Resumo: A prisão especial, prevista no artigo 295 do Código de Processo Penal, concede tratamento diferenciado às hipóteses enumeradas no rol compreendido nos incisos I a XI. Contudo, com relação aos “diplomados por qualquer das faculdades superiores da República” (inciso VII), tem-se que tal disposição afronta o princípio da isonomia e a dignidade da pessoa humana, haja vista que a separação de presos deve ocorrer levando-se em conta a natureza do crime, a idade e o sexo do preso, e não o grau de escolaridade. A previsão contida no Diploma Processual em vigor evidencia a seletividade do sistema de justiça criminal, bem como põe em xeque os fundamentos e objetivos constitucionais: construção de uma sociedade justa e solidária, de redução de desigualdades sociais e de promoção do bem geral, sem preconceitos e outras formas de discriminação.
Palavras-chave: prisão especial. Separação de presos. Diplomados. Isonomia.
Introdução
O art. 295 do Código de Processo Penal prevê a prisão especial, instituto que beneficia determinados indivíduos em razão da função pública que exercem, da formação escolar por eles alcançada ou do exercício religioso.
A previsão faz referência à prisão cautelar, isto é, não se aplica a? prisão resultante de sentença penal condenatória definitiva.
Ensina Norberto Avena:
“A prisão especial não configura uma modalidade específica de prisão cautelar, mas sim uma forma de cumprimento dessa prisão.” (AVENA, 2015, p. 977).
O instituto ora estudado se originou em um contexto antidemocrático, durante período de supressão de garantias fundamentais e manutenção de privilégios sem respaldo na igualdade substancial entre cidadãos (governo provisório de Getúlio Vargas, em 1937).
Após, o Código de Processo Penal, de 1941, previu a prisão especial para as hipóteses compreendidas nos incisos I e XI, do artigo 295. Naquele momento, o país ainda se encontrava em pleno regime de exceção.
Mesmo após inúmeras alterações legislativas acerca da matéria, retirando algumas regalias àqueles que fazem jus à benesse, o instituto da prisão especial ainda prevaleceu no ordenamento jurídico.
Consoante expôs Fernando Tourinho Filho,
“Ultimamente, em face de algumas regalias que estavam sendo concedidas a três ou quatro pessoas recolhidas a prisão especial, a imprensa falada, escrita e televisada passou a fazer severas críticas ao sistema, sob o argumento de que todos são iguais perante a lei e, sendo assim, que a prisão especial deveria ser abolida. Tantas foram as críticas, (desarrazoadas, diga-se de passagem) que o Ministro da Justiça solicitou à Comissão encarregada da Reforma do nosso Código de Processo Penal fosse o instituto da prisão especial revisto. Dias mais tarde, a Comissão, atendendo à solicitação, manteve a prisão especial, tal como previa no art. 295, e, à guisa de regulamentação, incluiu, a seu modo, cerca de cinco parágrafos a esse dispositivo...” (FILHO, 2010, p. 466/467)
Acerca do assunto, lecionam Douglas Fischer e Eugenio Pacelli:
“Observe-se, ainda, que a previsão de prisão especial no mesmo estabelecimento da prisão comum, quando inexistente outro local, somente ingressou na ordem jurídica nacional a partir de 2001, com a Lei n.° 10.258, que incluiu os parágrafos de números um a cinco do citado art. 295, CPP.” (FISCHER; PACELLI, 2015, p. 620)
Portanto, infere-se que as alterações feitas no Código em vigor foram oriundas da Lei 10.258, de 11 de julho de 2001, que, na época, foi anunciada como a que extinguiria privilégios carcerários, procurou restringir algumas discriminações do art. 295 e determinou serem o recolhimento em local diferente e o transporte separado as distinções entre prisão especial e prisão comum.
Contudo, a simples definição de algo como “especial” necessariamente denota tratamento discriminatório entre as formas de execução do encarceramento provisório, pois somente se pode conceber tal segregação como algo “fora do comum” ou “peculiar”.
Assim, necessário que haja justificativa para a existência do discriminem, sob pena de afronta à isonomia.
Desenvolvimento
O dispositivo atinente à matéria no Código de Processo Penal dispõe:
Art. 295. Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva:
I – os ministros de Estado;
II – os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e os chefes de Polícia; (Redação dada pela Lei 3.181, de 11/6/1957)
III – os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembleias Legislativas dos Estados;
IV – os cidadãos inscritos no “Livro de Mérito”;
V – os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; (Redação dada pela Lei 10.258, de 11/7/2001)
VI – os magistrados;
VII – os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;
VIII – os ministros de confissão religiosa; IX – os ministros do Tribunal de Contas;
X – os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função;
XI – os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos. (Redação dada pela Lei 5.126, de 20/9/1966)
Pela leitura do dispositivo, tem-se que a prisão especial se divide em dois grupos no âmbito do Código de Processo Penal, por distintos motivos. No primeiro, há necessidade de segregação de determinadas pessoas do convívio com os demais presos devido às suas profissões e atividades, por estarem ligadas à Justiça Criminal (policiais, magistrados, advogados criminalistas, jurados e membros do Ministério Público) ou pelo exercício de atividades políticas e administrativas (ministros e secretários de Estado, dentre outros).
No segundo, a lei define uma espécie de relevância social e cultural da pessoa por circunstância de ordem privada, como o grau de escolaridade. Isso ampararia o “direito” desses cidadãos de não se misturar com presos “comuns”, de nível inferior de instrução, nem mesmo para serem transportados junto com eles.
No primeiro grupo, verifica-se a razoabilidade do discriminem, de acordo com a lição de Guilherme de Souza Nucci:
“Criticando igualmente, a prisão especial unicamente às pessoas que, em virtude da função exercida, antes de serem levadas ao cárcere, possam ter a sua integridade física ameaçada em convívio com outros presos. É o caso dos policiais, promotores, juízes, defensores, entre outros, que atuaram na justiça criminal. Fora daí, é manifesta confissão de inépcia do Estado de fornecer a todos os presos a mesma qualidade de vida dentro da prisão. (NUCCI, 2012, p. 596)”
De suma importância os apontamentos de Douglas Fischer e Eugenio Pacelli:
“Há apenas uma razão a justificar um tratamento minimamente diferenciado: a de evitar que determinadas pessoas sejam punidas ou discriminadas nos estabelecimentos prisionais provisórios em razão de específicas funções por elas exercidas, associadas exatamente ao aprisionamento dos demais presos, como ocorre com as autoridades policiais, determinadas testemunhas de crimes (delação premiada), os magistrados e até mesmo o Ministério Público, que exercem funções nitidamente persecutórias. Talvez seja possível incluir aí os defensores públicos e a advocacia criminal, cuja atuação pode produzir descontentamento no imaginário dos presídios. Mas, nessas hipóteses, o risco à integridade física das citadas pessoas é que justificaria a segregação em separado. Apenas isso.” (FISCHER; PACELLI, 2015, p. 618/619)
A desigualdade de fato ligada a agentes estatais atuantes na justiça criminal exige tratamento diferenciado, sendo a prisão especial critério de desigualacão eficaz para proteção de direitos fundamentais.
Contudo, a mesma conclusão não se pode chegar com relação ao segundo grupo, no qual o critério fundado em circunstância de ordem pessoal, como grau de escolaridade, não encontra fundamento racional nem compatibilidade com os princípios consagrados na Constituição da República.
A proteção à dignidade e à integridade do preso (art. 5o, XLIX, da CR) dirige-se a todos, e não há justificativa para a distinção promovida pelo art. 295, VII, do CPP, ainda mais se for considerada a ausência de relação entre prisão e grau de escolaridade.
Na prática, o que se tem é a seletividade social e econômica, característica atual do Direito Penal que merece árduas críticas.
Assim, não há motivos que justifiquem a separação dos diplomados dos demais presos provisórios, haja vista que a escolaridade não é requisito previsto constitucionalmente. Além disso, não se evidencia qualquer vulnerabilidade dos diplomados que justifique a benesse legal.
Merece destaque o fato de que a incapacidade do Estado em promover condições dignas de encarceramento para todos não justifica a concessão a somente parte da população carcerária.
Em posição contrária, expõem Sérgio Ricardo de Souza e Willian Silva Souza:
“O ideal é que o Estado busque tratar os indiciados e acusados, obviamente, ainda não condenados, de forma a dar-lhes mais segurança. Como isso ainda não foi alcançado, o legislador seleciona dentre eles os que, pela sua vida, funções e serviços prestados à coletividade, merecem maior consideração pública.” (SOUZA; SOUZA, 2010, p. 494)
Cabe destacar, na mesma linha, a exposição de Fernando Tourinho Filho:
“Não se trata de concessão a pessoas, não se trata de privilégio para certas pessoas, mas de uma atenção a certas pessoas, levando-se em conta exclusivamente, a relevância, a majestade e a importância do cargo ou função que essa ou aquela pessoa desempenhe no cenário jurídico-político da nação. Nesse sentido, de Tornaghi (Manual, cit., p. 272). Irrepreensível o ensinamento de Basileu Garcia: ‘Não sendo possível, por deficiência de ordem material, facultar a todos os acusados, ainda não condenados, um tratamento que resguarde os riscos de injustiça, imanentes ao caráter preventivo da medida privativa de liberdade, não há mal em que isso seja feito pelo menos relativamente a alguns acusados. Dentre eles os que, pela sua vida, funções e serviços prestados à coletividade, merecem maior consideração pública ou que, pela sua educação, maior sensibilidade devem ter para o sofrimento do cárcere.” (FILHO, 2010, p. 466)
Embora sejam os autores mencionados de notória envergadura, não se pode coadunar com a argumentação exposta. A afronta à isonomia é nítida frente ao tratamento privilegiado e injustificado a determinados cidadãos – no caso, os diplomados -, e não pode servir como pretexto para atenuar a ausência de recursos materiais necessários para tratamento digno a todos os presos.
Também não se pode aceitar o sustentado por Eduardo Espínola em sua obra, na qual defendeu as ideias de Lemos de Britto:
“[...] e? natural que se conceda o privilégio de ficar em estabelecimento diverso do cárcere comum, livres do contacto com a rale? dos criminosos, as pessoas de qualidade, pelas funções que ocupam, pela sua educação e instrução, pelos relevantes serviços públicos que prestem ou tenham prestado.” (ESPÍNOLA, 1976, p. 316/317)
A previsão de separação dos diplomados no cárcere provisório também viola o artigo 5o, XLVIII, da Constituição Federal, no sentido de que a distinção deve ocorrer em decorrência da natureza do delito, da idade e do sexo do apenado, e não do seu grau de escolaridade, pois é clarividente que presos por crimes graves devem ficar separados dos encarcerados por infrações leves; adultos mais velhos separados de jovens; homens, de mulheres. Dessa forma, se evita a influência deletéria ou violência de autores de crimes graves sobre os demais presos e sobre indivíduos mais jovens, bem como, por razões óbvias, se evita a convivência entre homens e mulheres no ambiente carcerário.
Sobre o tema, expõe Guilherme de Souza Nucci:
“Entretanto, faz a lei uma discriminação injusta e elitista. Por mais que se argumente que determinadas pessoas, por deterem diploma de curso superior ou qualquer outra titulação, muitas vezes não acessíveis ao brasileiro médio, merecem um tratamento condigno destacado, porque a detenção lhes é particularmente dolorosa, é fato que qualquer pessoa primária, sem antecedentes, encontra na prisão provisória igual trauma e idêntico sofrimento.” (NUCCI, 2012, p. 595)
Finalizando o raciocínio, o renomado autor expõe:
“Nenhum mal – além daquele que a prisão em sua causa – pode haver para um engenheiro dividir o espaço com um marceneiro, por exemplo, se ambos são pessoas acusadas da prática de um delito pela primeira vez. Por que haveria o portador de diploma de curso superior merecer melhor tratamento do que o outro?” (NUCCI, 2012, p. 595)
Crítica pertinente à segregação cautelar própria dos graduados se faz no sentido de que os membros da elite do país deveriam, por terem tido acesso à privilegiada educação, zelar pelo bom comportamento social, fazendo retornar à comunidade o benefício que receberam (alto grau de escolaridade).
Mais uma vez, lúcidas as considerações de Douglas Fischer e Eugenio Pacelli:
“Eventuais méritos – a Lei fala até em livros de méritos – na vida pregressa do aprisionado, a relevância do cargo ou função pública, o título de bacharel ou qualquer outra particularidade na formação do preso não justificam, em absoluto, qualquer primazia na compaixão pública. Talvez até pelo contrário: membros das elites econômicas e políticas – o que não é o caso da maioria dos agraciados com a prisão especial – deveriam se conduzir com a maior lisura e atenção às regras do jogo (social).” (FISCHER; PACELLI, 2015, p. 619)
Por fim, pode-se entender que a prisão cautelar dos diplomados em nada acrescenta à igualdade e aos valores democráticos protegidos pela Constituição Federal, haja vista que a hipótese legal considerou um dado objetivo ligado a um título que a pessoa tem, em muitas das vezes, por pertencer a uma classe social mais privilegiada. Reprovável não ter se baseado no que é realmente importante: a pessoa e suas características: personalidade, caráter, vida pregressa, dentre outros vetores.
Nesse sentido, ressalta Guilherme de Souza Nucci:
“O foco primordial deveria ser outro: a prisão é uma exceção e não a regra, razão pela qual, se for decretada, o tratamento dado aos detidos deveria pautar-se pela pessoa, seu caráter, sua personalidade, sua periculosidade e jamais por títulos que detenha. Não se vai construir uma sociedade justa separando-se brasileiros por castas, ainda que em presídios. O homem letrado e culto pode ser tão delinquente quanto o ignorante e analfabeto, por vezes até pior, diante do conhecimento que detém. Aos poucos, talvez, amenizando as regalias da prisão especial, possamos atingir o estado de igualdade exigido por um país que se pretende verdadeiramente democrático.” (NUCCI, 2012, p. 596)
Portanto, tem-se que a hipótese ora estudada – prisão especial de diplomados -, é desarrazoada e está em dissonância com a Constituição Federal, que não autoriza separar cidadãos presos porque uns são mais instruídos do que outros, não havendo justificativas no âmbito jurídico, ético ou sociológico para a aceitação do discrímen.
Conclusão
O princípio da isonomia permite o tratamento diferenciado em algumas das hipóteses enumeradas no artigo 295 do Código de Processo Penal em razão do risco criado pelo exercício de funções públicas no sistema de justiça criminal, bem como pelo risco de encarceramento em prisão comum de pessoas que exercem outras atividades.
Entretanto, não há razão nem critério razoável, para conferir prisão especial a “diplomados por qualquer das faculdades superiores da República”.
A previsão contida no inciso VII do citado artigo 295 contribui para perpetuação de odiosa seletividade do sistema de justiça criminal, reafirmando a falta de solidariedade, a desigualdade e a discriminação que caracterizam parcela da estrutura social do Brasil.
Dessa forma, não guardando conexão lógica, racional, digna e justa com a prisão especial, afronta-se a essência do conceito de República, a dignidade do ser humano, a igualdade material de tratamento que deve reger as ações do Estado perante os cidadãos, assim como a finalidade de construção de uma sociedade justa e solidária, de redução de desigualdades sociais e de promoção do bem geral, sem preconceitos e outras formas de discriminação.
Referências
AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. 7 ed. São Paulo: Método, 2015.
ESPÍNOLA, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1976.
FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal. 32 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
FISCHER, Douglas. PACELLI, Eugenio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2015.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
SOUZA, Sérgio Ricardo de. SOUZA, William Silva. Manual de Processo Penal Constitucional: pós-reforma de 2008. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
Analista do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito Processual pela UNISUL e em Direito Público pela ANAMAGES. Pós-graduanda em Direito de Família pela UCAM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GUATIMOSIM, Ana Carolina Motta. A prisão especial para os diplomados em curso superior e sua ausência de justificação em face do princípio da isonomia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 ago 2015, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44950/a-prisao-especial-para-os-diplomados-em-curso-superior-e-sua-ausencia-de-justificacao-em-face-do-principio-da-isonomia. Acesso em: 23 dez 2024.
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