RESUMO: O presente artigo foi elaborado com o intuito de analisar de maneira reflexiva uma das formas de concretização da função social da propriedade que, dentre outros institutos existentes, merece destaque a usucapião especial urbana. Trata-se de uma inovação constitucional de grande relevância, através da qual, quando o titular do direito de propriedade o exerce sem legítimo interesse e de forma contrária à sua destinação social, poderá ser tolhido desse direito em benefício ao possuidor que conferiu função social à propriedade. Com o desígnio de alcançar a finalidade proposta nesse estudo foi realizada, de forma descritiva e exploratória, ampla pesquisa bibliográfica, na qual foram analisadas as legislações constitucional e infraconstitucional pertinentes à usucapião, bem como os diversos posicionamentos de vários autores sobre o tema em comento. E, não obstante a inserção do instituto em textos constitucionais anteriores, este modo de aquisição da propriedade ganhou contornos mais delineados a partir da Constituição Federal de 1988, com a instituição da usucapião especial urbana, também chamada de usucapião constitucional. Este instituto, também presente no Código Civil de 2002 e no Estatuto da Cidade, sob viés constitucional, constitui primado à projeção da pessoa humana em seus valores e direitos fundamentais.
Palavras-chaves: Direito Civil. Direitos Fundamentais. Usucapião Constitucional.
INTRODUÇÃO
Posse e propriedade sempre foram institutos de discussão no âmbito jurídico e, ante a relevância temática pertinente, convém destacar o instituto da usucapião por ser um dos efeitos mais importantes da posse, pois é o caminho pelo qual a situação fática do possuidor se converte em direito de propriedade e em outros direitos reais. Apesar da possibilidade de usucapir bens móveis, o presente estudo atém-se à usucapião de bens imóveis e, especialmente, na modalidade especial urbana, pois tem como atributo basilar o caráter social, exigindo pois uma nova visão civilista pautada na legislação constitucional. Constitui uma das formas de concreção e reafirmação do direito de propriedade ligado à sua função social. É o que veremos adiante.
1 CONTEXTO HISTÓRICO
A usucapião é um instituto antiquíssimo, datada de 455 antes de Cristo e consagrada na Lei das Doze Tábuas, sendo que, inicialmente, só fazia jus a esse instituto o cidadão romano, não se estendendo, pois, a estrangeiros e a peregrinos.
Assim, conforme prelecionam Farias & Rosenvald (2013), os bens do proprietário eram mantidos pelos peregrinos, sendo que aquele podia reivindicá-los destes quando bem entendesse. Todavia, com a expansão das fronteiras do império, foi concedido ao peregrino, excepcionalmente, uma espécie de prescrição cujo elemento fundamental se pautava na posse da coisa por longo tempo. Diferia das modalidades atuais de usucapião, pois o proprietário negligente perdia apenas a posse, mas não o domínio da coisa. Mais tarde, em 528 d.C, Justiniano convergiu essa exceção de prescrição (concedida ao peregrino) em usucapião, podendo o possuidor exercer o direito reivindicatório da propriedade. Dessa forma, a usucapião se converteu, simultaneamente, em modo de perda e aquisição da propriedade, considerada como prescrição aquisitiva – ambas tendo como elemento fundamental a ação prolongada do tempo.
Não obstante a doutrina majoritária consagrar a usucapião como prescrição aquisitiva, há quem não recomenda essa sinonímia. Nesse sentido, pontificam Farias & Rosenvald (2013) que a prescrição é forma de extinção de pretensões reais e obrigacionais pela inércia do titular no exercício do direito subjetivo pelo decurso do tempo, enquanto a usucapião é simplesmente um modo de aquisição da propriedade.
2 CONCEITUAÇÃO DE USUCAPIÃO
A usucapião pode ser definida como uma forma originária e declaratória de aquisição da propriedade e de outros direitos reais por meio da posse ininterrupta e sem oposição, com animus domini (intenção de possuir a coisa como se dono fosse), durante determinado lapso temporal fixado - de forma expressa – em lei, observado ainda outros requisitos legais. Esse instituto advém de uma posse mansa, pacífica e contínua, na qual o decurso de tempo é fator condicionante para a operacionalização da usucapião que, nesse sentido, houve uma redução dos prazos no Código Civil de 2002 em relação ao Código de 1916.
3 FUNDAMENTOS
Há quem considere a usucapião como uma forma de punição em face do proprietário pela sua desídia, e/ou ser o instituto um meio de conquista da paz social. Nessa seara, com bastante propriedade, expõem Farias & Rosenvald (2013, p. 397) que
O fundamento da usucapião é a consolidação da propriedade. O proprietário desidioso, que não cuida de seu patrimônio, deve ser privado da coisa, em favor daquele que, unindo posse e tempo, deseja consolidar e pacificar a sua situação perante o bem e a sociedade.
Já para Gomes (2010), a ampliação das espécies de aquisição da propriedade por meio da usucapião com destinação para o trabalho ou para a moradia evidencia que, atualmente, o fundamento do instituto aponta para uma função social de posse diversa da função social da propriedade, cujo entendimento já se verificou antes mesmo da Constituição Federal de 1988.
Atualmente, também é cabível a afirmação de que o bem jurídico que alicerça o instituto da usucapião é o cumprimento da função socioeconômica da propriedade. Nesse sentido, se posicionou o próprio legislador civil infraconstitucional ao reduzir os prazos para aquisição da propriedade mediante usucapião, dando efetividade ao quanto disposto no art. 5º, incisos XXII e XXIII e no art. 170, inciso III, ambos da Carta Magna de 1988[1].
4 ESPÉCIES
As modalidades de aquisição da propriedade imóvel por intermédio da usucapião estão reguladas no Código Civil de 2002 em seus artigos 1.238 a 1.244 e também, na Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) em seus artigos 9º a 14. Além de premiar os possuidores que conferem função social à posse com a redução dos prazos para aquisição, referidas legislações abriram nova regulação jurídica às diversas formas de usucapião, seja na área urbana seja na área rural, reportadas da Carta Maior de 1988 em seus respectivos artigos 183 e 191.
São espécies de usucapião: extraordinária, ordinária e especial (rural e urbana). Presentes os elementos imprescindíveis e comuns ao instituto da usucapião como a posse ad usucapionem, mansa, pacífica e contínua, as modalidades de usucapião divergem entre si pela instituição de outros requisitos. Em razão da amplitude das diversas formas de usucapião, o presente estudo não tem por escopo adentrar minuciosamente a todas as modalidades do instituto, mas é de salutar importância tecer breves comentários atinentes às suas diferentes espécies, consoante exposto a seguir.
Assim, na usucapião extraordinária, prescinde prova de justo título e boa-fé, exigindo-se a comprovação da posse ininterrupta pelo prazo de 15 (quinze) anos, ou de 10 (dez) anos se o morador houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo (art. 1.238 e parágrafo único do CC/2002).
A usucapião ordinária, por sua vez, disciplinada pelo art. 1.242, caput, do Código Civil/02, dispõe sobre a possibilidade de aquisição da propriedade imóvel, com justo título e boa fé, possuindo-a por 10 (dez) anos contínuos; e, no § único do aludido artigo, dispõe sobre a redução do prazo para 05 (cinco) anos, desde que o imóvel foi adquirido de forma onerosa, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Já a usucapião especial rural ou pro labore disposta no art. 191 da Constituição Federal/88 e reproduzida, sem alterações semânticas, no art. 1.239 do Código Civil de 2002, atribui propriedade àquele que, não sendo proprietário de outro imóvel rural ou urbano, possua, com a intenção de ser dono, área de terra rural, não excedente a 50 (cinquenta) hectares, pelo prazo de 05 (cinco) anos, sem interrupção, sendo o imóvel destinado à moradia e produtivo pelo seu trabalho ou de sua família.
Merece ainda mencionar a modalidade de usucapião urbana coletiva, prevista no art. 10 do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), in verbis:
As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Também a esse respeito, pontificam Farias & Rosenvald (2013) que a usucapião coletiva de imóveis particulares constitui um forte instrumento de função social da posse, permitindo uma alternativa de aquisição da propriedade em favor dos possuidores impossibilitados de adquirir a propriedade através de ações individuais de usucapião.
E, a Lei nº 12.424/2011 inseriu no Código Civil/2002, em seu artigo 1.240-A e seu parágrafo 1º, uma nova e questionável modalidade de usucapião urbana – ou pro-família – a qual, dentre outros critérios, requer a aferição cumulativa de três requisitos, a saber, a existência de único imóvel urbano comum, o abandono do lar por parte de um dos cônjuges ou companheiro e o transcurso do prazo de 02 (dois) anos.
Tecidas algumas considerações sobre as diversas espécies de usucapião e, não obstante a fundamental importância de cada uma delas, conforme já exposto, o presente estudo destina-se ao aprofundamento da usucapião especial urbana (com previsão no art. 183 da CF/88[2] e reproduzido no art. 1.240, caput, e §§ 1º e 2º do Código Civil/2002[3]). Por ser uma das mais nítidas demonstrações do princípio da função social da propriedade previsto na Constituição Federal da República de 1988 é que adrede veremos adiante mais detidamente.
5 A IMPORTÂNCIA DA POSSE PARA FINS DE AQUISIÇÃO PELO INSTITUTO DA USUCAPIÃO
Primeiramente, convém destacar a nítida distinção existente entre posse e detenção, ou seja, interessa definir se determinada pessoa é possuidora de alguma coisa ou simplesmente mera detentora desta. Assim, esclarecem Nery Jr. & Nery (2006) que, para a teoria clássica de Savigny, a vontade de possuir a coisa para si é que origina a posse jurídica e quem possui por outrem é mero detentor. Já para Jhering, a posse é a simples exteriorização da propriedade e dos poderes a ela inerentes, havendo possibilidade de existir sem que o possuidor tenha a intenção de ser dono. Quem exerce poderes sobre a coisa sob instruções e ordens de outro tem mera detenção.
Feitas aludidas considerações, de acordo com o art. 1.196 do CC/2002 (BRASIL, 2002), “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Então, sendo a usucapião um dos efeitos da posse, é extremamente importante que se tenha ciência do momento exato em que se iniciou a posse para fins de apuração do prazo legal para a sua aquisição.
Nesse diapasão, em relação à modalidade de usucapião especial urbana, prevista no art. 183 da Constituição Federal, há peculiar característica sobre o início da vigência do prazo aquisitivo da propriedade, visto que não alcança situações pretéritas. Assim, mesmo aqueles que, antes da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, preenchiam os demais requisitos inerentes à citada espécie de usucapião não poderiam adquirir a propriedade. Nesse sentido, se posicionou a Corte Superior consoante julgado in verbis:
Usucapião especial (CF, art. 183): firmou-se a jurisprudência do STF, a partir do julgamento do RE 145.004 (Gallotti, DJ de 13-2-1997), no sentido de que o tempo de posse anterior a 5-10-1988 não se inclui na contagem do prazo quinquenal estabelecido pelo art. 183 CF (v.g. RE 206.659, Galvão, DJ de 6-2-1998; RE 191.603, Marco Aurélio, DJ de 28-8-1998; RE 187.913, Néri, DJ de 22-5-1998; RE 214.851, Moreira Alves, DJ de 8-5-1998.)” (RE 217.414, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 11-12-1998, Primeira Turma, DJ de 26-3-1999.). (A CONSTITUIÇÃO E O SUPREMO, 2014, p. 1.582).
6 REQUISITOS DA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA
A usucapião pro-moradia não se trata de uma mera utilização da coisa, pois se assim fosse, restaria uma insegurança jurídica em relação ao proprietário, revelando-se uma verdadeira apreensão de seus bens.
Revela-se, dentre outras, uma forma de impulsionar o direito à moradia, previsto constitucionalmente como um direito social. As condições previstas na legislação constitucional para fins de usucapião na modalidade especial urbana refletem os mecanismos tutelados pelo Estado para a efetividade do direito fundamental à moradia e do princípio da dignidade da pessoa humana. Daí também ser chamada de usucapião constitucional. Frise-se que tais requisitos não são impostos às modalidades de usucapião extraordinária e ordinária.
Nesse sentido, a norma constitucional referente à usucapião especial urbana - prevista no art. 183 da Constituição Federal/88 - foi reproduzida pelo legislador civil no art. 1.240 do Código Civil de 2002. Aludidos dispositivos estabelecem que o possuidor, por 5 (cinco) anos ininterruptos e sem oposição, pode usucapir área urbana de até 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados, desde que, além da sua moradia ou com sua família, não seja o usucapiente proprietário de outro imóvel no período aquisitivo e não tenha adquirido qualquer outra área por meio da usucapião. Ademais, não se exige a presença de justo título e se presume a boa-fé. Esta modalidade de usucapião demonstra a preocupação do legislador com a função social da propriedade que veremos oportunamente. De posse da sentença declaratória de usucapião, esta somente será oponível erga omnes, após o registro no competente Cartório de Imóveis.
Urge expor que essa modalidade de usucapião - também chamada de pró-moradia - advém de uma posse pessoal, pois ninguém pode usucapir propriedade habitada por outrem e, sob outro ângulo, o proprietário não perde a sua propriedade simplesmente pelo não uso. Assim sendo, é mister que alguém esteja usando a coisa no lugar do proprietário. Além disso, essa habitação no local deve ser contínua, consoante se posicionam Farias & Rosenvald (2013) que essa exigência efetiva na coisa desqualifica a possibilidade de êxito para aqueles que numa eventualidade ocupam o imóvel, como naquelas hipóteses de utilização de bens em épocas de férias ou feriados.
Dessa forma, em relação à acessio possessionis, não há o que se falar em cômputo do prazo do cedente à posse daquele que pretende adquirir a propriedade pela usucapião especial urbana, uma vez que o lustro requer posse pessoal. Nesse sentido, vide Enunciado nº 317, do Conselho de Justiça Federal, editado nos seguintes termos:
A accessio possessionis de que trata o art. 1.243, primeira parte, do Código Civil não encontra aplicabilidade relativamente aos arts. 1.239 e 1.240 do mesmo diploma legal, em face da normatividade do usucapião constitucional urbano e rural, arts. 183 e 191, respectivamente.
Agora, noutra esteira, nada impede que se obtenha a usucapião por outra modalidade que não a especial urbana.
7 OPERACIONALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA ATRAVÉS DA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA
Inicialmente, convém destacar os direitos sociais como direitos de segunda dimensão que, conforme preleciona Lenza (2009, p. 758),
Apresentam-se como prestações positivas a serem implementadas pelo Estado (Social de Direito) e tendem a concretizar a perspectiva de uma isonomia substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de vida, estando, ainda, consagrados como fundamentos da República Federativa do Brasil.
Não obstante o direito à moradia, considerado um dos direitos sociais, ter sido incorporado tardiamente no texto constitucional através da EC nº 26/2000, o instituto da usucapião para fins de moradia já estava amparado pela Carta Magna, em seu art. 183, cujo comando constitucional positivado foi reproduzido pela legislação civil, otimizando a concreção desse direito assegurado constitucionalmente. Essa atuação positiva da legislação civilista a partir da Constituição diz respeito ao chamado Direito Civil Constitucionalizado.
Nesse sentido, o Direito Civil tradicional se despe do seu caráter hermético e puramente objetivo sendo substituído pela atuação positiva do legislador civilista ao compreender a estrutura interna da legislação civil a partir da legalidade constitucional, otimizando a sua concretude. Apesar de, historicamente, existir o desrespeito aos princípios constitucionais, esse panorama vem se modificando, principalmente com o advento da Constituição Federal de 1988, marcado por uma verdadeira remodelagem da dogmática jurídica, inclusive no âmbito civilista.
Assim, a partir da garantia de direitos, tidos como fundamentais, iniciou-se um redimensionamento interpretativo de conceitos e institutos jurídicos, a exemplo do direito de moradia, cujo uso está condicionado ao cumprimento de sua função social (Constituição Federal, art. 5º, XXIII e art. 170, III). Nesse sentido, há que se destacar uma aproximação entre a Magna Carta e o Direito Civil, mediante a efetivação dos direitos pautados na Constituição Federal, passando pois da abstração da norma para a sua aplicação ao caso concreto. Eis a incumbência dada ao jurista contemporâneo, no sentido de otimizar essa concreção, mediante a reinterpretação da Ciência Jurídica. E, convém destacar que, através dessa reinterpretação da norma, é que o Direito é caracterizado como uma ciência social com feição hermenêutica.
Assim, conforme Wald (2009, p. 195), no que atine à usucapião especial urbana, expõe que “é um caso de usucapião de finalidade social, que não se caracteriza como pro labore, ou seja, não decorre do trabalho realizado pelo ocupante do solo”.
8 USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA: ATENDIMENTO À FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE OU À FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE?
Preliminarmente, salienta-se que o reconhecimento ao direito de propriedade estampado na Constituição Federal está atrelado ao bem comum e ao interesse coletivo. Sobre o direito de propriedade, explicam Araújo & Serrano Jr. (2006) que este é definido como o direito subjetivo que assegura ao indivíduo a exploração de um bem, fazendo valer essa faculdade contra todos que eventualmente a ela se opor.
Todavia, o direito à propriedade não é absoluto, ou seja, comporta ponderações quando não cumprida a sua função social. Nesse liame, Lacantinerie e Tissier apud Diniz (2010), no que diz respeito ao direito à usucapião, afirmam que não é uma usurpação, mas sim um instituto indispensável à estabilidade do direito, que pode e deve ser admitido sem que haja qualquer vulneração aos princípios de justiça e equidade.
Além do preenchimento dos critérios objetivos necessários à aquisição da usucapião na modalidade especial urbana, não resta dúvida de que a situação fática da posse constitui uma ponte de acesso ao direito à propriedade. E, subjetivamente, conforme prelecionam Efrem Filho & Azevedo (2010, p. 88)
Compreende-se a posse como um direito que seja meio de acesso a direitos humanos, como os direitos à moradia, ao trabalho, à educação, à alimentação adequada etc., [...] Desse modo, a posse passa a ser encarada como a situação que decorre da utilização de um espaço ou coisa suficiente para a satisfação das necessidades vitais da pessoa humana.
Então, tanto a função social da posse quanto a função social da propriedade se complementam, pois a utilização apropriada da posse constitui um dos elementos de efetivação da função social da propriedade. A usucapião pro moradia, nesse contexto – enquanto medida repressiva constitucional imposta ao proprietário descumpridor da função social da propriedade – reflete crucial mecanismo para a concretização do compromisso assumido pelo Estado na ordem social.
Enquanto o Texto Maior ampara o direito à propriedade, concomitantemente este direito é condicionado ao atendimento da função social. Assim, também, não obstante o texto constitucional não mencionar de forma expressa o termo “função social da posse”, por outro lado, dispõe sobre os requisitos legais conferidos ao possuidor intencionado a adquirir a coisa por meio da usucapião especial urbana, o que não se confunde com um mero desejo de possuir determinada propriedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, percebe-se que o direito à moradia, incorporado à Constituição Federal/1988 como um dos direitos sociais, ensejou o surgimento de outros direitos, como no caso em comento, o direito à aquisição da propriedade por meio da usucapião especial urbana.
A efetividade da norma constitucional reprisada na legislação civil e no Estatuto da Cidade atinente ao instituto da usucapião na modalidade especial urbana, ao conferir função social à propriedade, não intenciona desqualificar o direito à propriedade prevista no próprio Texto Constitucional, mas se assenta no intuito de sublimar a dignidade da pessoa humana, não apenas garantindo, mas também tutelando o direito à moradia.
Portanto, em sendo a usucapião em sua modalidade especial urbana situada como um direito de segunda dimensão, ao Poder Público incumbe uma atuação positiva no sentido de prestar ao jurisdicionado a devida proteção e efetivação do direito à moradia como um dos direitos sociais, desde que, no que concerne à usucapião, sejam atendidos a todos os requisitos inerentes à aquisição da propriedade.
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Técnica Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Graduada em Fundamentos Jurídicos pela Universidade do Tocantins - UNITINS / Graduanda do Curso de Direito da Faculdade Guanambi.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Maria da Silva Azevedo. Usucapião especial urbana: uma das conquistas da função social da propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 ago 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44978/usucapiao-especial-urbana-uma-das-conquistas-da-funcao-social-da-propriedade. Acesso em: 23 dez 2024.
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