a asfixia e até mesmo o soterramento, ainda que não seja tão comum.
Não se deve, portanto, considerar que esta prática seja um ato de monstruosidade ou um ato bárbaro, é preciso ter um olhar mais íntimo para que se possa analisar melhor o interdito, fora de julgamentos e tabus pré-concebidos.
Conclusão.
A partir da análise dos pareceres e da fundamentação da Lei em questão, foi possível demonstrar que a norma, ao denominar a vida como um “direito universal”, na verdade se propõe a universalizar uma concepção sobre o que é esse direito. O que não significa, então, que este conceito seja compreendido da mesma maneira por todas as culturas, nem mesmo que este seja um direito mínimo inerente.
Os sítios cristãos estudados permitem aludir a importância da vida humana para esta religião: uma vez que a vida é um dom sagrado e os humanos são criados à imagem do divino, qualquer atentado contra este direito seria, para os cristãos um atentado contra o sagrado. Somada esta concepção com o papel evangelizador da religião, tem-se que este conceito deve ser difundido universalmente, para salvar aqueles que estão sendo evangelizados e “intensificar” o sentido da vida dos evangelizadores.
Neste contexto, o infanticídio torna-se um atentado contra a religião – que tem sua concepção defendida pelo ordenamento jurídico. A partir daí são criados mecanismos sociais e jurídicos que buscam impedir a prática, que vão desde Leis –que supostamente não têm conteúdo moral- à demonização da prática.
A dissertação de Mestrado e a Tese de doutorado acima estudados foram de fundamental importância para se ter um olhar íntimo acerca do tema, mostrando não só que o conceito de vida destes povos é diferente, como também a possibilidade, para os indígenas, de haver o interdito de vida sem, necessariamente, haver morte.
Este novo conceito foi de fundamental importância para entender o infanticídio indígena, pois apesar de não ser considerada uma ocasião festiva, alegre ou anunciada, também não deve ser considerada uma atitude monstruosa.
Sem esgotar os problemas do relativismo cultural, deve-se atentar à possibilidade desta relativização em permitir toda e qualquer prática. O que se buscou por meio deste estudo é entender melhor o interdito de vida, sob estes dois pontos de vista distintos. Este mecanismo não significa necessariamente que a prática deva ser legítima, mas que os mecanismos para o diálogo devem ser vistos sob esta ótica, para dar forças aos movimentos de mudança internos destes povos.
A mudança aqui, também não poderá ser vista como uma “evolução”. O apoio ao abandono destas práticas deve ser visto como uma mudança exercida pelos próprios índios, de forma a favorecer o convívio entre povos, evitando ao máximo a mitigação cultural, a dominação e a imposição de conceitos.
Bibliografia.
BRASIL, Câmara dos Deputados Projeto de lei 1.057-A - Dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais. 2007
_____ Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados- Parecer sobre a Lei 1.057/2007. 2013.
HOLANDAMarianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília. 2008.
SEGATO, Rita Laura. Que cada povo teça os fios da sua história: O pluralismo jurídico em diálogo didático com legisladores. Em Revista de Direito da Universidade de Brasília, v.01, n.01, de janeiro-julhopágs, 65-92. 2014.
SUZUKI. M. A estranha teoria do homicídio sem morte. 2015
Sítios:
http://www.catequisar.com.br
http://www.estudosdabiblia.net
http://www.hakani.org
http://www.igrejacristovive.com.br
http://www.jesusvoltara.com.br
[1] BRASIL, Câmara dos Deputados Projeto de lei 1.057-A - Dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais. 2007
[2]Ioc. cit.
[3] Loc. Cit.
[4] BRASIL, 2007.
[5] BRASIL, 2007.
[6] BRASIL, 2007.
[7] Ibid.
[8] Apesar de não haver consenso sobre o exato momento em que surge a vida.
[9] BRASIL, Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados- Parecer sobre a Lei 1.057/2007. 2013.
[10] Idem.
[11]Disponível em: http://www.estudosdabiblia.net/bd91.htm
[12] Idem.
[13] Disponível em: http://www.jesusvoltara.com.br/info/vida.htm
[14] Idem.
[15] Disponível em: http://igrejacristovive.com.br/mensagens/a-favor-da-vida-nao-mataras/
[16] CF. http://igrejacristovive.com.br/mensagens/a-favor-da-vida-nao-mataras/
[17] CF. SUZUKI. M. A estranha teoria do homicídio sem morte. 2015
[18]http://www.jesusvoltara.com.br/info/vida.htm
[19] Disponível em: http://www.catequisar.com.br/texto/catequese/crisma/apostila/01/imaculada/pfo/02.htm
[20] Idem.
[21] Disponível emhttp://www.hakani.org/pt/historia_hakani.asp.
[22] Disponível em http://www.hakani.org/pt/oque_e_infanticidio.asp.
[23] Idem.
[24] Disponível em http://www.evangelizabrasil.com/2008/09/03/os-indios-sao-cidadaos-de-2%C2%AA-classe/.
[25] Idem.
[26] Idem.
[27]HOLANDA Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília. 2008. Pág. 58.
[28]SEGATO, Rita Laura. Que cada povo teça os fios da sua história: O pluralismo jurídico em diálogo didático com legisladores. Em Revista de Direito da Universidade de Brasília, v.01, n.01, de janeiro-julho págs, 65-92. 2014. Pág. 76.
[29] HOLANDA, 2008 pág. 27.
[30] VIERTLER 1976, pág. 40, apud HOLANDA 2008, pág. 27.
[31] HOLANDA, 2008 pág. 28.
[32] HOLANDA, 2008.
[33]Ibiden, pág. 42.
Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Daniel Miranda. O Projeto de Lei 1.057/2007 e as diferentes concepções sobre o Infanticídio indígena Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 ago 2015, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44918/o-projeto-de-lei-1-057-2007-e-as-diferentes-concepcoes-sobre-o-infanticidio-indigena. Acesso em: 23 dez 2024.
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