RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar a perspectiva com que jurisprudência brasileira têm encarado o cabimento dos princípios da ampla defesa e do contraditório no âmbito do inquérito civil público. Se, por um lado, este instrumento pré-processual que subsidia a ação civil pública tem sua gênese anteriormente a promulgação da Constituição de 1988, com uma nítida natureza inquisitória, por outro, há um razoável entendimento doutrinário de que esse instituto deve compatibilizar-se sistemática e teleologicamente com a arquitetura principiológica da nova ordem constitucional, em que os valores democráticos exigem garantias para os investigados, não se concebendo a existência de instrumentos jurídicos completamente descolados dessa lógica, sob pena de retorno ao autoritarismo. A jurisprudência brasileira, entre idas e vindas, ainda encontra-se razoavelmente distante de compatibilizar os institutos ora cotejados, divorciando-se cada vez mais de uma solução mais harmônica com os valores fundamentais esboçados no texto constitucional e consolidando-se refratária ao cabimento destas garantias em sede de inquérito civil.
Palavras chave: Inquérito Civil Público. Ampla Defesa. Contraditório. Jurisprudência.
INTRODUÇÃO
O inquérito civil público, criado pela Lei nº 7.347, de 1985, e incluído em grau constitucional dentre as competências exclusivas do Ministério Público, tem natureza jurídica de procedimento administrativo, ou seja, trata-se de procedimento pré-processual, cujo propósito é subsidiar a propositura da ação civil pública. Antecede a ação civil pública e é desenvolvido no âmbito interno do Parquet, tendo sido concebido originariamente sob uma perspectiva não dialética e essencialmente inquisitória, em que os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório restam sobejamente mitigados numa abordagem tradicional deste instrumento. Entretanto essa abordagem merece uma releitura sob a luz do texto e dos princípios norteadores da Carta Magna, já que a gênese o Inquérito Civil antecede a promulgação da Constituição de 1988 e deve com ela harmonizar-se para a sua perfeita recepção pela nova ordem constitucional instalada.
A jurisprudência enfrentou em inúmeras oportunidades o cabimento ou não dos princípios da ampla defesa e do contraditório no âmbito do inquérito civil público, avançando no sentido de reconhecer a natureza antidemocrática de se admitir um procedimento absolutamente inquisitório, entretanto essa “evolução” de pensamento foi demasiadamente errática, marcada por avanços e recuos nos julgados, que ainda situam a questão em um campo bem distante de uma solução verdadeiramente democrática, em geral decidindo pelo afastamento da incidência destas garantias em procedimento desta natureza.
O Ministério Público cada vez se consolida mais na cena político-jurídica como uma instituição pemanente e fundamental na defesa dos valores republicanos e o desenvolvimento do seu múnus passa invarialmente pelo ajuizamento de ações civis públicas, cujo propóstio é obstar práticas ilícitas ensejadoras de lesão, ameaça de lesão ou dano a interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Há, inclusive, quem defenda que o Ministério Público encontra-se alçado, ainda que de modo não admitido expressamente pelo Constituinte, como um franco Quarto Poder da República, dada a sua importância no quadro das instituições brasileiras e seu importante desempenho na qualidade de defesa da ordem jurídica e de fiscal da lei.
A posição expansionista do constituinte o fez ser muito ambicioso com relação às atribuições do Ministério Público, o que é louvável, entretanto essa constatação descortina o longo processo no sentido de consolidação de suas atribuições a ainda se percorrer. Com a Carta Magna de 1988, o Ministério Público migra da estrutura interna do Poder Executivo para uma posição de independência, de Função Essencial à Justiça, e agrega inúmeras novas competências, se distanciando, de outra forma, de alguns antigos encargos que poderiam comprometer essa nova e desejada autonomia, como a advocacia pública, por exemplo. Essa ação do constituinte originário é absolutamente compreensível, visto que o propósito maior da Assembleia Nacional Constituinte era virar em definitivo a amarga página da História Brasileira de autoritarismo e desrespeito às aos direitos fundamentais que marcou indelevelmente o Regime Militar.
Entretanto, esse sobressalto do legislador implicou em uma série de dificuldades fáticas, na medida em que a Constituição resultou excessivamente analítica e programática e antigos institutos do Direito pátrio, recepcionados pelo Constituinte, careciam ou ainda carecem de uma releitura sob a nova perspectiva, que é crescentemente democrática, já que muitos deles foram forjados em regimes autocráticos.
Há que se refletir se, embora expressamente recepcionado pela Constituição, conforme se estatue do seu art. 129, o Inquérito Civil ainda pode se apresentar de modo estritamente inquisitório, sem derrogações, e permanecer sendo administrado ao largo de direitos fundamentais orientadores da nova ordem ou mesmo, sendo mais ambicioso, se os instrumentos inquisitivos não deveriam ter sido abandonados em definitivo na virada e desonrosa página do regime autoritário. Como essa discussão é sensível e comporta ampla margem de pesquisa, o presente trabalho limitar-se-á a abordar como a jurisprudência brasileira tem efetivamente se posicionado acerca do tema, objetivando retratar como se relacionam o inquérito civil público e os direitos à ampla defesa e ao contraditório na atualidade.
A AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO NO INQUÉRTIO CIVIL PÚBLICO E CONJUNTURA JURISPRUDENCIAL.
Os princípios do contraditório e da ampla defesa podem ser expressamente estatuídos do texto constitucional, que em seu art. 5º, LV, dispõe ser “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são garantidos o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
É bom que desde logo se destaque que o dever de observância do contraditório não se limita ao processo jurisdicional, mas também toca o processo administrativo, sendo seu propósito fundamental assegurar a todos a possibilidade de resistir, conforme os meios admitidos em Direito, a uma pretensão punitiva oficial de qualquer natureza.
Oportuno também que se defina qual a abrangência da expressão “processo administrativo” do texto constitucional. Parece mais adequado entende-lo nos seguintes termos: qualquer sequência sistemática de atos administrativos do qual possa resultar restrição de direitos. Assim, obviamente não há que se falar em contraditório num processo administrativo de mera gestão, do qual não resulte qualquer restrição ao patrimônio jurídico de um indivíduo. Mas, por outro lado, caso se esteja diante de feito administrativo do qual possa resultar tal redução de direitos, ainda que ausente qualquer previsão expressa de cabimento do contraditório e da ampla defesa, impositiva é a observância destes princípios-garantias, pois tal exigência decorre diretamente do texto constitucional.
Assim, o contraditório extrapola em muito os limites da jurisdição, abrangendo qualquer procedimento de natureza administrativa de que possa resultar execpção do patrimônio jurídico.
Segundo GONÇALVES (2012, p. 62):
“Do contraditório, resultam duas exigências: a de se dar ciência aos réus e da existência do processo, e aos litigantes de tudo o que nele se passa; e a de permitir-lhe que se manifestem, que apresentem suas razões, que se oponham à pretensão do adversário. O juiz tem de ouvir aquilo que os participantes do processo têm a dizer, e, para tanto, é preciso dar-lhes a oportunidade de se manifestar, e ciência do que se passa, pois sem tal conhecimento, não terão condições adequadas para se manifestar.”
O objetivo fundamental do princípio do contraditório é fulminar a pretensão punitiva do Estado quando apartada de um lógica dialética, em que o indivíduo sob o qual recaia tal aspiração fique privado de conhecer o teor do que se lhe imputa ou que reste impossibilitado de interferir, observado o devido processo legal, nessa produção de um juízo de culpabilidade.
A ausência do contraditório remonta o autoritarismo e não é exagero dizer que a sua presença em uma ordem jurídica qualquer é proporcional ao grau de aperfeiçoamento da democracia nela encontrada, pois num Estado democrático de Direito é inconcebível que um indivíduo não possa tomar conhecimento das acusações que lhe são opostas ou que não possa interferir neste processo, insurgindo-se diante da versão contra ele apresentada.
Segundo NERY JUNIOR (1995 apud MORAES, 2014, p. 111):
“o princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em manifestação do princípio do Estado de Direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação, quanto o direito de defesa são manifestação do princípio do contraditório”.
O princípio da ampla defesa, como reflexo direto do princípio do contraditório e sem o qual não seria viável, diz respeito à garantia de se utilizar todos os meios de prova admitidos em Direito (excepcionalmente se admitem inclusive provas em desconformidade com a ordem jurídica), de modo a assegurar que um indivíduo acusado da prática de certo ato ilícito possa defender-se amplamente desta imputação, bem como assegura a recorribilidade das decisões e o conhecimento de sua versão dos fatos pelo Estado-juiz.
A ampla defesa assegura desde o direito a fazer-se representar por advogado, que levará a cabo a defesa técnica do acusado, até a garantia de utilizar-se amplamente dos meios de prova existentes para a preservação do direito de primeira geração e de valor máximo, qual seja a liberdade. É decorrência direta do princípio da ampla defesa a garantia de ter as razões apresentadas em sede de defesa efetivamente conhecidas e apreciadas pelo julgador, não se podendo admitir qualquer virtualidade na defesa, devendo ela ser sempre o mais efetiva possível.
A amplitude da defesa obviamente impõe acesso irrestrito aos documentos instrutórios que acompanham a acusação, com antecedência suficiente para que o acusado possa viabilizar sua contestação aos fatos a ele atribuídos, sendo que a ocultação de diligências ou sonegação de informações ao acusado só se sustenta em excepcionalíssima hipótese, sob pena de comprometimento dos valores democráticos da Constituição de 1988.
O ilustre constitucionalista e ministro da Corte Suprema Gilmar Ferreira Mendes, ao avaliar os contornos do princípio da ampla defesa bem anota o que ela comporta as seguintes dimensões (MENDES e BRANCO, 2012, p. 500):
A) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;
B) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;
C) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas (Cf.Pieroth e Schlink, Grundrechte -Staatsrecht II, Heidelberg, 1988, p. 281; Battis e Gusy, Einführung in das Staatsrecht, Heidelberg, 1991, p. 363-364; Ver, também, Dürig/Assmann, in: Maunz-Dürig, Grundgesetz-Kommentar, Art. 103, vol IV, no 85-99).
Na diferenciação entre a ampla defesa e o contraditório, que, embora nutram estreiteza de significado, não se confundem, é elucidativa a lição do eminente constitucionalista Alexandre de Moraes, abaixo transcrita (MORAES, 2014, p. 111):
“Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.”
Nas irretocáveis lições do eminente processualista Hugo Mazilli, o inquérito civil, cuja atribuição é conferida com exclusividade ao Ministério Público, não cabendo aos demais legitimados à propositura da ação civil pública o seu manejo, nasceu em estreita semelhança com o inquérito policial, objetivando a constituição de suficientes meios de prova para que o Parquet lograsse êxito na defesa dos direitos difusos e coletivos em sede do processo civil. Oportuno registrar que o inquérito civil não é indispensável para a propositura da ação civil pública, mas altamente recomendável, quando não se dispuser de um acervo probatório suficiente à sua instrução.
Para MAZZILLI (2000, p.4):
O inquérito civil é um procedimento administrativo investigatório a cargo do Ministério Público; seu objeto é a coleta de elementos de convicção que sirvam de base à propositura de uma ação civil pública para a defesa de interesses transindividuais — ou seja, destina-se a colher elementos de convicção para que, à sua vista, o Ministério Público possa identificar ou não a hipótese em que a lei exige sua iniciativa na propositura de alguma ação civil pública.
A gênese do inquérito civil para a ação civil pública em estreita semelhança de papéis com o que desempenha o inquérito policial para o processo penal muito tem a informar sobre o evidente conflito entre os valores democráticos e os modelos inquisitivos, pois o inquérito policial é, possivelmente, o instituto jurídico mais anacrônico na atual ordem jurídica, cuja origem remonta os tempos do Império e certamente é de difícil inserção no Estado democrático de Direito. Como bem anota NUNES (2013, p.116), “hodiernamente, pode-se dizer que o inquérito policial é anacrônico e tem sua utilidade questionada frente à Constituição brasileira, democrática e cidadã, e ao sistema acusatório, por ela adotado”.
De maneira geral, entende-se pela desnecessidade de observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório no Inquérito Civil, quer seja pelo silêncio constitucional a este respeito, quer seja pelo próprio formato inquisitorial deste instituto, em que não há a figura formal de um acusado ou de produção de prova em seu sentido processual, mas antes um procedimento de caráter pré-processual, que se destina à colheita de informações para propositura da ação civil pública.
Entretanto, essa percepção estritamente inquisitorial não parece se harmonizar com o espírito da Constituição, embora a jurisprudência dominante entenda pelo descabimento do direito de defesa, sob a alegação genérica da natureza inquisitorial e administrativa deste instituto jurídico, alegações que, por si só, não teriam, sob a nova ordem constitucional, robustez para afastar a incidência dos direitos fundamentais do contraditório e ampla defesa, já que também são extensíveis aos processos administrativos e a inquisitoriedade se fragiliza num contexto de um Estado Democrático de Direito.
Na condução do Inquérito Civil, o Parquet se reveste de poderes de natureza instrutória, na medida em que, ciente de lesão ou risco de lesão a um interesse que possa motivar sua atuação, ele pode ouvir interessados e testemunhas, requerer documentos, realizar inspeções pessoalmente, requisitar perícias. Como estes “elementos para a propositura de ação civil pública” não foram produzidos sob a observância da ampla defesa e do contraditório, não deveriam ser valorizadas no processo, mas na prática frequentemente o são, conforme se depreende da fala de Hugo Nigro Mazzilli, “quando regularmente realizado, o que nele se apurar tem validade e eficácia em juízo, como as perícias e inquirições” (MAZZILI, 2009, p. 53).
Da conclusão do inquérito civil, pode resultar a celebração de termo de ajustamento de conduta-TAC, com natureza de título extrajudicial, em que se estabelecem obrigações para que a parte investigada regularize sua situação. Por certo que a subscrição do TAC é voluntária pela parte, mas é indiscutível que tem certo potencial coercitivo, já que a parte o aquiesce com receios da repercussão processual e em face da valoração excessiva que os indícios colhidos possum no âmbito probatório da ação civil pública.
Ora, se do inquérito pode resultar contornos obrigacionais e até, ainda que de forma transversal, dar causa a restrição de direito ao suposto causador do dano, seria pertinente a harmonização da natureza inquisitória com a possibilidade de defesa, com vistas a que as partes interessadas e que suportarão eventuais ônus decorrentes deste procedimento possam participar da formação da convicção que resultará da conclusão do inquérito, inclusive colaborando com o moderador e democrático exercício da dialética processual.
Como já adiantado, é pacífico o entendimento de que a ampla defesa e o contraditório são aplicáveis aos procedimentos administrativos, notadamente quanto àqueles de que possam decorrer diretamente a aplicação de sanção ou restrição a direito em geral. Desta feita, apurados quais são os resultados possíveis de um inquérito civil, e não é possível constatação diversa da já esboçada anteriormente: se desse procedimento administrativo decorrem elementos que podem ser valorados com efeito de prova e ensejar restrições de direito, que vão do efetivo dano à imagem do investigado ou coerção à subscrição de termo de ajustamento de conduta, não é amissível que o Ministério Público fustigue os princípios constitucionais de que tem o dever de zelar, sob pena de desastroso flerte com o autoritarismo.
Avance-se, pois, à análise de como a jurisprudência brasileira enxerga essa questão que, como dito, afigura-se longe de deixar de ser controversa entre os aplicadores e estudiosos do Direito.
A jurisprudência brasileira tem se consolidado no sentido de entender pelo descabimento da ampla defesa e do contraditório em sede de inquérito civil, dada a sua natureza inquisitória. Neste sentido, colacionem-se os seguintes trechos de ementas de julgados que enfrentaram a temática:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INQUÉRITO CIVIL. NATUREZA INQUISITORIAL. DECISÃO DE RECEBIMENTO DA INICIAL. PRESENÇA DOS REQUISITOS. INDÍCIOS DE OCORRÊNCIA DE ATO ÍMPROBO.
1 – O inquérito civil público é procedimento de natureza inquisitorial, não estando, portanto, submetido aos princípios do contraditório e ampla defesa. Precedente deste Tribunal. [...]
(Agravo de Instrumento nº 0006048-53.2013.4.01.0000/Mg, TRF 1ª Região, 3ª Turma, Rel. Juiz Convocado Klaus Kuschel, DJ p.1366 de 06/12/2013)
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INOBSERVÂNCIA. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL. CONTRADITÓRIO. AMPLA DEFESA. INQUÉRITO CIVIL PÚBLICO. NATUREZA JURÍDICA. COMPETÊNCIA. INSTAURAÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO. ART. 129, III, CF/88. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. IMPOSSIBILIDADE.
[...]
3. O inquérito civil público tem natureza inquisitorial e investigatória, razão pela qual é unilateral, sem necessidade de observação do direito ao contraditório e à ampla defesa, servindo suas conclusões de fundamento para que se instaure o procedimento judicial, com vistas ao ressarcimento do erário, quando for o caso.
[...]
(AC 2003.35.00.019749-8/GO, 3ª Turma, Rel. Desembargador Federal Tourinho Neto, D.J. 10/03/2006) (grifei)
A decisão abaixo é ilustrativa de como os tribunais pátrios ignoram as consequências restritivas de direito que decorrem diretamente do inquérito civil, independentemente da propositura da ação civil pública respectiva, adotando a falaciosa alegação de que dele diretamente não há qualquer repercussão jurídica, o que, conforme exposto anteriormente, não guarda relação com a verdade, já que são inúmeros os reflexos imediatos deste procedimento pré-processual:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO ADMINISTRATIVO E DIREITO PROCESSUAL CIVIL COLETIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INQUÉRITO CIVIL. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO INQUISITORIAL. INEXISTÊNCIA DO DIREITO DE DEFESA. ADMISSIBILIDADE DA PETIÇÃO INICIAL. IN DUBIO PRO SOCIETATE. IMPROVIMENTO DO RECURSO.
[...]
2. Tomando-se por base a natureza inquisitorial e apuratória do inquérito civil, depreende-se que a finalidade desta investigação é, tão-somente, a de verificar a suposta lesão ao direito coletivo noticiada ao Parquet, quer pela via da representação, quer pela via da atuação oficiosa de seus próprios membros, buscando, ao final, a solução mais adequada para se proteger o direito transindividual. Daí é que, não sendo o inquérito civil um procedimento administrativo hábil à aplicação de qualquer sanção ou, mesmo, de qualquer restrição aos direitos individuais do investigado, não há que se falar, nem em direito constitucional de ampla defesa e contraditório, e, muito menos, em nulidade do inquérito civil. Destarte, resta afastada a tese de nulidade desta ação coletiva.
[...]
(AG 201302010001696,TRF 2ª Região, Rel. Des. Guilherme Calmon, DJ. 20/05/2013) (grifei)
A Corte Suprema também tem entendido de modo persistente que as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa têm sua incidência afastada no âmbito do inquérito civil, dada a sua natureza inquisitiva e natureza administrativa e pré-processual, muito embora estes elementos não sejam suficientes para afastar a aplicabilidade destes imperativos constitucionais, como visto. Reproduzo os trechos centrais de julgamentos do Supremo Tribunal Federal a este respeito:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL. ADMINISTRATIVO. DESNECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA NO INQUÉRITO CIVIL DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO ”
(RE 481.955-ED, Rel Min. Carmen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 10.5.2011).
“INQUÉRITO. AGRAVO REGIMENTAL. SIGILO BANCÁRIO. QUEBRA. AFRONTA AO ARTIGO 5º, X E XII, DA CF: INEXISTÊNCIA. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. CONTRADITÓRIO. NÃO PREVALECE. I A quebra do sigilo bancário não afronta o artigo 5º, X e XII, da Constituição Federal (Precedente: PET. 577). II - O princípio do contraditório não prevalece na fase inquisitória (HHCC 55.447 e 69.372; RE 136.239). Agravo regimental não provido”
(Inq 897-AgR, Rel. Min. Francisco Rezek, Plenário, DJ 24.3.1995). (grifei)
Uma consequência da maior gravidade destas decisões é no sentido de que os “indícios” construídos no curso do inquérito civil não têm valor probatório stricto sensu ou não deveriam tê-lo, já que não foram submetidos ao crivo do contraditório e da ampla defesa, de modo que seu valor probante só deveria despontar quando fossem sistematicamente filtrados pelos princípios dialéticos do processo. Entretanto, os tribunais reconhecem valor probatório relativo a estes indícios, só afastáveis quando contrapostos a provas “fortes” ou provas no sentido próprio da expressão, ou seja, aquelas que, de acordo com a técnica processual, foram submetidas ao crivo da ampla defesa e do contraditório. É por se dizer: impõe-se ao acusado um verdadeiro ônus de inocentar-se, o que claramente não se coaduna com a Teoria Processual Moderna. Neste sentido, veja-se o seguinte julgado:
PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – INQUÉRITO CIVIL: VALOR PROBATÓRIO.
[...]
2. As provas colhidas no inquérito têm valor probatório relativo, porque colhidas sem a observância do contraditório, mas só devem ser afastadas quando há contraprova de hierarquia superior, ou seja, produzida sob a vigilância do contraditório.
[...]
(REsp 849841 MG 2006/0100308-9, Segunda Turma, Rel, Min. Eliana Calmon, 28/08/2007) (grifei)
Neste sentido, é muito esclarecedora a posição de Mattos em sucinto artigo acerca do tema (MATTOS, 2013):
“Ainda que sirva inicialmente o inquérito civil para preparar a convicção do autor da futura ação (Ministério Público) as informações nele contidas devem ser debatidas amplamente na esfera judicial, por não ter sido, necessariamente, obedecido o crivo do contraditório nessa fase administrativa de investigação, não possuindo valor de hierarquia superior àquelas provas que são produzidas em juízo.” (grifei)
A admissão de que provas em sentido próprio podem afastar as provas relativas, ou de acordo com a técnica processual, indícios colhidos no curso do inquérito civil, é o mínimo para que o processo de julgamento de uma ação civil pública não perca por inteiro sua natureza dialética e coloca o ordenamento pátrio em uma posição muito conservadora e temerária quanto à temática, pois sequer deveria atribuir valor probatório, ainda que relativo, aos elementos colhidos na fase inquisitorial que não tivessem se aperfeiçoado como prova durante a fase de instrução da ação civil pública, através da ampla defesa e do contraditório.
O acusado larga em posição demasiado fragilizada quando do ajuizamento da ação civil, tendo que produzir provas que o inocentem para contrapor aos indícios do inquérito civil, sob pena de condenação, já que o último julgado colacionado deixa cristalino que estes indícios possuem de per se valor probatório relativo, que só podem ser afastados quando contrapostos a provas em sentido estrito, que tenham efetivamente se submetido ao contraditório e à ampla defesa.
Veja-se que, embora o ônus acusatório seja do Ministério Público, o acusado tem o ônus de demonstrar sua inocência, o que certamente destoa da lógica processual vigente (que permite inclusive que o réu nada faça em sua defesa sem ser puramente em decorrência dessa inação condenado, devendo mesmo nesse caso, haver o cotejamento dos indícios da acusação para que se possa formar a convicção condenatória fundada na verdade real, com a nomeação de defensor dativo). É por se dizer que há uma criação de um ônus de demonstração da inocência, escandalosamente inconstitucional, sob pena de condenação apenas com base nos indícios do inquérito. É neste espírito que já se posicionou o STF, in verbis:
“Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei nº 88, de 20/12/37, art. 20, n. 5). Precedentes.” (HC 83.947/AM, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Na constatação desta franca desvantagem processual que não se coaduna com a arquitetura constitucional do processo, a lição de MATTOS é também bastante esclarecedora (MATTOS, 2013):
“Não resta dúvida que o investigado possui desvantagem na posição pré-processual do inquérito civil, por ser unilateral e inquisitivo o respectivo procedimento, conduzido diretamente pelo Ministério Público. Mesmo sendo de competência exclusiva do parquet, tem-se que ele não poderá afastar o princípio da legalidade, produzindo ou criando situações ilícitas, que serão declaradas imprestáveis perante o Poder Judiciário, tomando-se como exemplo o caso do afastamento do sigilo de dados do investigado, que somente poderá ser implementado mediante autorização judicial.”(grifei)
Prossegue em mesmo sentido (MATTOS, 2013):
“No nosso país, deixando de lado a circunstância da unilateralidade da prova produzida pela parte instrumental em fase administrativa de investigação dos fatos, o Superior Tribunal de Justiça, decidiu que a prova colhida no inquérito civil inquisitorialmente não se afasta por mera negativa, apesar de possuir valor probatório relativo, podendo ser contraditada pela contraprova de hierarquia superior, ou seja, aquela produzida em respeito ao contraditório.”(grifei)
A possibilidade de ocorrência de violações no curso do inquérito civil ganha um potencial ainda maior nos casos de relevo nacional e notória repercussão, já que o afã punitivo que infelizmente contamina certas instâncias do Ministério Público, notadamente as mais altas, por vezes pode levar o membro presidente do inquérito a lançar mão de recursos abusivos, cujo desvio é de difícil comprovação pelo acusado, já que a natureza inquisitória deste instrumento afasta princípios fundamentais como a publicidade dos atos, o contraditório e, por conseguinte, a ampla defesa.
Obviamente que não há que se falar em contraditório em atos cujo sigilo é fundamental para que possuam efetividade e viabilizem a comprovação de ilícitos, como é o caso de escutas telefônicas, todavia, há atos inquisitoriais que poderiam guardar perfeita harmonia com o espírito democrático dos direitos fundamentais, mas que, pela falta de seletividade do Judiciário e interpretação amplíssima pelo não-cabimento destas prerrogativas, finda por posicionar todos os atos do inquérito civil em um limbo autoritário, ao total arrepio da participação daquele que pode ter seus direitos diretamente restringidos pelo deslinde deste feito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um marca indelével e infeliz da experiência política brasileira quanto aos direitos fundamentais é o autoritarismo: em 125 anos de experiência republicana, atravessados por inúmeros golpes de Estado e turbulências que distanciaram o povo brasileiro da experiência participativa, pode-se dizer que menos de meio século experimentou efetiva participação popular na definição dos rumos centrais do poder, através do voto direto, secreto, periódico e universal.
Certamente essa cultura do autoritarismo deixou traumas a serem ainda enfrentados pela cidadania brasileira e a constatação de que, após 26 anos de promulgação da Constituição Cidadã, ainda existem instrumentos em que se dá guarida a um modelo inquisitorial, em que a fruição de garantias constitucionais e direitos fundamentais ainda resta afastada sob a alegação falaciosa de que se trata de instrumento administrativo do qual não decorre sanção direta, o que, como visto, não é verdadeiro.
Se a Constituição deixa cristalina a intenção condicionar, sob a batuta de sua entusiasmada aspiração democratizante, a pretensão punitiva do Estado aos princípios processuais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, trate-se de processos propriamente ditos (efetivadores da jurisdição) ou de procedimentos administrativos, o Judiciário brasileiro, por outro lado, insiste em não balizar o instituto do inquérito civil sob esse paradigma.
Sendo a instituição do inquérito civil pensada em sintonia fina com o já notoriamente anacrônico instituto do inquérito policial, sendo aquele para a ação civil pública o que este é para a ação penal, pode-se dizer que, por uma inadequada e viciada visão paradigmática do Judiciário, que os bons ventos da Constituição ainda não sopraram sobre os nefastos institutos inquisitoriais, mantendo-os vivos ainda hoje e em perfeito funcionamento.
É inconteste que a alegação de que o inquérito não repercute diretamente sanções sobre o investigado se trata de afirmação sofismática, já que dele podem decorrer inúmeros efeitos restritivos para o patrimônio jurídico do indivíduo.
É contraditório que o Ministério Público, a pretexto de defender os direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, aja ao arrepio do que prescreve o texto constitucional, num afã excessivamente punitivo, capitalizado pelas afobações midiáticas, que, unidas à tradição autoritária do país, se distancia em muito do dever de promoção da Justiça. Aqui vale frisar que o papel do Parquet não é promover vingança privada ou ceder à pressão midiática, mas promover o respeito à ordem jurídica. Essa distorção é sintomática da politização natural que se seguiu à expansão do papel e da importância institucional do Ministério Público, no pós-1988.
Pode-se dizer que, salvo decisões isoladas de magistrados mais progressistas, a jurisprudência brasileira está definida no sentido do não cabimento da ampla defesa e do contraditório no inquérito civil. As provas, ou melhor, os indícios produzidos no curso do inquérito civil possuem presunção relativa de prova, que obviamente podem ser opostos por provas em sentido estrito, que tenham sido cotejadas sob a dialética processual.
Entretanto, mesmo nesse ponto, o conservadorismo impressiona, já que cria para o investigado um inconstitucional ônus de demonstrar sua inocência, sendo que em qualquer ordem democrática e mesmo no restante do processo civil brasileiro o ônus incumbe sempre à parte que alega os fatos. Mesmo essa regra de outro do processo civil contemporâneo fica prejudicada pelos institutos inquisitórios.
Sendo o inquérito um procedimento administrativo do qual podem resultar imediatas restrições a direito, independentemente da propositura da ação civil própria, a exemplo da subscrição de termo de ajustamento de conduta, não haveria conclusão mais natural na vigência da nova ordem constitucional que admitir a incidência de todos os direitos e garantias fundamentais relacionados ao processo nesta fase pré-processual, mas não é este o entendimento da jurisprudência brasileira, inclinada no espectro ideológico diametralmente oposto.
Resta, portanto, à doutrina brasileira, aos setores reformistas da magistratura e do Ministério Público e aos defensores avançarem nesta discussão, pressionando o Legislativo, que já possui proposições tramitando neste sentido, a reconhecer expressamente esta obrigação por parte do Estado e recorrer incessantemente ao Judiciário, com o propósito de que este entendimento atrasado seja reorientado para um paradigma verdadeiramente compatível com o Estado democrático de Direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
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Analista Legislativo do Senado Federal, na especialidade Administração, graduando em Direito pela Universidade de Brasília e especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Danilo Morais dos. Ampla defesa e contraditório no inquérito civil: análise da jurisprudência brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 ago 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44971/ampla-defesa-e-contraditorio-no-inquerito-civil-analise-da-jurisprudencia-brasileira. Acesso em: 23 dez 2024.
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